Nostalgia...
(Paulo Boblitz - mar/2009)

Dedicado a todos vocês amigos mais velhos; a todos vocês amigos mais novos, a pensarem tudo saber; e aos que tem a minha idade, ainda nem tanto e nem tão pouco...

Recebendo um arquivo intitulado Nostalgie, não pude evitar as minhas lembranças, essas mesmas que vocês também têm, cada um com as suas, tesouros bem guardados na alma, vida que se viveu de verdade...

A vida não deveria ser tão dura, embora eu tenha observado dedos grossos e calejados, mas sim cheia de mais vigor, naquele tempo sim, tudo de verdade, tudo feito a mão, com paciência e desvelo, feito para durar, feito principalmente para ser aprovado, não para o consumir...

Vendo os diaporamas, observei as expressões orgulhosas de cada um, nenhum com ouro em cordões, nenhum a ostentar bugigangas feitas na China...

Artífices..., a arte combinada com o ofício; Manufatureiros, dum velho Latim já esquecido, onde manu é mão, factu é feito...

Pessoas honradas e honestas, punham mais por puro prazer, construíam seus nomes com o suor, orgulhavam-se de cada profissão, este hoje já um vulgarizado termo, pois que no tempo mais antigo, significava o que o Latim queria dizer: professione - ato ou efeito de professar...

Mãos rudes que produziam o belo, o delicado, com paciência, pois que a vida era sentida e não corrida. A sociedade gozava de todos os valores, porque toda ela sabia de tudo, por não haver especialistas, estes mesmos que não sabem de nada...

Tudo era mais demorado, mas..., por que a razão de tanta pressa?

Eles já estavam!, essa é a resposta..., enquanto hoje em dia tentamos chegar, e não chegamos...

Fabricavam comidas com sabor, sem corantes, conservantes ou estabilizantes; construíam coisas com alma, alguns de séculos atrás ainda funcionando, e sem computador o cuco informava a hora aos badalos, mostrava as fases da Lua, num tiquetaque irrepreensível, de peças serrilhadas com extremada precisão, numa época em que toscas eram as ferramentas...

Dedos grossos, unhas sujas por baixo, produzindo filigranas dignas dos deuses. Como é que conseguiam?

Artífices... Por isso temos antiquários, onde tudo é muito caro, pois ali não encontramos descartáveis, filosofia destes nossos tempos dos botões...

A arte com ofício, por ofício, por vocação, a produzir com as mãos, dando personalidade a cada feito, pois não havia nenhum igual, mas sim parecido...

Ainda existem cantões onde a tradição é religião; só aqui, é coisa de velhos...

* * *

Anonimato

Não importando o verbo que utilizemos, quando seja construtivo, sempre estaremos pondo algo em movimento...

O bom amigo Wagner Paulino, que preferiria continuar anônimo, pesquisou e descobriu que a frase sobre laranjas e idéias, é de Confúcio, o grande Mestre chinês (551 a.C. - 479 a.C.).

Tiramos do anonimato, aquilo que sempre foi de Kung-Fu-Tze... (Confúcio)



Anonimato
(Paulo Boblitz - mar/2009)


Li noutro dia, num blogue que agora não lembro do nome, a seguinte mensagem:

"Quando você troca uma laranja com outra pessoa que tem também uma laranja, cada um fica com uma, mas se você tem uma idéia e a troca com outra que também tem uma idéia, cada um fica com duas."

A mensagem acima não se traduz em beleza literária, mas sim em certezas, essas coisas boas que semeamos e distribuímos com os semelhantes.

Ou ela é do blogueiro, ou ele se utilizou de um dos tantos autores anônimos por aí, semeando para que outros colham, principalmente o verbo. Gostaria de lembrar-me do nome do blogue para citá-lo, mas a memória não ajuda, principalmente depois de tanta produção.

Anônimos são todos aqueles que não se identificaram, ou todos aqueles que foram suprimidos, ou todos aqueles que o tempo esqueceu. Um nome só vale para o presente, um pouco para o passado, pois que até este se renova, produzindo mais anônimos, todos esses que já nos deixaram lições, assim mesmo, por semeaduras...

Anonimato bonito é quando realizamos algum bem, e de longe apenas observamos...

Quem de vocês já não experimentou tal sensação?, dar sem receber?, prestar sem nada querer de volta? Papai Noel vive fazendo disso...

O anonimato, porém, é muito mais perverso do que bom. É como se fôssemos anjos caídos, cujo DNA traz a construção, mas o viver, a desconstrução...

Tentemos juntar pessoas para uma boa causa, e poderemos ficar decepcionados; ao contrário, basta uma idéia para o mal, e logo uma turba se reúne...

Anonimato é como uma espécie de tocaia, onde a vítima não fica sabendo quem foi o seu algoz; nos escondemos quando queremos atraiçoar, ou lançar manchas no próximo, ou até mesmo criticar em tom de brincadeira, onde o ofendido ainda é taxado de não saber brincar...

Nos tornamos anônimos num grupo, onde todos se protegem...; nos tornamos anônimos quando não nos identificamos, e isso é covardia...

Jesus um dia falou que não precisávamos tomar cuidado com o que nos entrasse pela boca, mas sim com o que dela pudesse sair, pois o verbo pertence ao Verbo, e como tal, tem poder...

Anônimos semeamos a discórdia, o desamor, por ciúmes ou ignorâncias...

Fazemos coisas tão feias, que até nós nos envergonhamos, nos escondemos do nosso próprio grupo, de nossos semelhantes por teoria...

Esse é o pior dos anonimatos...

* * *

A primeira dedada, a gente não esquece...

Essa história é meio a meio..., quer dizer..., metade verdade, metade invenção, porque se não, não teria graça...

A verdade é que todo homem, ao chegar nos 50, deve procurar um médico para submeter-se a um exame digital, melhor falando, um toque retal...

Mas não precisam aqueles, hoje na casa dos 30, antecipar essa ida sob pretexto de serem muito zelosos com a saúde, nem tampouco aqueles que costumam não acreditar numa só opinião, procurarem duas, três, sabe-se lá quantas...

Uma coisa eu faço questão de sugerir: procurem alguém com bastante experiência... Vai que seja um novato, ainda sem muita certeza, e você não saberá se ele está ou não, brincando...



A primeira dedada, a gente não esquece...
(Paulo Boblitz – abr/2008)


1 – Marcando a consulta...

Eu estava marcando a consulta, e confesso que não estava assim tão preocupado com a data, mas quando o urologista só pôde me atender bem lá na frente, não deixei de perceber certo conforto...

Ainda bem que temos outras preocupações, a nos distraírem a mente...

Mas eu tinha que fazê-lo, afinal temos as nossas responsabilidades, conosco mesmos, com a família que ainda conta conosco, com os projetos que ainda nos aguardam, pelas dívidas que ainda necessitam ser pagas, enfim, motivação era o que não faltava...

A idade já estava para lá de avançada, para submissão da primeira perscrutação – uma investigação científica em nome da saúde; um método amplamente já aceito pela sociedade, e nada justificava eu ficar protelando...

Por outro lado, o investigante seria um profissional, da própria arte.

Ocupei-me, assim, de outras atividades diárias, mas sabem como é... ; nossa mente é pródiga e continua processando sozinha, sem necessitarmos estar em vigília. Vez ou outra eu conferia a data na agenda, pois compromisso é compromisso...

Um amigo, ao saber da marcação, libertou-se de certo modo, de um trauma. Confessou ter sido, no mesmo médico, perscrutado. Informou até que o marido de uma nossa amiga, também havia sido nele, perscrutado – essa palavra é de muito mau gosto, e até soa desajeitada para o fim a que ela se destina...

Lembrando bem, nosso médico da empresa havia informado, ser aquele profissional por ele indicado, muito sério e competente. Da competência eu já esperava, mas da seriedade eu ainda não havia pensado..., e minha primeira reação foi a de que, com gracinhas, ninguém me perscrutaria.

Mas o que não tem jeito, não adianta combater. Se é para ser, então que seja logo, afinal, todo homem responsável, na idade correta, deve ser perscrutado. Nesse item, eu estava com crédito, pois há tempos eu havia entrado nela, na idade...

Chegou o dia finalmente, não havia escapatória, se bem que no íntimo ainda houvesse aquela esperança, a de que o médico perscrutador não pudesse, por razões alheias às dele vontades, trabalhar naquele dia...

Mas não recebi nenhuma comunicação. O compromisso estava de pé. O profissional levava a sério o trabalho dele. Então, que não passasse desse dia, já que nesse dia teria que ser. Estava escrito nas estrelas...

Interessante é que não conseguimos ficar imunes. A coisa, não me referindo ao dedo perscrutador, mexe com a nossa cabeça, não importa se levemos na brincadeira ou no deboche, mas no dia específico, acordamos diferentes... Demonstramos certa instabilidade comportamental, e começamos a nos preocupar:

- "E se nosso conduto a ser perscrutado, estiver cheio de massa? Ficaremos envergonhados..." – pensei numa lógica trivial...

Logo, nos ajustamos à situação. Comi mamão bem cedo e ele fez efeito, mas efeito além do desejado. Não precisava agir assim em exagero, o mamão...

Depois de umas três idas ou quatro, uma certa ardência se estabelece por pura normalidade muco-resposta, afinal, daquela forma ele, o dito a ser perscrutado, não é acostumado...

Melhor pelo mamão, do que pelo dedo inglório, mas que não sirva de desculpa para um maior zelo, do perscrutador em questão.

Agora um outro fato me preocupava: minha reputação... Ardido por funcionar em demasia, deve estar com outra apresentação. Quando lá chegar, vou logo avisar:

- Doutor!, foi caganeira!

* * *


2 – Na sala de espera...

Enfim chegou a hora e lá tenho que ir. Que meu Anjo da Guarda me ajude; que lá não me deixe encontrar nenhum conhecido...

Lá na minha sala, e na do médico do nosso trabalho, descobri que o perscrutador escolhido, era bem freqüentado. Devia conhecer tudo o que era de..., bom..., digamos..., perscrutados da nossa empresa.

Iguais a mim?, hum..!, tinha muita gente..., fora os que ainda chegariam na dita necessidade...

Lembro que quando a conversar com o médico da nossa empresa, a perguntar se ele não conhecia algumA profissional que me viesse a dar cabo, de tão inusitada e encabulada questão, recebi o NÃO mais negativo da vida. Ele, mostrando certo envolvimento com o meu desalento, até comentou com ares de investidor: "se existisse, ela já estaria rica..."

De fato ele tinha razão... Quem em sã consciência?, em sã preferência?, não preferiria um dedo delicado feminino, ao de um cheio de tumefactas articulações? Quem!?

Quando resolvi fazer tal exame, até por desabafo da consciência, pensei num médico amigo..., mas pensei melhor e vi que amigo, a mexer naquilo da gente, não esqueceria jamais do nosso pudico escondido, duas vezes coberto por panos, um tabu a ser defendido...

Eu acabaria perdendo o amigo, pois toda vez que ele me olhasse, eu não saberia qual olhar seria aquele... Por outro lado, um profissional desconhecido, logo se ocupa do..., digamos..., perscrutado de outro. Já um amigo?, hum..!, esse jamais esqueceria...

A sala de estar era como todas as outras: revistas, um ar condicionado, uma atendente a nos encarar, a ter satisfeita a própria revanche, pois era como se grávidos estivéssemos.

Não quis observar aquele leve sorriso...; pensei melhor achá-lo alguma simpatia, e ocupei-me com algum artigo, sem contudo bem entende-lo, pois a cabeça, esta só pensava insistentemente no assunto, prestes a ter um desfecho – duas preocupações: a primeira, da perscrutação (recuso-me a utilizar o termo "penetração"); a segunda, do que poderia ser encontrado...

O íntimo da gente, o tempo todo se defende... Pensava na hora do encontro, aliás, ele não conseguia sair da minha cabeça, e uma saída, uma esperança logo foi encontrada – primeiro ele pediria exames...

As estratégias e as expressões, todas elas foram ensaiadas, na mente é claro, mas só descobriria quando lá estivesse, frente a frente com o sujeito. Entrava logo quebrando o clima?, ou entrava circunspecto?

Nem um, nem outro... Se eu entrasse com alguma simpatia, ele poderia pensar que eu estava a querer intimidade; se eu entrasse sisudo, ele poderia pensar que eu já estava acostumado. As duas maneiras me deixariam mal...

Cheguei à conclusão que deveria entrar e me apresentar, e logo sentar, o mais natural possível, e deixar claro nas próximas etapas, que a coisa não era bem daquele jeito, que era a minha primeira vez, e que por isso ele fosse com jeito...

E pensar que eu ainda tinha que pagar por aquilo...

Pensei melhor e lembrei que para todo bônus, há sempre de haver um ônus...; arrumaria algum defeito no pinto..., e de lá, sairíamos empatados...

Ainda faltam três na minha frente, e só agora noto que a revista está em minhas mãos, de cabeça para baixo...

* * *


3 – A consulta...

- Senhor Paulo!? A sua vez... – informou a atendente. Não sei por que, mas acho que ela agora estava a sorrir mais abertamente...

Olhei para ela, ao mesmo tempo em que fechava a revista e guardava os óculos.

Levantei-me e, na porta às minhas costas, já estava o médico perscrutador me aguardando...

Ao me chegar mais próximo, ele me estendeu as mãos em boas-vindas, no que a vista logo prestou atenção naqueles dedos... Dedos longos, porém finos. Ainda bem...

O médico perscrutador de cavidades alheias, era um sujeito ainda jovem, mas nem tanto que dele a seriedade lhe fosse roubada. Pelo menos as articulações não possuiriam nódulos...

Usava lentes grossas, ponto a meu favor, pois que deficientes visuais, desenvolvem maior sensibilidade no tato, o que significaria um exame rápido. Fosse um bom de visão, a tendência seria não acreditar no que o dedo sentisse, e a mais cavucar atrás de algum segredo...

Calmo, mostrou-me uma cadeira. Enquanto ele puxava o teclado do computador e digitava alguma coisa, passeei o olhar pelo consultório, simples até, sem os peixinhos lá de fora, num aquário a separar ambientes, a dispersar tensões, pois que peixinho de aquário, tem sempre uma calma infernal...

- É a sua primeira vez, não!? - e eu não soube se ele perguntava sobre o dedo, ou sobre a consulta com ele - ponto para mim de novo, pois podia significar pouca memória...

Respondi que sim, só para ouvir a pergunta clássica:

- Do que é que está se queixando?

Então eu pigarreei, e informei que não havia nenhuma queixa, mas que o médico da nossa empresa havia recomendado, e mais isso e aquilo, que todos vocês já sabem - não preciso repetir, e para ciência de vocês, ele entendeu...

Acho até que ele já sabia... Esse pessoal especialista, quero dizer, médico de uma disciplina só, só cuida daquilo, da especialidade dele. Então, a ver todos os dias os mesmos assuntos, acaba desenvolvendo uma psicologia para cada fato ou cada queixa. Deve ser assim: ele olha para um sujeito, e no íntimo já sabe – não consegue mijar...; ele olha para outro e também já mata a questão – esse daí é dedada...; e assim por diante com cada problema, que ele já está ficando careca de tanto ver.

Depois da nossa conversa, e de algumas perguntas, chega o ponto que tem que chegar. Quem já conhece, sabe bem do que falo...

Levantou-se e mostrou-me uma porta, solicitando:

- Queira me acompanhar...

Entrou primeiro e, como não havia espaço para uma ultrapassagem, fui obrigado a acompanhar todo um cerimonial, nada que não fosse normal, mas acho que algo necessário para nos prepararmos para a posição, fosse qual fosse ela, sobre a cama. Com cautela, puxou um papel, que foi desenrolando na altura da cabeça; cortou um pedaço e arrumou como se fosse a roupa de cama, pois que aquilo era uma cama, onde logicamente, eu raciocinava, deveria me deitar...

Terminada a arrumação, ele se virou bem calmo e mandou que eu me deitasse, e que não precisava tirar as botas e nem as calças...

Em tudo na vida, há de haver psicologia. Eu ia deitar-me completamente vestido! Por instantes, aquele dedo vil conseguiu sair da minha cabeça! Era ele ganhando tempo, enganando e desconcertando a minha vigília! Caí na rede...; não haveria escapatória...; uma ida sem volta...

Deitei-me obediente e cauteloso, afinal naquilo eu não tinha experiência, enquanto ele calmamente aguardava. A posição? Barriga para cima... Olhou para mim e apontou até onde eu deveria arriar as calças, claro que junto com as cuecas.

Enquanto eu me desvencilhava da cintura e do fecho ecler, ele mexia em algo numa banqueta – pléc, stléc – era a luva de borracha...

Pelo canto do olho vi o movimento, um típico passar de vaselina, e se alguém estiver agora excitado, já pensando em alguma data a marcar, que vá mais devagar, pois lembro que o momento é bastante vexatório – um estranho prestes a adentrar-se nas nossas entranhas... Tudo na mais completa formalidade...

Com a ferramenta pronta, o dedo maior de todos, solicitou que eu abrisse as pernas:

- Um pouco mais... - insistiu de novo.

Sem tempo nem para raciocinar, ou antever o ato, aquela ponta perscrutou o pobre olho cego, juro, espetando até a minha alma. Que situação..., um sujeito com o dedo todo atolado dentro de mim, como a procurar alguma raiz!?

Agora sei como é um exame ginecológico... Ainda bem que ele não estava de frente, sentado, olhando aquilo também olhando para ele, sendo perscrutado..., filmando para ficar documentado..., num arquivo técnico, de um dedo no cu em pesquisamento..., para depois mostrar ao paciente, pois que virou para um lado, depois para o outro, espetou para cima e quase me mijo...

O exame em si não tem nada de mais, a não ser pelo detalhe que nos penetra pelo buraco mais sagrado. Esquisito é quando sentimos aquela mão, a nos limpar o rego com uma folha de papel toalha, mas..., se faz parte do exame...!

O fato é que do jeito que entrou, saiu..., e logo ele me disse:

- Pronto! Está tudo normal... Pode ficar tranqüilo... Vamos pedir um exame de sangue e um ultra-som, para acompanharmos um histórico, e depois com um ano, repetimos de novo.

Vesti-me novamente e fomos para o consultório. Enquanto ele emitia as solicitações, pensei comigo mesmo: "melhor um dedo agora no rabo, do que cinco mais tarde, em cada alça de um caixão...

Apertamos as mãos e voltei contente para casa; um peso havia sido jogado fora, e para quem ainda não fez o exame, penso agora que o ruim será na segunda vez...

Cu conhecido, já começa a querer fama...

* * *

Estouraram a minha mochila

Quando vi a notícia com o avião da TAM, a história rápido se desenhou... Isso foi em agosto de 2006.

E foi uma confusão danada, pois os amigos não paravam de ligar. Havia esquecido de informar que era ficção, não a história da porta, mas a da minha mochila...

Que foi divertido, isso foi...

Aviso! Eu não estava naquele avião!



Estouraram a minha mochila
(Paulo Boblitz - ago/2006)


Mal havíamos decolado, Bruuummm..!, lá se foi a porta do avião...

Foi um desconsolo geral, com a pobre da aeromoça dando brecha enquanto se segurava de qualquer jeito na poltrona, quase colada à porta em questão...

A peruca de alguém logo voou, e cabelos os mais diversos começaram a desgrenhar.

Meu coração bateu profundo e ecoou nos intestinos, que dali para a frente intimidaram com muita pressão.

- Senhoras e Senhores..!, aqui quem vos fala é o Comandante do avião. Tivemos um pequeno problema e já estamos retornando ao aeroporto. Queiram, por gentileza, permanecer sentados com os cintos afivelados...

No meio de duas turbulências, a do avião sem porta e a da minha interna de emoção, já em aperto garantido, refleti que o Comandante havia abusado da redundância, pois que se era o Comandante, só poderia ser do avião, e com o avião sem porta..., quem seria o atrevido a desafivelar o cinto?, ainda mais levantar da poltrona!?

A Aeromoça, já mais refeita do sobressalto, olhando com semblante irritado para o passageiro deslumbrado à sua frente, recompunha-se fechando as pernas, e mais calma, porém descabelada, já ensaiava um sorriso amarelo para todos, fazendo questão, no entanto, de lançar seu desprezo para o degenerado que não havia perdido tão inusitada oportunidade.

Seguimos em lenta curva de retorno, aos sons misturados de vento com turbina, e pareceu-me por instantes, vislumbrar olhar curioso de um urubu, como quem olhasse tamanho pássaro metálico, entrevendo as suas entranhas... Dei de ombros e achei que aquilo era pressão da minha barriga, como se eu pudesse, não esperar pelo pouso do avião...

Olhei à volta e pude ver mais calma nos semblantes; meu próprio coração já havia entrado em compasso de aventura, minha adrenalina agora me tornava em herói; só a minha barriga, terrorista, insistia no dilema. Firme logo pensei: "não vou "repactuar"!, se quiser, que faça na poltrona, afinal já está sem porta mesmo..!"

Logo sentimos o duro concreto sob as rodas, e mais um pouco chegávamos ao terminal dos passageiros. Catapultado pela necessidade, apertei minha mochila e saí correndo, e com alívio fui me desfazendo das agruras...

Já mais corado, lavei as mãos e saí dali, dirigindo-me ao balcão das informações, onde todo mundo já estava falando ao mesmo tempo, reclamando e contando a história...

Absorto em meus pensamentos, via como as coisas nem sempre são complicadas, e que podemos manter a calma, mesmo quando à nossa volta estão em desespero, em trapalhadas - agora eu ligava a "repactuação" ao desastre, que veio e se apresentou, nos deu um susto mas já passou e foi embora, e que um dia apresentar-se-á com outra roupagem, com outros terrores e ameaças, testando o nosso poder de enfrentamento e discernimento.

Enquanto agradecia a Deus pelo nosso bom senso, pela nossa prudência, pela nossa coragem diante das tantas pressões, percebendo que nada nos merece a confiança, vi um rebuliço danado em outra direção.

Jornalistas e câmeras dirigiam seus focos para lá, para o homem protegido com roupa especial, aquele que desarma bombas ou as faz explodirem à distância, pois alguém havia encontrado uma bagagem suspeita abandonada, e com os recentes ataques na noite anterior, pelo crime organizado à cidade de São Paulo, ninguém queria arriscar.

Cheguei a ficar indignado e receoso, que uma vida pudesse vir a se perder na tentativa de um desmonte, e sugeri ao meu vizinho que a coisa deveria ser explodida à distância, quando aproveitei para perguntar:

- Onde é que tá o tal negócio..?

- É aquela mochila ali... - apontou-me prontamente.

Achei parecida com a minha, olhei para os lados e tive a certeza... de que era ela mesma!, esquecida quando minha barriga tomou o lugar da cabeça...

Ainda tentei levantar o dedo e gritar, quando Bruuummmm!!!; lá se foi a minha bagagem pelos ares...

Desolado ainda pude sorrir, quando vi os expertos analisando meus trapos incendiados, tudo saindo em rede nacional, em tudo quanto era plantão de noticiário, e de repente me senti famoso...

Agora, o meu dia estava completo...

* * *

Glossário:

- "repactuação" - trapalhada aventureira que nos quiseram impor, substituindo o certo pelo duvidoso, em nosso plano de aposentadoria privado.

* * *

Fatias do Sol














Foto: Ana Sophia - Portugal

Peguei emprestado uma bela foto, tirada por uma nova amiga. De fato, foi quando ela buscava sobre o Atlântico...

Como imagens falam por mil palavras, cuidem vocês das suas milhares, pois já utilizei das minhas mil...



Fatias do Sol

(Paulo Boblitz - mar/2009)


O Sol ameaçava ir dormir... Fantástico esse nosso amigo, muito esquentado, sempre a revezar com a Lua, mas nunca às turras...

Sempre que pode, ele esquenta alguma coisa e não há sombra que ele não devasse, pois que ele é teimoso, e se não consegue pelo nascente, conseguirá pelo poente...

Havia sido um dia de muito trabalho, o Sol a lançar a cabeleira sempre flamejante, impetuoso como sempre a ventar seus solares raios, a produzir auroras nas mais elevadas latitudes.

Nosso amigo tem um jeito especial de iluminar, e que ninguém se meta com ele, pois se não, ele mete a bronca... É da natureza dele; fazer o quê, se ele é assim desse jeito?

Em todos os cantos de nossa Terra redonda, ele não deixa escapar, e matematicamente está sempre a distribuir a mesma quantidade de calor e luz para todos, pois que se distribui demais, depois se guarda também... Se no Norte chega a ficar acordado até tarde, no Sul vai dormir mais cedo, compensando assim seus calores, invertendo tudo seis meses depois.

Mas há um lugar em que ele sempre anda igual... É no Equador, aquela linha que divide a Terra em duas metades; aí, todos os dias ele manda a mesma brasa...

Mas nesse dia, o Sol estava, não se sabe por quais cargas d'água, muito estranho, muito apressado...; queria porque queria, ir logo dormir...

Já mandava antes do tempo, seus raios laranjas, mais quentes do que de costume, dispersando-os...

Sophia fazia uma busca, e busca em alto mar só se faz quando ainda é dia, a não ser em casos especiais... Tentou conversar um pouco mas o Sol não lhe deu ouvidos... A busca era importante, e ele, velho ranzinza, precisava colaborar.

O velho Lobo tentou de tudo, piscou faróis, balançou asas, até subiu mais um pouco, mas o Astro Rei não negociava...

Sophia então lembrou de ainda criança, a brincar de espelhos, a fabricar arcos-da-velha para descobrir-lhes os potes de ouro, e rápido pegou em sua bagagem, seu caleidoscópio digital, aquele que transmitia e recebia mensagens, até então desligado.

- Lobo!, rápido!, aproe o Sol..! - enquanto falava, já desmontava seu celular...

Lobo sem muito entender, aproou o Sol bem de frente, o que lhe fez pregar um pára-sol esverdeado no pára-brisa, pois ficara ofuscado...

Enquanto Sophia descobria a diminuta antena de seu aparelhinho, pedia ajuda ao co-piloto para que desconectasse o equipamento rádio de sua antena.

- Mas..., ficaremos sem comunicações!!! - ele alertou.

- Passe-me o cabo, rápido!, rápido! - sem dar-lhe ouvidos, exigia com o movimento da mão...

Piloto e Co-piloto entreolharam-se, deram de ombros e resolveram obedecer, pois não era a primeira vez que Sophia fazia algo inusitado...

Sophia, munida de um pequeno alicate, cortou fora o pequeno plugue, descascando o fio principal, e quando o encostou no seu pequeno aparelhinho, recebeu uma boa descarga de estática, ficou toda eriçada e ordenou:

- Liguem o rádio!!! - e apontou o aparelhinho para os dois motores direitos.

Ligaram o rádio e partículas magnéticas começaram a saltar, atravessando a minúscula janela e refletindo-se nas hélices prateadas e polidas.

A sombra da noite chegava-se rápida, e Lobo tratou de ganhar mais altitude, dando potência e empinando o nariz daquele robusto quadrimotor Lockheed P-3P Orion.

Os motores roncaram forte, zumbiram mais alto seus turbo-hélices, e lampejos multicoloridos começaram a jorrar em todas as direções, aumentando a luminosidade.

O Sol, vendo aquela maravilha, por instantes manteve-se quieto, e como gostou do que viu, aumentou também suas fornalhas, pediu à noite que aguardasse mais um pouco, pois que conversaria com a Dona Lua para vir mais cheia...

E despejou uma torrente de raios laranjas como ninguém nunca havia visto ou sonhado... Contente brilhou mais forte e mais intenso, e naquele dia foi dormir mais tarde, mais calmo e feliz, pois que nunca havia recebido de volta seus lindos raios...

Mais altos, a Lobos 601 logo avistou o que procurava, a embarcação perdida à deriva, logo anotando suas coordenadas. Remontaram o rádio, Sophia levou mais choques, e logo a ajuda foi providenciada.

Já pousados com a missão cumprida, ao passarem pelo corredor de Comando, desfazendo-se de seus acessórios, a Capitã que naquele instante cruzava com eles, olhou interessada para Sophia, agora ainda mais arrepiada, e em cumprimento deixou escapar:

- Belo penteado..! Depois você me informa quem é o seu cabeleireiro...

Foi um longo dia em que aquele esquentado, esquecendo a prática que só ele sabe, foi dormir mais tarde... No dia seguinte, jornais noticiaram que muitos Galos pelo mundo inteiro, haviam cantado diferente, num belo dia que amanhecera mais colorido...

* * *

Esperando por...

Todos os dias acordamos cheios de esperanças, afinal o sol está brilhando, a passarada já está cantando...

Não cansamos de esperar..., pois é gostoso a esperança...

É ela quem nos impulsiona, nos dá a energia do ousar.

Por quantas coisas esperamos..?



Esperando por...
(Paulo Boblitz – fev/2005)

Esperamos por tempos melhores, por alguém que não chega, pela tarde agradável, pela lua cheia para namorar...

Esperamos pela chuva da boa semente, pelo sol que acaba com o frio, pelo dia que termina com a noite...

Esperamos pela aposentadoria, pela cegonha que traz a vida, pelos filhos crescerem, pelo almoço que está cheirando gostoso...

Esperamos pelo décimo terceiro, pelo aumento no salário, pela sorte grande na loteria...

Esperamos pela carteirinha que libera a primeira entrada no filme impróprio até quatorze anos, pelos quinze anos, pelo primeiro baile, pela primeira noite dormida fora...

Esperamos pela primeira bebedeira, pela primeira transa, pela primeira carreira de um pai ciumento...

Espera-se por tantas coisas, que o Homem poderia ser conhecido como "esperador".

Por dias melhores, a espera se torna esperança. Bem pode ainda um tempo ruim, tornar-se em desespero.

Uma briga é sempre pelo destempero, de quem não teve tempo de esperar pela calma, e calma é coisa boa da alma.

Esperamos pelo ônibus, pelo trem, pelo avião. Houve tempo que esperava-se pelo bonde, quando ninguém tinha pressa...

Alguém agora, deve estar esperando que esta história acabe logo.

De esperar é a sala de espera, a fila pela vez, o número da senha a ser chamado, a barriga de prenhez...

Ninguém espera cair na malha do Imposto de Renda, nem furar um pneu, nem bater fofo na hora H. Ninguém espera pela morte, embora o seguro para a viúva já esteja feito.

De espera em espera, vamos vivendo e aprendendo, pelo menos a ter paciência... De vez em quando a espera nos faz ficar relembrando de alguns nomes feios, que aqui não posso citar...

A espera produz recompensas, e desilusões também. Quem sabe esperar, até ri por último, e a vingança é feita de esperas...

Na campana espera-se flagrar, aquilo que o flagrado não espera acontecer...

Esperamos o elevador, o telefone dar sinal, o sinal tornar-se verde, o guarda deixar passar a multa...

Esperamos a planta crescer para colhermos os frutos, e esperamos o animal ficar graúdo, para passarmos-lhe a faca.

Esperamos o vinho e o uísque envelhecerem, a cerveja ficar gelada, a velhice chegar para começarmos a reclamar...

Alguém esperou que o Esperanto se tornasse língua universal. Ainda espera até hoje, e continuará esperando.

O professor espera pelo fim da prova, o aluno pela campainha do recreio, o lutador que está perdendo, pelo gongo do intervalo, e o badalador, pelo fim de semana.

De espera em espera, sempre aguardamos o futuro, pois quem espera, ainda não satisfez o presente...

E presente é o que todo mundo espera ganhar: é no natal, é no aniversário, é no dia das crianças, no das mães, no dos pais, dos professores, dos namorados...

Quem espera sempre alcança, diz o ditado para nos fazer ficar esperando, mas quem sabe faz a hora, não espera acontecer, diz também aquela música, e quem não sabe esperar, come cru.

A pior espera é pela hora passar... Como é lento, o caminhar dos ponteiros...

A mais religiosa, é a espera pela cura. Até promessas são prometidas...

A mais precavida é não ser assaltado, e ficamos esperando pelo assalto, sem nada de valor...

A mais informal é sentado no sanitário, e a mais vexatória, é soltar pum em elevador quando não estamos sozinhos. Por essa ninguém espera, e quando sai, é sem querer.

Ninguém espera ser pego na mentira, mas continuamos a mentir...

Há somente uma hora em que somos os senhores do tempo: a da revolta; essa é a única em que ninguém espera nada. Ela vem e sempre passa... Do jeito que chega, de repente vai embora, e começamos a esperar novamente, pela vida, pela morte, pela salvação...

* * *

Dia da meditação

Meditar é um agrado que fazemos à nossa alma... Ela sempre se sente bem...

Meditar nos acalma, nos abre o coração, nos mostra algumas verdades..!

Meditar é olhar sem ver, é imaginar sem sonhar...

Parece difícil mas não é.



Dia da meditação
(Paulo Boblitz - mar/2007)


Peguei meu caniço e fui para o rio...; o dia estava gostoso, a sombra convidativa, a água a fazer barulho correndo, pequenas folhas transportando...

Abri minha cadeirinha, sentei no meio de alguns estalos, e recostei preguiçoso vendo o vento passar...

Suspirei, soltei um pum e a água tremeu, pois que foi peixinho para todo lado...

Desenrolei a linha, liberei o anzol e num movimento descompromissado, o lancei na água, só para vê-lo afundar...

O velho bagre se aproximou, deu uma cuspida para mim, quase acertando meu pé...

Olhei para ele franzindo a boca, entortando ligeiramente o nariz, como quem diz: "não tem um pingo de graça..."

- Se molhar a minha mão, arranjo uns peixinhos... - falou ele sem uma gota de vergonha.

- Sai pra lá!, bagre velho...; vê se estou lá na outra árvore...

- Tá não, porque você taí... - ele retrucou.

- Então vá cheirar niquim... - intimei novamente.

- Vô não, que aqui não tem niquim... Niquim só lá no vizin...

Então peguei um punhado de terra e fiz que jogava nele. Ele deu um salto e num mergulho desapareceu...

Puxei a linha com leve tranco, e o anzol aproximou-se brilhando, com uma gota de cristal querendo pingar.

Com cuidado, encaixei um miolo de pão no anzol e lancei a linha de novo; por instantes o conjunto boiou e depois afundou.

O que era de piaba logo se aproximou, e todas começaram a beliscar a pequena bolinha de miolo. Traíra que era bom!, nenhuma...

Devia ser o danado do bagre, afugentando todas...

O bagre eu já conhecia, fazia um bom tempo, desde quando ele ainda era menor, quando o separei de uma briga com um caboje, aquele peixe feio que sai da água e anda pela lama.

Desde esse dia que o bagre, agradecido, virou meu amigo, e de vez em quando me ajudava mesmo...

Nesse dia, o que eu queria mesmo era passar o dia, ver a água fazer marola, as piabas passando quase transparentes para lá e para cá, ouvir o barulho do mato, o fofocar dos pássaros, o coaxar de alguma jia.

Vez ou outra eu jogava uma bolinha de pão na água, e dezenas de boquinhas sempre famintas convergiam, e a bolinha logo ganhava movimentos, para um lado, para o outro, para baixo, e logo era roubada por outra boca mais atrevida, começando tudo outra vez.

O bagre velho apareceu e de novo perguntou:

- Vai querer pescar ou jogar pão fora?

Fiz uma bolinha graúda e joguei para ele, que num volteio só, a engoliu...

Satisfeito, querendo mais, voltou, lançou-me outro jato d'água provocativo, e argumentou:

- Se molhar a minha mão, eu arranjo umas traíras...

- Sai pra lá!, bagre velho..., não vê que estou apenas a meditar?

O bagre deu de bigodes (porque não tem ombros) e falou:

- Então joga mais uma, das grandes...

Fiz então uma outra bola de pão e joguei para ele, que saiu brincando devagar, lançando-a para fora e a abocanhando de novo...

As piabas, com a saída do bagre velho, logo fizeram ruma como a mundícia, como aquela que vemos, curiosa, observando alguma coisa ruim em praça pública.

Joguei algumas migalhas bem esfareladas, até para não causar confusão entre elas, pela competição, e fiquei observando aquele frenesi, a água em pequenas ondas ao Sol a refletir, e acabei pegando no sono, embalado pelos sons da Natureza.

Acordei com aquela água fria nos pés, que em pequenas cuspidas era jogada por todos eles.

Olhei para o rio e vi o que pouca gente na vida consegue ver: traíras, piabas, muçuns, um grande tambaqui, alguns tucunarés, e o bagre velho, todos ansiosos me olhando, como se estivessem dispostos organizados nas poltronas de um teatro, cada um a lançar pequenos jatos de água em mim.

Então perguntei:

- Ô bagre!? Cadê a cadeia alimentar?, aquele negócio de peixe grande comendo peixinho?

O bagre então respondeu:

- Instituímos o dia da meditação...

- Como assim!? - perguntei.

- Dia da meditação!, ninguém come ninguém! - respondeu.

- E por que esse dia da meditação? - perguntei novamente.

- Porque o pão do amigo é bem mais gostoso... - esclareceu.

Eu continuei com o ar de interrogação, e ele explicou:

- Como você não veio para pescar, combinei com todos que poderíamos perder o medo do anzol, e como haveria pão para todos, bem poderíamos esquecer aqueles pequeninos, de quem nos alimentamos.

Eu fiz que sim com a cabeça, e ele, desaforadamente perguntou:

- Como é.!?, vai ou não vai jogar pão?

Eu sorri para o bagre, olhei as traíras famintas, observei os tucunarés cercando todos com indiferença, e comecei a lançar grandes bolas exatamente para todos os maiores.

E fui repetindo a manobra, cada vez com bolinhas menores, para a turminha pequena, até que o pão acabou.

- Acabou o pão!!! - falei para todos.

E todos sumiram ao mesmo tempo, pois ninguém sabia ao certo quando esse dia acabava, e ele findando, as caçadas começariam de novo.

Agora, quando é dia da meditação, ficamos eu e o bagre a jogarmos bolinhas de pão para a turma toda, eu da minha cadeirinha, e o bagre recostado de uma pedra..., e quem disser que é mentira, é porque nunca pescou...

* * *

Dormitório enfezado

Nesta vida, nem tudo é ficção... Essa história retrata um período já distante, algo entre 1991 e 1994, quando trabalhamos em Urucu, no Amazonas. Para lá voltei em 1997, mas não foi a mesma coisa...

Turma boa foi essa daí de baixo, Vallagão, Custódio, Domingos, Bosco, Valdson, Igreja, Djalma, Francisco, Leoni, e eu, é claro.

A todos eles, as minhas saudades.



Dormitório enfezado
(Paulo Boblitz - jan/6)

Nosso dormitório nem era amplo, nem era pequeno. Cabiam nele três beliches, mais os armários para cada um, uma pequena mesa de aço e umas três cadeiras. Nele ainda havia um banheiro para as nossas necessidades.

Ficava no fim do corredor, o primeiro a receber o calor do Sol implacável durante a tarde inteira, e quando à noitinha chegávamos, nele ainda encontrávamos aquele clima de estufa. Usávamos o dormitório apenas em duas ocasiões: depois do almoço para um pequeno descanso, e durante a noite inteira para o sono.

Um contêiner não dá tanto trabalho quanto um amplo salão, pois num contêiner, ou estamos do lado de dentro, ou estamos do lado de fora. Num dormitório normal, com algum espaço sobrando, sempre têm os colegas geladeiras, que ficam sempre no caminho ocupando as vias de transição, normalmente com os cotovelos arqueados; têm os colegas troncos, que sentam-se no chão com as pernas estiradas, e necessitam ser saltados como se fossem obstáculos. São colegas que sabem ocupar e monopolizar de fato, qualquer espaço.

Seis marmanjos sob o mesmo teto, carece de muita paciência, de boa disciplina, de grande desprendimento, pois ficamos a tropeçar constantemente em botas, capacetes, meias e outras porcarias mais. Assim, regras são estabelecidas ao longo da convivência, como a Constituição da Inglaterra, que foi sendo construída ao longo dos milênios, de acordo com os fatos acontecidos. Desta forma, íamos, todos os dias, engordando a lista da organização, de uma forma bem democrática ou simplesmente por pura pressão.

Seis marmanjos morando juntos, no mesmo quarto da pensão, tem um canto gargalo que afunila as contradições: é ele mesmo, o banheiro..., pois todo mundo acordava na mesma hora, e queria fazer xixi, escovar os dentes, tomar o banho, tudo isso com privacidade, e logo, logo, apareciam as cobranças, pancadas na porta, "sai daí!, seu isso ou aquilo!, pois se não, eu faço nas calças...", e outras construções menos alinhadas, proporcionais aos momentos de aflição, segundo cada condição, destinadas aos sempre descansados...

Assim, é fácil imaginarmos as pequenas contendas no dia-a-dia, pois não raro encontrávamos toalhas molhadas em nossas camas, um pé de meia mal cheiroso na nossa roupa, e outras coisas mais, bem irritantes, somadas ainda à falta de trato, quando algum pertence era trocado pelo pessoal da hotelaria, responsável pela arrumação dos dormitórios.

Numa convivência comum, mais de um vira sociedade, e é a união da maioria quem dita as normas, sejam elas justas ou casuísticas.

Soltar puns no dormitório era terminantemente proibido, aliás a primeira proibição na nossa Constituição, pois sempre tem um engraçadinho mais desatado ou folgado, que acha o ato completamente normal e natural.

No Amazonas, o ar teima em ficar parado, como alguma bolha sem gravidade, assunto para tese de algum especialista mais letrado, mas no nosso caso um problema bem real. Assim, embora o artigo dos puns fosse respeitado, não havia jeito de evitar a poluição, pois sempre que alguém usava do sanitário, ficava preso naquele compartimento especial, bolsão de ar contaminado, que a janela do fundo não tinha como efetuar a sucção.

De certa forma, era um crime contra a comunidade, pois por quase meia hora interditava a pequena sala de solidão, mas crime maior fazia um dos nossos, notório pelos ares pesados, que passava na nossa cara, o fazer jus dos adicionais, valor monetário ganhado a mais, que a lei manda pagar quando o trabalho é confinado...

Quando o colega entrava na sala do trono, ainda mais dando palmadas na região do umbigo, era a senha para nos levantarmos, afinal o trabalho nos conclamava, e quem sabe no dia seguinte, assim almejava a nossa grande esperança, o colega ficasse trancado, devidamente obturado, entupido na chula linguagem, e o nosso descanso mais prolongado.

Não desejávamos isso por mal, mas sim por pura sobrevivência, pois que mesmo com a porta fechada, os gênios esfumaçados conseguiam escapar pelo rés do chão, e como radioatividade espalhando-se, acabava seqüestrando nosso oxigênio...

Fizemos de tudo para combatê-lo, até o ameaçamos de expulsão, mas ele sempre se saía, afirmando ser tudo aquilo, puro fruto de obra natural...

* * *

Campanha contra o estresse

Amigos,

Pura ficção, a minha Campanha contra o estresse, mas que bem tem tudo para funcionar...

De repente alguém tem um problema assim...



Campanha contra o estresse
(Paulo Boblitz – mai/2007)


Outro dia acordei bem inspirado..., nem antes, nem depois da hora certa de acordar, como se acordar tivesse hora certa, e depois voltássemos a dormir novamente...

Levantei e fiz aquelas coisas de praxe que todo mundo faz quando levanta, mas com um detalhe...

Depois fui para a cozinha e coloquei água para um bom café..., aliás, café não devia ser para ser tomado, e sim apenas para ser cheirado...; não há nada igual como aquele aroma.

Enquanto a chama esquentava a água, fui lá fora de mansinho e lati bem feio para o cachorro do vizinho..., o vizinho não!, o cão que ele cria, e que toda vez que eu passo, late para mim...

Ele entortou a cabeça e ficou me olhando com aquela cara de cachorro quando não entende nada.

Sabem aquele detalhe que eu me referi lá em cima no segundo parágrafo? Vou contar agora...

Quando eu fui, pé-ante-pé até o portão do vizinho, latir para o cachorro dele, junto levei o detalhe – uma lata velha de leite em pó, onde havia feito xixi...

Depois dos meus latidos, derramei todo o conteúdo da lata ao longo do portão do danado..., o vizinho não!, o cachorro dele..!, ao tempo em que o lembrava que aquilo era para ele ver como era bom ficar mijando nos pneus dos outros.

Confesso que não foi uma boa idéia..., pois que ficar a ver o cão a cheirar insano o pequeno pedaço de chão, e a iniciar uma seqüência de mijadas que não acabava mais...; o café não prestou e ainda perdi minha hora.

Hoje verifico que a idéia não foi nada brilhante, pois a fedentina ficou insuportável, e o cachorro do vizinho agora late muito mais, acho que me xingando...

Numa hora em que eu passava de volta, depois do trabalho, o cachorro do vizinho..., o cachorro não!, o vizinho..!, parou-me e fez queixa do pobre cão, pois que alguma coisa deveria estar errada com aquele animal, já que desembestara a fazer xixi no portão, bem no lugar do ferrolho onde ele precisava pôr o dedo...

Não titubeei..! Na bucha eu disse que aquilo era verme, e dos bons!, claro que enfatizando a ruindade do verme como sendo de difícil combate...

Aquilo seria um caso para uma super dose de vermífugo..., expliquei com ar bem sério para vizinho.

Dias depois, a catinga aumentou..., e o cachorro, com olheiras, nem tinha mais coragem de latir...

Coisa boa é quando resolvemos os nossos problemas. Se aquele filho de uma égua voltar a fazer xixi na minha roda – é!, agora só pode ser o cachorro! – vou matar ele de choque...; 220 Volts..., bem no pinto!

Caso resolvido, novo caso a resolver...

Arrumei um retrato de um político e preguei bem no meio da minha parede, lá no meu trabalho; todas as vezes em que eu passo pela cara besta sorridente dele, tasco-lhe um cotoco...

Sabem que a moda está pegando!?

* * *

Doidinho

Doidinho estava impaciente para ser publicado...

E eu não lhe tiro a razão..., afinal, quem segura um Doidinho quieto?

Doidinho hoje já está mais grandinho, não faz mais confusões...

Está crescendo e perdendo a graça, igualzinho a todos nós...



Doidinho
(Paulo Boblitz – jun/5)


Doidinho é todo aquele que, na sua santa inocência, comporta-se como um verdadeiro maluquinho, um pião que roda sem sentido, uma roda que gira sem parar, azoado que não pára para pensar, cheio de energias, um capeta!, no sentido real da palavra...

Quem não conhece um doidinho por aí? Ou quem nunca chegou a conhecer um doidinho, ou uma doidinha? Quem até já não foi um doidinho, ou uma doidinha quando criança?

Eu já conheci alguns, posso afirmar, e ainda os conheço... Alguns deixaram de ser; outros continuam sendo até hoje...

O fato é que o mais recente conhecido se chama..., bem..., deixemos esse negócio de nomes para lá, afinal o que importa é a doidice, não o santo maluco... O que importa é que todo doidinho não tem maldade, nem juízo bom em certas horas. O que importa é que todo doidinho vive livre, como o vento e a água, sempre a aprontar, sempre a inovar, sempre a subverter qualquer ordem, seja lá que ordem for...

Havia chegado cansado da roça, lá meio noitinha, doído nas costas, queimado na testa, os pés vermelhos de barro, a camisa úmida de chuva, a barriga roncando nervosa, a paciência no limite, naquele limite que todos nós perdemos a graça, que o insosso toma posse, que o cinzento se faz iluminar...

Quando acabei de estacionar o carro, também todo sujo que nem eu, abri a porta e não acreditei. O mundo inteiro estava cheiroso... Funguei duas vezes para ter certeza, e era perfume mesmo... Não vi ninguém passando; então só podia ser alguém tomando banho pelo condomínio. E que banho! Que sabonete!

O perfume não era do tipo contundente, nem do modelo enjoado...; caía suave e aspirava simpático, adentro no meu nariz. Feminino pela natureza, quebrava minha áspera chegada, suavizando meu vir em casa, desanuviando meu dia duro lá no mato...

Meu filho, capengando com o dedo quebrado, uma bota branca até quase o joelho, chegou-se para ajudar, pois tralha boa de carregar sempre anda comigo: é bota, é garrafa térmica, é corda comprida demais, é marmita da bóia que foi fria, e um outro bocado de coisas que eu acho importantes e necessárias, além da bandeja de ovos, das bananas maduras, da porção de laranjas, de coisas boas da terra.

- Tem alguma coisa pra levar? – perguntou ele.
- Tem... – respondi.
- Que cheiro é esse? – perguntei curioso.
- Foi o doidinho com o desodorante da mãe dele, correndo pra cima e pra baixo...; gastou o tubo inteiro – respondeu sorrindo.

E eu sorri também...

Quem sabe se ele, arriscando umas boas palmadas, não perfumou a vida de nós todos? Não terá sido o bom perfume, quem desfez as rugas do meu semblante? Não foi o doidinho quem produziu a amnésia do dia ruim?

Bom doidinho duma figa..., e subi pensando nele, pirralho peralta como um dia também fui, sentindo o cheiro me acompanhando escadas acima, e a cada fungada, mais uma risada, de coisa inusitada nunca vista, um condomínio inteiro perfumado, cheiroso como sovaco de mãe bonita, e tudo por causa de um doidinho feliz...

* * *

As Histórias que ainda não escrevi

Eu ia publicar a história do Doidinho, mas deparei com esta daqui, e fiquei emocionado como quando a escrevi...

Preciso descansar como descansava..., dar mais tempo para a própria mente..., mas o que é um batente?, se não mais um detalhe a pular...

Banhos!?, eu os continuo tomando..., mas a mente ocupada, ou canta ou assobia...

As Histórias que ainda não escrevi...; quem sabe por onde elas andam?



As Histórias que ainda não escrevi
(Paulo Boblitz - mar/2007)


Todas as noites quando chego em casa, a hora do banho é a mais gostosa. Adoramos a água e nem nos damos conta.

Ali inicia o meu relaxar, o meu preparar para o recolher, bem dormir para bem acordar, mais um futuro a conquistar...

Ali inicia a minha série de bocejos, meus recados ou as mensagens que recebo, que mais um pouco será bom o deitar...

Teimo em ver as notícias, e o controle remoto não tem descanso: crime eu pulo fora; seqüestro e assalto eu descarto; bala perdida eu saio zinindo daquele canal; enchente só em São Paulo todos os dias, não sei por que ainda noticiam...

O fato é que o banho é de águas mornas, às vezes frias para um choque térmico, que abrem e fecham todos os poros, retiram a sujeira de dentro e de fora, pois que o sangue torna-se mais ágil...

Ficamos mais leves e perfumados, por isso mais amáveis, pois que até nós, nos mais amamos...

Os olhos pesam, o sono teima em se instalar, e antes que adormeçamos, precisamos orar... Começo então a pedir por todos os meus que ainda estão, e por todos aqueles que já se foram. Rezo o Pai Nosso e ele embola, ou os pedidos não chegam ao fim; é o sono que vem e que chega, diz para mim que quem manda é ele...

Deus não Acha ruim, nem também Seu Filho Jesus, pois meu sono é coisa Deles, vem a mim para eu poder sonhar...

Às vezes consigo a tudo pedir, nisso nunca o dinheiro, o Pai Nosso inteiro soar, e o sono?, nem sinal de aprontar...

Então lembro que não pedi algo, aproveito e peço logo, peço até para a "repactuação" não passar, perdoem-me todos, por eu nisso ver a vergonha.

De tanto pedir, às vezes eu mudo a rotina e acabo rezando pelos amigos, pelos inimigos, e aí peço a saúde, a iluminação, a sabedoria, a paz, e tantas outras coisas boas para a minha família, e para mim também, né meu Deus.!?, pois isso está subentendido...

Algumas histórias chegam nessas horas, e começo a escrevê-las na mente, só para no dia seguinte acordar esquecido... Às vezes eu levanto e vou para a mesa, perco o sono mas ganho alegria, ou perco o sono e não ganho nada, pois a história só tem bem o começo...

Nada eu jogo fora, e uma vez quase tudo perdi, pois onde guardava os rabiscos, veio um solvente e misturou todas as tintas, e com elas as idéias, uma história com todas as outras, um engodo de fazer outra história... Salvei pouca coisa que hoje bem guardo, perfurado encadernado, que um dia, o cupim haverá de comer...

As histórias esquecidas, um dia elas voltarão e eu prometo levantar, escrevê-las para o meu prazer, para bem a Deus honrar...

Os momentos existem, e cada um tem o seu dia, e como tomo banho em todos eles, relaxo para quem sabe, poder criar..., ou quem sabe, bem relembrar...

* * *

A Loucura

Quem de vocês já não fez uma loucura na vida?

Loucos são os que não fazem nada..., ou todos aqueles que já de tudo fizeram...

Para vocês, A Loucura

Fiquem loucos, reajam, mas não joguem pedras no povo..!



A Loucura
(Paulo Boblitz – abr/2005)


Louco é todo aquele que tem sempre uma visão diferente do que consideramos normal. Isso não quer dizer que sejamos loucos, na visão dos próprios loucos, afinal, eles nem ligam para nós...

O visionário é o louco que deu certo. O apaixonado faz loucuras em nome do amor. Os pais enlouquecem com os filhos, ainda mais se forem dos outros.

O verão produz loucuras nas pessoas; elas tiram as roupas e queimam-se ao sol. O outono deixa as árvores carecas, preparando o sono do inverno, para acordar em primavera, em explosão de cores, em perfumes para o amor, bebês para todos os lados, a vida em resplendor...

O gênio pode ter cara de louco, e às vezes, a loucura é genial. A abstração é a loucura passageira, para a coisa louca poder vingar e florescer...

A droga produz o mergulho louco nos desígnios da morte, e vez ou outra não há volta. A volta louca faz o cão em busca do rabo, em triste perseguição.

O homem é louco por natureza, e a Natureza fez o homem meio louco. Se não aceitamos a nossa própria loucura, às vezes admiramos as dos outros.

Ser louco requer coragem, e coragem demais é uma loucura. Só morre afogado quem sabe nadar, ou quem não sabe também, quando cai dentro d'água...

A loucura é a insana vertigem de quem vê diferente, ou de quem apenas vê onde ninguém nota nada. Se falar sozinho é doidice, então rezar é ser louco por Deus.

Fazer contas nos deixa loucos; entrar em filas e vê-las com furos, nos tira o discernimento; bater com a cabeça na parede..., também.

Rir sozinho é doidice? Não..!, é só mangação da memória.

E falar com os próprios botões? Também não...; aí só vemos circunspecção, só sentimos a alma em monólogo, interpretando as verdades do Pai.

A loucura é contagiante, pois faz todo mundo sorrir, dançar, se abraçar, cantar, gritar, amar...

A contemplação é o entusiasmo da alma, que fica em louco silêncio a mirar, e a aprender, a deduzir, a sentir o Pai Deus como É grande.

O amor é o coração em louca disparada, pelo par eqüidistante, alma gêmea segundo os poetas.

A vida é uma seqüência de loucuras altas, e de loucuras baixas... Nossa insanidade é indiretamente proporcional à idade, ou, em alguns casos, a idade é quem a traz.

Passamos a vida inteira como loucos, correndo atrás da vida, e nos consideramos sãos. Vai ver que são, é o louco..., que apenas vive, que cria seu próprio mundo, e nele entra com corpo e alma. As crianças são os loucos adultos, pequeninos. Fazem caretas e gesticulam, sonham com a Lua, dormem como anjos, e acordam feito capetas. Quem nunca foi doidinho na vida?

Somos doidos por comida, por dinheiro, por sexo e diversão. Organizamos para depois desorganizar. Juntamos para depois gastar. Não nos poupamos para depois viver... Sempre queremos mais...

Eu não sou doido..., vocês é que são... Ninguém conjuga na primeira pessoa do verbo...

Loucura..., todos deveriam tê-la, e parece que muita gente tem, pois ela é a mola do viver. Em seu nome, cometemos diversas maluquices, e o mundo não seria mundo, se todos fôssemos apenas normais. Seria uma chatice. Não haveria criação...

* * *

Não é tão triste ser uma vaca...

Meu sonho é um dia escrever um conto de fricção... Não, vocês não leram errado...

Pode até ser ficção, mas fricção não é aquela coisa de esfregamento..?

Já imagino todos vocês, mentes maliciosas, erotilídeos... Não estou dizendo.!?

Erotilídeos são todos aqueles da família dos insetos coleópteros, ovalados, de 2 até 23mm de comprimento, cores vivas e matizadas, e antenas com 3 segmentos. Vivem em árvores e alimentam-se de cogumelos. (Dicionário Aurélio...)


Não é tão triste ser uma vaca...
(Paulo Boblitz - mar/2009)


Sou amada sim, mas sou usada... Minha comida está sempre pelo chão, verdinha e macia, ou no cocho picada, porque meu dono é um sujeito legal. Às vezes eu ganho farelos e outras guloseimas, pura comida de vaca que vocês não conseguiriam entender...

Vez ou outra me deito à sombra e fico morgando o vazio, apenas mastigando uma comida sem fim que vou arrotando até ficar com o queixo doído; aí me levanto e começo tudo outra vez...

Sou calma, bonita e boa de leite, e tudo o que é vizinho quer um filhote meu...; trazem os touros deles para namorar comigo, uma falta de consideração, pois até parece que sou máquina de parir bezerro. De quem eu gosto já nem sei, pois foram tantos...

Acordo com o Galo maluco cantando, pois ele pensa que é despertador. Mais um pouco chega o meu dono com um balde e começa a espremer minhas tetas; de tarde ele volta de novo, e fico me perguntando por que ele não faz isso com a mulher dele?

Leite, eu tenho para todos...; só acho que não está certo deixar minha filhinha presa a noite inteira, e só depois que ele quase me esvazia, é que ele solta a pobrezinha, que corre cheia de fome para mamar feliz. É nessa hora que dou um banho nela, lambendo-a com a minha língua áspera que mais parece lixa.

Sou malhada e me chamam de Lavandeira, como aquele passarinho branco e preto que vez ou outra pousa em minhas costas e inicia uma faxina...

Nasci filha única de uma outra vaca também malhada, que não cheguei a conhecer muito bem, pois fui desmamada com pouco tempo, época em que chorei por quase uma semana...

Tenho uma Garça amiga que me acompanha o dia inteiro, eu comendo no pasto e ela tomando conta para ver se não pula algum inseto que tenha medo de minha boca. Acho que é por isso que ela é magra...

Todos os dias ela chega e me traz as últimas fofocas do mangue, onde passa as noites trepada nos pés de Gragerus, vendo os caranguejos na lama fazendo espuma...

Conheço um Cavalo meio maluco que às vezes corre atrás do povo. Ouvi dizer que foi trauma na infância. Não conversamos, pois não nos entendemos, ele relinchando e eu mugindo...

Outro dia a minha Garça amiga trouxe uma notícia boa...; tenho parentes lá no calçadão, pois ouviu alguém chamando uma mulher de vaca...

Minha bezerrinha a cada dia fica mais bonita, também malhada e sapeca, e vez ou outra sai cabriolando com os cachorros do meu dono, que latem e correm, e cabriolam também levantando poeira. Fico olhando de longe, orgulhosa, e quando a vejo se afastando, logo dou um berro e a chamo de volta. Acho bonito quando o meu dono a afaga, e sorridente a chama de Lavandeirinha, o meu nome...

Quando chove, fico mais alegre, pois a água refresca, faz nascer o capim mais forte e mais verde, enche o pasto de vida e minha vista se transforma...

Mas querem saber qual é o meu maior prazer? É ver aquela criança rechonchuda nos braços da minha dona, cheia de saúde por tomar do meu leite...; é saber que de mim fazem vitaminas, bolos, pudins, cremes e queijos, e uma infinidade de outras coisas que fico apenas cheirando, pois aquilo não é comida de vaca...

Dizem que sou sagrada na Índia, mas não ligo...

Quando meu dono sai recolhendo o meu cocô, sempre o escuto falar que as minhocas vão adorar... Gostaria de conhecê-las, mas são criadas escondidas dentro de um galpão, numa espécie de canteiros...

Às vezes faço cocô num canto isolado e o meu dono não vê, e dele nascem muitas plantinhas; são as sementes que engulo... Os pintinhos o adoram porque ele é quentinho, onde a Dona Galinha os vêm ensinar na arte do ciscar... Com Dona Galinha não tenho muita conversa, pois ela só sabe cacarejar..., e aqui só entre nós..., faz um escândalo quando bota um ovo...

Preciso ir embora, pois vem chegando o meu dono com uma escova para me dar um banho... É gostoso quando tomamos banho, ficamos cheirosas, os carrapatos todos caem e a coceira logo passa. Enquanto meu dono me escova, vai também falando palavras bonitas e isso me faz bem...

- Lavandeira!?! Vem cá..!, minha malhada bonita...

Viram? Até logo...

* * *

Não escovem os dentes com sabonete...

Hoje, no trabalho, acabou a minha pasta..., mas o quê, não acaba nesta vida..?

Não me aperto com coisa alguma, e sempre dou o meu jeito...

Dentifrício não é detergente? Sabonete não é detergente fino e cheiroso?

Não é certo que a mucosa é uma pele fina..?

Passei a tarde inteira com gosto de perfume de bunda de nenem na boca...

Não escovem os dentes com sabonete..., mesmo que estejam amando...

É ridículo! O café fica com gosto de sabonete..., a água fica com gosto de sabonete, o biscoito fica com gosto de sabonete, e a gente acaba parecendo uma pia...

Preciso controlar meus improvisos...

* * *


Como vivo amando, mando
O Amor para vocês...

Amor é de graça, mas precisa ser conquistado... Amar é também você não estar nem aí..., assinar o cheque não reparando o valor..., levar um choque e sentir cosquinhas...

Eu acho que vocês deveriam mais amar..! É simples!, acreditem..! É só querer..., e ele sempre está nas coisas simples...

É..., eu continuo amando...

Assim, quando vocês me mandam broncas..., num tô nem aí...

É..., eu tô amando...; tô até escrevendo errado!!!


O Amor
(Paulo Boblitz – jul/2008)


O amor não tem idade, não tem formato e nem formulação; não tem data e nem hora certa...

Ele vive por aí, solitário a navegar, por todos nós a visitar, vez ou outra um carinho para um experimentar, mas não estamos acordados ou receptivos. Ele passa e vai embora, enfim tentou mas não nos acordou.

Um sentimento sem cor definida, pois assume todas as cores conforme desejamos; uma atmosfera generalista, pois assume todos os ares que inspiramos...

Acho que estou amando...

Amor é impossível, é dinâmico, é passageiro, é profundo, é muito louco!, é sobretudo um renascimento, pois acordamos para um novo que há muito nos esquecemos...

Amar é inquietar-se, é desejar, é sentir a falta, é misturar as coisas feito bobo, é ser romântico diante da normal frieza...

Amar levanta qualquer ânimo há tempos aquietado, nos dá outros motivos há muito secundários, nos apresenta um espelho onde necessitamos melhorar...

Voltamos a uma juventude espiritual, pois que amor não fica cansado, não fica perdido, não fica desiludido, mas faz perder e cansar e desiludir como nenhuma outra coisa que conhecemos.

Não inventamos o Amor; ele nos inventou e nos usa para poder continuar a existir... Um paradoxo? Um mistério, principalmente do ar?, dos lugares?, do comunicar?

O Amor começa pelos olhos, depois segue pelos ouvidos, por último se instala pelo tato, quando misturamos o verbo com a beleza, com o calor, com a textura, com a cor, com a composição inteligente do que falamos e escutamos; juntamos tudo e guardamos no coração... A razão se desguarnece, o senso perde a vigília, o doce assume o comando, a felicidade se apresenta e não cobra nenhum pedágio - simplesmente amamos, nos deleitamos em apenas ver, em apenas escutar, em fechar os olhos e sentir o doce aroma, o meigo do falar...

Creio que estou amando...

A saudade só vem para atrapalhar; sua presença é sinal de que a falta se intrometeu, pois amor inclui sempre mais alguém. Se a saudade está presente, alguém está longe, o amor em fio delgado ainda ligado, pois que tem uma densidade infinita, ainda existindo, mesmo que a quem amamos tenha partido desse mundo para um outro muito distante.

Amor não segue o tempo, mas requer o tempo dele, nos escraviza enquanto dura, nos requer enquanto existe, nos faz sonhar enquanto nos ocupa...

É..., eu estou amando...

* * *


Tencionava escrever a minha última(?) história sobre aviação, que é um pouco mais do que subir e descer, fazer piruetas, planar ou mergulhar...


Essa foi um tanto radical, pois que o avião ficou todo destruído..., e o motivo..?, vocês depois não irão acreditar...

Resolvi antes, contar uma outra...

Telefonando para o Céu não é nova, mas me é muito gostosa...


Telefonando para o Céu
(Paulo Boblitz - nov/5)


Peguei o telefone para tentar ligar para o Céu, mas onde encontrar o número, pois o que eu havia anotado, sumira do meu bolso como por encanto. Rebusquei em todos eles e olhei entre todos os outros papeizinhos que sempre guardo com pequenas anotações, mas nada do número do Céu.

Será que eu havia sonhado? Não..., eu tinha certeza que havia anotado, mas, atarefado, havia deixado a ligação para depois.

Procurei nas gavetas, dentro de pastas, entre outras muitas coisas, mas não pude encontrá-lo. Meu pequeno papel havia desaparecido. Será que alguém o havia pegado..?

Bem que eu poderia ter ligado naquela hora, mas estava ocupado, daquelas ocupações que nos produzem perdas, se delas não cuidamos logo. Quem sabe agora o telefone não mais exista, ou a janela tenha sido fechada?

Pensando agora, mesmo que houvesse perdido alguma coisa, deixando a ocupação para depois, mais tarde eu poderia a tudo recuperar... Quem sabe eu ainda possa conseguir..? É só imaginar e raciocinar, tentar me lembrar..., onde é que eu fui guardá-lo?

O número era pequeno, assim como céu se fala bem rápido; e raciocinando, achei que deveria ser 3521..., mas faltava alguma coisa, pois acho que o número era um pouco maior..., ou seria menor.!?

Já sei..., deve ser o DDD a faltar..., ou seria o DDI..? DDI logo descartei, pois o Céu não fica assim tão longe, é só olhar para cima e o vemos o tempo inteiro. Então deveria ser o DDD, pois embora não tão distante, ainda ficava um pouco longe daqui do chão.

E por mais que procurasse, na mente ou em algum outro lugar, não conseguia encontrar um código que fosse o código do Céu, e mesmo que encontrasse algum, quem seria a Operadora? Não deveria haver nenhuma Operadora a intermediar qualquer conversa com o Céu, e assim, resolvi experimentar o 3521, mas só dava ocupado... E tentei mais por muitas vezes, mas o telefone não dava trégua no pu-pu-pu de ocupado. Seria alguém com algum assunto muito longo?

Olhando o número à minha frente, logo observei: 3 da letra "C", 5 da letra "É", e 21 da letra "U"..., e resolvi checar o alfabeto novamente e..., bingo!, descobri que havia considerado a letra "K" no alfabeto, mas "K" há muito tempo que não usamos.

Retirei o "K" daquelas letras, refiz as minhas contas e acabei encontrando outro número, agora com menos um no alfabeto, chegando no 3520: três mais cinco..., oito!, mais 2..., dez!, nove fora, um...

Ajeitei-me na cadeira bem animado, dei um peteleco no papel..., é isso aí!: dez são os mandamentos, e um deve ser do Primeiro, Primeiro de Meu Deus, de Quem tudo fez e criou.

E logo estava a discar o novo número, que chamou, chamou, e chamou..., e ninguém atendeu... Olhei o relógio e já passava das cinco da tarde. Será que lá também havia expediente? Ou será que não havia ninguém na sala? Ou quem sabe esse não era o número correto? Levantei e fui embora; amanhã tentaria novamente.

Em casa procurei mais um pouquinho, mas nada do papel pequenino. Tomei um bom banho, jantei e arrumei algumas coisas; calculei umas contas aqui, escrevi um pouco de prosa ali, e quando o sono me fez piscar, deixei um pouco para o outro dia e fui deitar. Dei boa noite para Jesus e ao nosso Pai, e acho que adormeci no meio da oração, até que o telefone tocou e atendi:

- Alô.!?

- Você ligou para cá?


E passei a noite toda conversando, até o despertador tocar...

* * *

Glossário:

- DDD ou DDI = códigos de área, local e internacional, respectivamente

- K = letra recentemente reincorporada ao nosso alfabeto

* * *


Reconheço que o meu gênio sempre foi o meu pior inimigo..., e o meu melhor amigo também...


Reagimos conforme nos reagem...; essa é a regra normal..., e por isso, muitas vezes conquistamos respeito, quando do outro lado existe o honesto.

Assim foi no meu dia da prova, um dia que jamais esquecerei, por tamanha pressão. Passei no exame, pelo menos umas duas vezes, no mesmo vôo...

Hoje eu acho graça, como sempre achei, das coisas porque sempre passei..., e ainda passo...


O dia da prova...

(Paulo Boblitz - mar/2009)


A manhã estava cinzenta e pequenas gotas iam se formando no pára-brisas do pequeno Uirapuru, um monomotor de asas baixas e curtas, metálico e muito instável...

A chuva diminuia a visibilidade, pois chuva é água caindo, é coisa ocupando o ar...

Cada gota parecia grudar-se por alguns instantes naquele acrílico moldado, e tão logo ia ganhando mais um pouco de volume, saía em longo escorregão na direção empurrada...

Eu sempre gostei de ver gotas num vidro...; chegam e se vão, conforme vão se unindo...

Cada gota é um mundo, uma estrela, uma lente..., nos torna a mente em descanso, nos reflete os pensamentos, nos acalma a visão, nos interpõe o fundo com o presente...

O barulho da chuva era abafado, pois o motor havia sido acionado, ronronando em marcha lenta...; um motor logo ali na minha frente, potente e disposto...

Fazia calor, pois a capota estava fechada para não nos molharmos...

Desta vez não seria instrução, não seria passeio...; meu examinador recém acabara de me dar a mão, apresentando-se...

- Ten. Cel. Av. Façanha... - enquanto me lançava ligeiro sorriso...

Devolvi o sorriso mas estava acuado, pois dia de prova é dia decisivo...

- Você será o meu primeiro aluno examinado...; esse é o meu primeiro vôo como Checador - disse-me ele...

E eu fui o sorteado...

Raciocinando, verifiquei duas possibilidades: primeira vez, não exigirá muito..., ou, simplesmente cumprirá à risca o manual...

Aguardava a ordem de iniciar o taxiamento, enquanto ele escrevia algo numa prancheta...

Terminando, virou-se para mim e com um sorriso mandou que fôssemos em frente. Lancei um olhar para o Bibiu, que já estava com o polegar me desejando sorte, e outro para o encarregado do pátio, aquele que nos entregava a aeronave, a parecer indiferente...

Soltei os freios e dei motor, o mais suave possível, pois me lembrava do conselho do Bibiu: "voe redondo..!, voe redondo..!"

O dia não estava começando assim tão redondo, pois preferia um dia mais claro...

Calado, seguia taxiando devagar sem pressa, mãos nos comandos, atenção explícita para o avaliador notar.

Parei na interseção, verificando possível aeronave em procedimento de pouso ou decolagem...

- Pista livre e desimpedida... - falei, virando-me para ele.

Ele fez que sim com a cabeça e me incentivou.

Soltei novamente os freios e em curva segui até a faixa central da pista, num taxiamento seguro e contínuo, sem trancos, sem titubeios...

A chuva continuava, alternando as gotículas que teimavam parecer pérolas em meu pára-brisas, ligeiramente apressadas pelo vento da hélice, que as escorria sem cerimônia..., cada uma em trajetória distinta, deixando pequenos rastros...

Chegamos na Bola e me posicionei para o check-list, que em voz alta fui cantando. Ele deveria estar a me acompanhar, pois já deveria ter tomado conhecimento das características do Uirapuru. Terminei o procedimento, pesquisei a reta de aproximação e segui para o centro da pista, posicionando-me para a decolagem.

Já estava dando manete no motor, quando a mão dele abortou...

- Cadê o capacete?

Foi uma pergunta de surpresa e por instantes me desconcertou...; uma pergunta que poderia ter sido feita lá bem atrás!, ainda nos hangares..!

- Nunca treinamos com capacetes!, Senhor...

- Mas o aviso está aí - apontava-me a pequena placa bem defronte de mim piloto...

Parados na cabeceira, adrenalina aumentada, decolagem no espírito já liberada, e um sujeito a me perguntar por capacetes!? Dei de ombros e deixei claro que ou voávamos sem capacetes, ou retornávamos para o hangar.

Ele havia me deixado com raiva...

Parecendo ponderar sobre a minha situação de civil, aquiesceu e mandou-me adiante...

Que o Bibiu fosse para o inferno com o vôo redondo dele... - pensei.

Empurrei com força a manete dos gases e o motor explodiu em rotações, fazendo o avião saltar com vontade, pois uma coisa que o Uirapuru tinha, isso se chamava de motor, um Lycoming 160 cavalos, a 2.700 rpm, com muita disposição.

O avião saiu em disparada a soltar bastante zoada, e nas 50 milhas náuticas (cerca de 92 Km), cravadas, puxei o manche e o monomotor desgrudou, meio mole se sentindo pesado, como numa rasante em plena decolagem, obrigando-me a uma razão de subida suave. Normalmente esperávamos pelas 55 NM, mas eu estava invocado...

Fomos para a praia seguindo pelo corredor normal, em leve diagonal para a esquerda...

- 2.000 pés! - seco, ele me ordenou...

Estabilizei numa boa razão de subida, agora já mais calmo, e aos 700 pés já alcançávamos a praia, na época um local ermo cheio de dunas... Ficaríamos voando em círculos até os dois mil pés, altitude onde ele provavelmente me cobraria as perdas, mas, sem aviso ele tirou motor e gritou...

- Pane!

Mais uma de surpresa..., pensei eu..., mas eu estava bem treinado, pois pane é coisa séria e acontece sempre sem maiores avisos, e até aquela data eu já havia passado por duas verdadeiras... Já estava conduzindo o avião para um pouso seguro, quando ele interrompeu e mandou que subíssemos novamente.

Não entendi, mas a resposta veio em seguida...

- Você não estava seguindo os quadrantes..!

- Quadrantes!?, quais quadrantes!? - perguntei irritado.

- Em pane, verificamos os 360 graus, escolhendo o melhor local... - ensinou-me ele.

- Não estávamos numa boa altitude..!, e eu já conheço o bom local..!, e eu não sou nenhum dos seus Aspirantes! - deixei claro para ele, berrando por conta do barulho do motor que agora subia.

Como que acordando, perguntou-me mais humilde:

- E qual seria..., esse local..?

- Pane! - gritei eu enquanto retirava todo o motor...

E o pequeno avião de imediato abaixou o nariz e entrou em mergulho suave, pondo seus fantasmas para conversar, pois que o alumínio, como qualquer chapa, flexionando produz muitos barulhos.

Agora eu o conduzia mais rápido, pois quem estava a pagar pela hora de vôo era eu, e se ele me reprovasse, depois eu faria outro exame, ou questionaria esse que estava a acontecer.

Ele calado me viu levar o avião a apenas dois metros do solo arenoso e solto, para em seguida ver-me arremetendo com gosto e vontade, pois novamente eu precisava alcançar os 2.000 pés. Agora eu tinha pressa..., e com pressa, voamos quadrados!

Alcançamos os 2.000 pés e ele começou o que eu já esperava...

- Perda com motor...

- Perda sem motor...

- Perda com motor novamente...

- Curva de alta...

- Perda sem motor novamente...

- Ângulo máximo de sustentação..., coordenação..., e a tudo eu fui realizando com a cabeça boa, sem emoções, sem nada redondo..., pois desse no que desse, não seria por minha imperícia...

- Vamos para casa... - disse-me ele com um leve sorriso, depois de quase uma hora com tantas cobranças...

Mas ainda não havia acabado...

E foram mais procedimentos, como pouso disso e daquilo, algumas arremetidas, até que ele se dando por satisfeito, me cumprimentou ainda em vôo:

- Parabéns..!, você foi aprovado...

E apertamos as mãos..., e fiz o pouso mais redondo que pude fazer...

* * *

Sempre vi no pouso, a parte mais gostosa do voar...

É nele que efetuamos uma transição...; deixamos a liberdade e retornamos aos grilhões...

Gostava também dos pousos com vento de cauda, onde cada um representava muitos sorrisos, pois o avião se transformava...

Mas existe sempre um limite entre o prazer e a razão..., e erros não são perdoados...


Voltando para casa...
(Paulo Boblitz - mar/2009)


A vontade era seguir em frente..., fazer curvas, subir, descer, comandar o monomotor, independente...

Um Instrutor de Vôo é algo meio opressor, sempre a nos apontar os erros, sempre a nos criticar desatenções...

E Bibiu havia sido enfático: - suba..!, e desça..!

Talvez fosse por isso mesmo, pois que depois da pressão, vinha a perigosa empolgação...

O que não lembramos, ou nunca paramos para pensar, é que no primeiro vôo solo existem dois momentos graves apenas: a decisão de desgrudar-se do chão protetor, e depois o pouso, o trazer da máquina ao mundo em que vivemos...

Um avião voa sozinho se não atrapalharmos, se o estabilizarmos corretamente, mas só decola e pousa segundo a nossa vontade...

Eu havia passado sobre a cabeça feliz do Bibiu, afinal ele conseguira mais um, mas enquanto eu fazia a perna com vento, notava que ele de novo ficara quieto...

Compenetrei-me novamente e esqueci o sorriso... Havia o que se cuidar...

Comecei a procurar aeronaves em procedimentos de aproximação, mas não havia ninguém a voar...

Aproximei-me da perna base e girei 90 graus à esquerda... Enquanto o monomotor seguia o caminho dele, verificava a linha de aproximação..., livre à direita...

A pista ao longe pequenina, cada vez mais aproximava-se do meu alinhamento...; mais um pouco, eu estaria na reta de aproximação, no eixo longitudinal da pista, onde faria outra curva de 90 graus à esquerda, navegaria mais um pouco de frente para o vento e retiraria um pouco de motor, estabilizando preparando a aeronave para a descida...

A Biruta, antes murcha e pendente, agora estava inflada e desalinhada...; o vento me tiraria do eixo...

Retirei motor e segui em planeio, estabilizando o pequeno monotor numa descida lenta e gradual; meu alvo era a bola...

Com o motor em marcha lenta, o vento se fazia presente, conversava comigo, me insinuava correções, abaixar uma asa levantando a outra...

Bibiu agora estava do outro lado da pista; ele a havia atravessado, e de costas para o vento me observava...; puxei os flapes..., apenas 20 graus...; o avião inchou e empinou ganhando altura...

Um afundamento e mais um pouco de motor...; o avião ficou durinho e mais empinou...; de novo eu tinha a bola no alvo...

Bibiu ficou de cócoras e por um momento o perdi de vista...; a bola agora estava maior e em franca aproximação...; o eixo da pista parecia se mover, e se eu não cuidasse, na grama pousaria...

Pedal esquerdo, um pouco mais de motor, o avião durinho corrigido, a bola quase embaixo e eu ainda muito alto... Urgia decisão...

Retirei todo o motor e de leve piquei; engoli e respirei, pois a hora da verdade estava bem ali na minha frente..., cada vez mais perto...

Enquadrei o horizonte e arredondei...; ainda estava alto e ligeiro...; não havia o que fazer, deixar perder velocidade ou arremeter...

Deixei perder velocidade...; ultrapassei o ponto do toque mas ainda tinha pista para uma arremetida...

Mirei a velocidade e já quase em estol, verifiquei que não estava mais assim tão alto...; respirei novamente, apertei de leve a bola da manete para o caso de alguma emergência, e com a mão direita puxei levemente o manche...

Por instantes o pequeno bico alteou-se, e senti o afundamento..., respirei de novo e veio o toque..., um baque forte e seguro...; agora eu corria bem pesado, e mais um pouquinho, senti a bequilha também tocando...

Bibiu se levantou num pulo só, ergueu o punho cerrado e comemorou...; retirei os flapes e esvaziei os pulmões...; mas não havia ainda terminado...

Descansado, sem mais um peso sobre os ombros, deixei o avião livre a rolar...; com carinho fui aplicando os freios, enquanto o dirigia para uma das extremidades, para dar meia volta e taxiar, afinal, eu ainda tinha que resgatar um passageiro...

Girei os 180 graus e apliquei motor...; quatro bocas rugiram...; quatro dragões acordaram...

Parei e o Bibiu na carlinga subiu...; sorridente, me deu os primeiros parabéns do curso...

Eu era um Piloto...

* * *

Glossário:

- Perna com Vento = vôo paralelo à pista, com vento de cauda, anterior à Perna Base.

- Perna Base = vôo perpendicular ao eixo longitudinal da pista, anterior à Reta de Aproximação.

- Reta de Aproximação = vôo alinhado com o eixo longitudinal da pista, onde são efetuados todos os procedimentos que antecedem o pouso.

- Biruta = cilindro cônico de tecido na cor amarela, postado num mastro bem visível, que quando inflado pelo vento, adota e mostra a direção deste vento, como informação preciosa para os pilotos a voarem "visual".

Em aeródromos remotos, sem o devido Controle, na falta de uma Biruta, devemos observar outros sinais que nos possam dar pistas da direção do vento, como fumaça, roupas em um varal, inclinação de coqueiros e até de algum mato alto, além de uma passagem em boa rasante pelo eixo da pista, para espantarmos possíveis animais por ali em pastagem.

É incrível quando estamos a passar em rasante, vermos tantos animais, que antes não víamos, em correria assustada.

- Flapes = dispositivos que quando acionados, aumentam o aerofólio da asa, permitindo um vôo com menor velocidade, pelo aumentar da sustentação. Ficam posicionados na parte inferior de cada asa, entre os ailerons e a fuselagem.

- Arremetida = manobra de segurança, quando interrompemos (abortamos) um pouso, segundo nosso julgamento, aplicando motor e alçando altitude para novo procedimento para um novo pouso.

- Estol = limite crítico que define a velocidade mínima da aeronave com sustentação; abaixo daquela velocidade = sem sustentação, como um objeto qualquer; acima daquela velocidade = com sustentação, portanto mais leve que o ar.

- Bequilha = roda auxiliar do Trem de Pouso da aeronave, que quando atuante, define o terceiro ponto de apoio e equilíbrio da aeronave em solo; no taxiamento, define a direção que o avião deve seguir.

* * *


Decisões...
(Paulo Boblitz - mar/2009)


A pista à minha esquerda, estirada e fria me aguardava... À minha direita, o céu limpo; ninguém em aproximação...

Parado na Bola da Cabeceira, como a chamamos, pisei forte nos freios e levei a manete à frente; o giro subiu e o ronco aumentou em imprecações..., mil rotações por minuto, estabilizadas...; desliguei o primeiro magneto e observei ligeira queda nos giros do motor...; liguei-o novamente e desliguei o segundo magneto, para em seguida tornar a ligá-lo. Desliguei o Master e por dois segundos observei a queda de giros, religando-o novamente para vê-los em pico. A parte elétrica estava perfeita...

Todas as pressões normais, o combustível quase pleno...; dei mais uma olhada para os lados, ganhando tempo enquanto podia...

As pernas já reclamavam da força aplicada, pois o conjunto todo, trepidando, queria rolar.

Não fazia muito tempo, Bibiu, o Instrutor de vôo, havia solicitado que eu parasse no meio da pista, e enquanto descia, informava que eu já estava pronto:

- Quero ver você solar... Agora é com você... - disse-me com frieza, após um vôo de muita pressão onde só me apontou erros e proferiu repreensões... Por isso eu estava tenso e com raiva...

Ali estava eu checando o que já havia sido checado... Virei-me para o vulto dele ao longe, de pé, olhando para mim em desafio, aguardando minha decisão. Dei mais uma olhada para ver se alguém se aproximava, diminuí a rotação e soltei os freios, iniciando uma suave rolagem, levantando mais um pouco de poeira, posicionando-me no mesmo eixo da pista, que agora parecia estreita e pequena...

As pernas tremiam, não sei se de emoção ou de cansaço; o coração disparado, a mão gelada na manete, a outra rija no manche, a língua seca e a garganta apertada, e Bibiu lá adiante imóvel me aguardando, impassível, calmo e descansado. Eu o xingava por não me ter avisado antes...

Apertei os freios, inflei os pulmões e dei manete à vante, toda ao máximo, cem por cento de potência a querer explodir na nacele... Quatro bocas rugiram à minha frente, a aeronave fibrilou como um bom xucro prestes a disparar, soltei os freios e o avião nervoso projetou-se como catapultado, comendo cada vez mais rápido aquele asfalto pintado, enquanto corria desenfreado e cheio de solavancos, desajeitado, pois avião foi feito para voar...

Ainda pude ver Bibiu com o semblante preocupado, olhos meio cerrados a me mirarem, inquiridores me questionando. Ele havia se postado de propósito, naquele ponto onde podíamos nos arrepender e abortar..., ali onde nossos medos falavam mais alto, onde nossa insegurança assumia o controle e nos amarelava...

O pequeno monomotor dava saltos curtos e nervosos, pois estava sendo mantido no chão à força; há tempos eu havia atingido as 65 milhas necessárias, e ele decidido só reclamava, queria voar a qualquer preço...

Puxei o manche finalmente..., tudo ficou calmo de repente; agora eu só via o azul do céu me olhando, e eu era o único nervoso, os olhos piscando de um instrumento para outro, a mão do manche já doendo com tanta força..., 100 pés..., 150 pés o altímetro indicava...; mais um pouco eu aliviei a manete dos gases, diminuindo o fogo daqueles dragões.

A tremedeira das pernas havia cessado, todos os instrumentos estavam em ordem...; lembrei do Climb e verifiquei que estava com uma razão de subida muito forte; larguei o manche devagar e estabilizei o avião, e mais um pouco efetuava uma curva para minha esquerda..., e mais outra..., e ainda mais outra..., e mais uma última..., como se fosse pousar... A emoção havia passado...; o controle, assumido...

Passei sobre o Bibiu que lá embaixo dançava, lançava-me sorridentes polegares para cima, afinal ele também naquele dia estava feliz. Eu agora também sorria, também me orgulhava de uma difícil decisão: desgrudar do chão sozinho, somente eu a depender de mim, assumindo a máquina e os riscos...

A primeira decolagem solo é única... Nunca mais a esquecemos...; nunca mais paramos de decolar...

A primeira decolagem também significa um belo banho..., um batismo de óleo queimado que para alguns é cômico, pois eles um dia também foram batizados; para outros ainda é um sonho, pois ainda não estão preparados..., e para nós que o recebemos..., vários dias de bons banhos...

Um balde inteiro jogado devagar, sobre nós na grama sentados, a pilotarmos com um manche de cabo de vassoura...; não sei se ainda batizam desse jeito...


Agora eu precisava pousar, enfim acordava do meu devaneio, engolia em seco para a realidade..., a parte difícil do voar..., pôr a máquina dócil de volta no chão, prestar a máxima atenção, lembrar do horizonte que tanto treinamos..., sentir o vento que nos tira do alinhamento, sentir a leve pressão no arredondamento, a bunda afundar na hora do toque...

Mas isso é uma outra história...

* * *

Glossário:

- Bola da Cabeceira: área do toque em aeródromos pequenos, em formato de bola para permitir giros de 180 graus ou realinhamento da aeronave para a decolagem, após taxiamento. Lugar onde as aeronaves checam instrumentos, motor e comandos, estacionados transversalmente à pista de decolagem, antes de efetuá-la.

- Manete: acelerador do motor do avião.

- Magneto: pequeno gerador elétrico que emite um pulso periódico de alta voltagem para a ignição.

- Master: interruptor geral que liga/desliga todo o circuito elétrico da aeronave, protegido contra acionamentos involuntários.

- Solar: realizar o primeiro vôo sozinho, senhor dos comandos, sem a supervisão de um instrutor que possa corrigir eventuais falhas críticas na condução da aeronave.

- Manche: alavanca presa ao piso da aeronave, com movimentos amplos em todas as direções, que fazem a aeronave comportar-se conforme a reação exigida.

- Nacele: espaço da fuselagem ou cabina dos aviões pequenos, destinado ao piloto, à tripulação ou, eventualmente, a passageiros; também o espaço onde o motor é alojado.

- Cabrar: elevar, em vôo, o nariz do avião, puxando-se o manche para trás; Picar: baixar o nariz do avião, em vôo, empurrando-se o manche para frente.

- Altímetro: instrumento que indica a altitude da aeronave, baseado na pressão atmosférica.

- Climb: instrumento que indica as razões de subida ou descida da aeronave, em pés por minuto.

- Arredondamento: manobra pouco antes do toque, onde se modifica a atitude da aeronave que é de franca descida, para outra de planeio, prestes à falta de sustentação, o pouso propriamente dito.

* * *













A Bicicleta e a Liberdade...
(Paulo Boblitz - out/6)


O Sol afagava a face com morno carinho, enquanto a friagem da manhã, da madrugada recém acordada, tentava conhecer minhas intimidades, entrando pelas mangas, pela gola, subindo pelas costas em arrepios. Sem cerimônias, intrometia-se por qualquer abertura que na roupa já surrada encontrasse...

O cheiro era de flor, de orvalho suor da terra, de vida que mais um dia nascia para viver e interagir nesse mundo enorme em que vivemos. A bicharada esperava mais um pouco, o Sol por fim se chegar, o friozinho passar e animadamente começar a pastar, a voar, a cantar...

Eu descia livre pela ladeira sem pedalar, embalado pela ribanceira que sempre mantinha parceria com a Gravidade, que a tudo implicava em manter no chão.

As riscas do asfalto passavam céleres por mim, como um rolo de filme que acelerava conforme eu ganhava velocidade. Se elas falassem, fariam pric-pric-pric ligeirinho, enquanto cruzássemos um pelo outro...

O domingo mal começara, sem movimento, dia do acordar mais tarde com preguiça, dia de colocar nossa roupa domingueira e ir conversar com Deus. O vento, cada vez mais forte, desalinhava os cabelos e forçava a vista a fechar, diferente de lá detrás quando eu subia a Serra em suarento pedalar. Agora era como se eu tivesse ligado o ar condicionado.

Havia sido, como vinha sendo já há um bom tempo, uma longa subida cheia de trancos, como aqueles quando ficamos em pé sobre os pedais para aplicação de mais força, e a corrente salta numa catraca de dentes gastos e redondos. Cada tranco uma parada, cada parada uma maldição, cada maldição uma desilusão, pois ainda lembrava do dia em que eu a havia comprado, a melhor da feira...

Onde eu passava, olhares e comentários deixavam-me prosa, pois não faltavam os cromados, as lanternas verdes e vermelhas, as escovinhas nos cubos e aros, as argolinhas nos raios, as capas de lanterna de fusca em cada ponta de pára-lama, o farol como o de um Packard, o dínamo alemão da Segunda Guerra, que encostava no pneu faixa branca e dava peso e vida à minha velha Merkswiss.

Tinha sido muito cara e eu sempre a alisava com minha flanela macia que guardava enganchada no guidão, por entre os suportes das hastes longas envolvidas por molas fortes que acionavam os freios. Dos punhos saíam longas tiras finas coloridas de plástico, que esvoaçavam como a roupa do caubói sobre o cavalo. Até uma namorada eu havia arrumado, mas logo dela cansado, pois que só queria passear e chamar a atenção, e acabei não agüentando tanto peso...

Olhando-a agora, via sua pobre decadência, assim como também eu havia decaído, pois que tudo passa e nada é para sempre... Pensando nos meus sonhos infantis de adulto, descia agora desembestado pela longa descida em minha velha bicicleta desacorrentada, cheia de barulhos, de coisas soltas, de remendos, de ferrugem, de rodas empenadas, e completamente sem freios...

Acordei para a vida e senti que seria bom diminuir a embalada. Tarde demais..., quando vi minha japonesa azul voar pelos ares quando encostei o calcanhar no asfalto. O pedrisco como esmeril, agarrou e trancou a borracha macia, quase esfolando a calejada pele rachada de tanto pisar em bosta de vaca. A velha Merk abanou cambaleando para um lado e para o outro, quase saí para cima da cerca de sabiá, dominei e continuei, agora mais ainda preocupado, pois já via lá mais embaixo, uma vaca preta malhada.

Como que adivinhando meus pensamentos, a égua da vaca começou sua manhosa marcha a cruzar a pista. Engoli raciocinando, enquanto a desgraçada ficava mais próxima, e resolvi usar de tática diversionista. Fingiria que a cruzaria pela frente, e na última hora aplicaria uma quebra de asa, passando por sua traseira, já visualizando a vaca apressando o passo, e eu passando direto...

Esqueci que a vaca também raciocinava, e creio que ela, ao ver-me em deslocamento para a margem à sua frente, estacou e deu pouca ré, o suficiente para apanhar-me em plena manobra evasiva e mal calculada, agora em perfeita linha reta de colisão...

Buuumm!!!; a vaca ficou..., a bicicleta ficou..., e eu passei direto...

A bicicleta foi apreendida, perdi dois dentes, quebrei o braço e ganhei um trauma para o resto da vida - nunca mais gostei de leite...

A vaca..? Ela era do delegado, boa de leite e estava prenha de touro premiado; foi para o beleléu e ainda hoje eu a pago...

* * *



O Cabaré dos Três Oitavos
(Paulo Boblitz - out/6)


Eu nunca dei muita sorte na vida, ou, nunca conheci as pessoas certas que precisamos conhecer. Sempre houve uma semelhança com aquela história em que saímos correndo atrás do ônibus, e quando o estamos quase alcançando, ele parte do ponto novamente e se distancia.

Ainda cedo arrumei a primeira ocupação, e com uma latinha de graxa preta, uma escova e uma flanela, comecei a fazer o meu ponto no meio da rua. A freguesia foi aumentando e logo chegou um mais velho e mais forte, que me colocou dali a correr. Ali morreu o sonho de uma sapataria.

Descobri logo cedo que as iniciativas comerciais são cheias de riscos, pois podemos perder tudo de uma hora para outra, como aconteceu quando vi todo o meu investimento, como uma caixa de madeira, latinhas de graxa, flanelas e outros acessórios, espalhado pela rua.

Resolvi ser empregado ao invés de empresário, pois sempre haveria outro emprego com a segurança que ele traduz. Os riscos ficariam para quando eu tivesse mais força.

Assim, escondi-me atrás do primeiro balcão que encontrei, quando passei no teste que o pai de um amigo sempre fazia com quem se candidatava ao emprego que ele não podia dar; era a maneira dele não dizer diretamente o não: consegui embrulhar uma garrafa de cerveja com um coco seco, tudo junto, sem rasgar o papel de embrulho.

Ali não cheguei a demorar, partindo para outras ocupações, e fui cambista, padeiro, ajudante de cozinheiro, mecânico, aprendiz dum bocado de profissões, pois onde chegava, necessitava de aprendizado.

Foi assim que me tornei vendedor de automóveis, onde cheguei a gerente e conheci muita gente, alguns importantes e velhacos. Um deles, vivia ganhando dinheiro pelo método da asfixia, e logo se chegou fazendo uma bela proposta: eu seria uma espécie de sócio e gerente, na agência que ele pretendia abrir ao lado da que eu gerenciava.

Meus olhos cresceram na medida em que cresceria o meu salário, e mais um pouco, lá estávamos vendendo carros bem mais baratos e facilitados, conseqüentemente fechando o negócio do meu antigo patrão.

Minha consciência logo amainou, recebendo as constantes injeções de conselhos e ensinamentos empresariais, sobre concorrências, vendas, atitudes arrojadas etc., o que asfixiou a minha lembrança de que eu havia ajudado a arruinar alguém.

Quando meu novo sócio conseguiu o que queria, já não precisava mais de mim, e logo me arrumou uma nova tarefa, uma nova sufocação por fazer. Foi assim: ele tinha um apartamento num prédio chique, desses de um por andar, e como não gostava do vizinho de baixo, tratou logo de me forçar a gerenciar o novo negócio, por baixo de muitos panos é claro, e de repente, vi-me envolvido molhando a mão de porteiros, ascensoristas, zeladores e até fiscais disso e daquilo, que o vizinho de baixo, indignado, havia acionado por conta do cabaré camuflado que instalamos no oitavo andar daquele luxuoso prédio.

Logo, logo, a coisa começou a virar piada pela cidade, mas como meu patrão-sócio era influente, os convidados também eram, e como não havia placa nem luz vermelha, o que lá acontecia eram reuniões amenas do Clube dos Amigos das Araras, uma ONG que se propunha cuidar de uma vasta gama de espécies ameaçadas de nossa fauna, incluindo-se até as piranhas.

Não deu outra, e logo os apartamentos foram perdendo valor, na mesma velocidade com que as reuniões da seleta ONG se realizavam. O vizinho de baixo, antes que perdesse tudo, acabou por vender a um testa de ferro do meu patrão-sócio, acontecendo a mesma coisa com o apartamento de cima. Em franco crescimento, a ONG agora com mais sócios, construiu escadaria interna interligando os três andares, expandindo-se para baixo até o sétimo, e para cima até o nono.

Para a sabedoria popular, como o assunto era o mesmo nos três níveis, achou por bem humorada, tratar aquela casa de favores pelo nome singular de Cabaré dos Três Oitavos, pois que tudo não passava de um andar só.

A sanha do meu patrão continuou comprando tudo, até que o prédio inteiro a ele pertencesse. Mudou a ONG de lugar, deu-me um pontapé no traseiro, e hoje aluga para grandes empresas, a preço de ouro, cada um dos quinze andares adquiridos a preço de banana. Onde funcionava a antiga ONG, opera hoje um grande empreendimento bancário.

Aquele Clube dos Amigos das Araras, transferido para longe da cidade, transformou-se em balneário familiar e é freqüentado pelos amantes da natureza, simpáticos aos benfazejos ares do campo, onde famílias podem curtir um feriadão, hospedadas como no primeiro mundo.

Eu..? Bem..., arrumei um balaio grande de vime, e hoje vendo amendoim cozido bem na porta daquele prédio elegante, onde um dia fui gerente de negócios e agendamentos, e já tem um sujeito grande e mais forte querendo tomar o meu ponto de vendas.

Meu antigo sócio-patrão vive hoje nos Estados Unidos, e de vez em quando, em visita à cidade, verificando suas tantas grandes empresas, passa por mim e compra alguma coisa de amendoim. Diz que é para não esquecer a terrinha, sorri e vai embora.

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Sorrisos...
(Paulo Boblitz - mar/7)


Uma amiga mandou sorrisos..., mandou uma risoterapia..., e eu sorri.

Logo lembrei dos animais, dos nossos mais próximos parentes que mostram todos os dentes em sinal de aprovação, em sinal que estão a sorrir e não a atacar com seus formidáveis caninos: são eles os nossos brincalhões macacos.

Diferentes dos carnívoros que nos mostram os dentes num franzir, nossos meios-irmãos simplesmente abrem a boca em escancarada expressão de liberdade e alegria, igualzinho a nós, ou nós igualzinho a eles.

Um sorriso desarma e ao mesmo tempo nos prepara para sermos gentis. Tornamo-nos simpáticos apenas porque sorrimos, e normalmente recebemos outro sorriso de volta, porque remetemos uma expressão agradável.

Há quem diga que sorrir movimenta um sem número de músculos, número esse maior do que aqueles que nos produzem as lágrimas, embora sorrindo às vezes lacrimejemos de tanta felicidade, um pouco diferente daquelas do crocodilo quando está a dilacerar o que lhe produz satisfação: a comida que lhe comprime as bolsas lacrimais.

Vivemos a sorrir para conhecidos e desconhecidos, e nunca recebemos por isto, algo que também não fosse simpatia, um amor diferente que nos diz o momento ser divertido ou feliz.

Com um sorriso contagiamos e somos contagiados; mudamos a vida dos outros que acabam nos mudando. Sorrir faz bem...

Sorrir rejuvenesce, pois que torna mais bela a face que se abre em fino contrair, a dar esperanças, iluminar horizontes, aumentar o próprio brilho da tez, pois que felicidade se expressa, se pinta explícita em nossas faces mais irrigadas, aumenta o nosso brilho do olhar, gera o magnetismo que nos atrai as almas, propriedades de Deus.

Uma paixão começa por um sorriso, e o amor, um sentimento mais duradouro, é composto sem dúvida por muitos deles.

Sorrimos quando estamos bem, quando ficamos hilários, quando nossos hilos explodem em forma de energia, apenas porque ouvimos, ou porque vimos, ou porque lemos, e rimos em desenfreado descontrole ao ponto de nos dobrarmos, nos mijarmos, pois que o sorriso liberta, e libera, e desprende, e transporta...

Sorrir mesmo quando as coisas vão mal, já ajuda no conserto, pois sorrir é a resposta do espírito acostumado às vitórias, é a arma do espírito que se prepara para a solução, é a alma que acabou de conversar com Deus e já está pronta para continuar, pois que perder também é ganhar; foi isso que um dia Jesus nos disse sorrindo, que a morte é o início da vida eterna, para aqueles que sempre sorriram e amaram.

Dos sorrisos da arrogância, da superioridade, não devemos comentar. Eles acabarão tornando-se em tristezas, arrependimentos envergonhados, que um dia a consciência de cada um fará sorrir amarelo, o sorriso do tolo que de repente descobre que não foi superior.

Sorrir é amar..., e devemos amar logo cedo de manhã, ao olharmos para nós mesmos, sorrindo felizes das coisas boas que conseguimos, das pessoas boas que conquistamos, de Deus que já nos acorda com carinho, pois que o espreguiçar é jogar a preguiça fora, é o arrepio da alma que quer se aquecer com o trabalho, é o voto que afirmamos sermos capazes, da luta que iniciamos quando lá atrás nascemos...

Amar é sorrir..., e quando sorrimos estamos amando, o amor do bom senso, do bom humano, do bom pai, da boa mãe, e do bom filho..., e aposto que muita gente que já leu até aqui está também a sorrir, pois o melhor sorriso é o dos olhos, quando nos enchem de sorrisos.

Deus nos sorri com o Sol, com as estrelas, com o cantar dos pássaros, o barulho da cachoeira, o vento a passar e nos assanhar, o redemoinho que põe a poeira a subir..., com a nuvem branca a navegar, se juntar com outras cinzentas para pingar, e com o raio a nos mostrar, que com raio não se brinca. Deus sorri quando a Lua ilumina os apaixonados, trocando juras e sorrisos, selando o futuro que Ele unirá...

Sorrir é expressar o bem, pois que sorrir talvez seja a única atitude do homem, que não deixa mentir...

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Saudade...
(Paulo Boblitz - nov/5)


Não fosse a saudade, seríamos como aquele animal que botam viseiras, para apenas olharmos para a frente. Estaríamos sempre olhando para o futuro, esperando acontecer o que nunca aconteceria. Seríamos máquinas, pessoas cristalizadas, em trilhos iguais, do começo ao fim.

Não fosse a saudade, não teríamos a memória gostosa de se ter, não sentiríamos o prazer do ter vivido, ou do ter conhecido, ou do ter provado, ou do ter ousado ou arriscado. Seríamos todos iguais, sem emoções ou exaltações.

Saudade implica em humanidade, em amor interno e externo, que combina a fria caixa cinzenta da memória, com a quente pulsante bomba do coração, aquela que nos anima, nos faz aumentar a pressão, que carregamos bem no centro do peito.

Quem é saudoso o é porque já bem viveu, ou conviveu, ou viu acontecer, e sente saudade exatamente porque é mais gostoso lembrar do que repetir a experiência..., afinal o futuro é repleto de novas saudades que virão.

Saudade é assistir ao mesmo filme algumas vezes, sem enjoar. Quanto mais lembramos, mais nos satisfazemos, pois essa é a maneira que nossa alma tem de se alegrar, de manter viva a nossa vida, de manter vivos os nossos queridos.

Saudade é contrária do arrependimento, pois arrependimento é a lembrança pesarosa do que mal um dia aconteceu, e sempre que nos lembramos, ficamos tristes e envergonhados.

Saudade é o doce carinho com que guardamos nossas boas amizades, nossos vários amores, e saudade não tem idade, pois ela acontece agora, depois do beijo da despedida, e acontece de muito distante, da primeira bola, da primeira bicicleta...

Saudade sempre lembra um tempo bom que já passou. Saudade lembra os sonhos que um dia já sonhamos.

Diz-se de quem tem saudades, ser um saudosista. Saudosismo deveria ser praticado, pois liga o passado ao presente, nos traz duas dimensões em duas realidades diferentes, nos faz pelo menos, pensar ou refletir - assim era antigamente; hoje em dia é assim...

Saudade é sinônimo de prazer, do quanto fomos felizes, em alguma ou várias vezes no passado.

Saudade é a ferramenta a nos indicar que precisamos novamente de felicidade, que precisamos nos mexer para viver mais uma vez algo parecido, e continuarmos felizes com nossas novas saudades.

Saudade também é triste lembrança, de alguém que já se foi ou que não volta mais. Essas saudades são mais profundas, mais pensativas, mais silenciosas - entramos no campo de Deus.

Suspiramos em saudades todos os dias, e quem mais suspira é porque mais viveu, mais deu de si, mais recebeu dos outros, e por isso mesmo mais saudades ainda terá, tornando-se um dia também em saudades, nas memórias de quem nos quer bem.

Saudade é simpatia, é amor, são boas ações, e por isso nos lembramos com sorrisos, com muitas histórias já vividas... Ninguém sente saudade de decepção.

Saudade tem a ver com saúde, tem a ver com idade, e quanto mais já se bem viveu, mais saudade saudável se produz. Saudade é a saúde da idade, diferente da idade com saúde. Ambos têm saúde e idade envolvidas, mas somente uma traz boas lembranças.

Viver significa compartilhar, e compartilhar significa dividir, e só divide quem tem sobrando, nem que seja apenas amor...

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Questão de óptica...

(Paulo Boblitz - mar/2009)


Sempre quando estou na Roça, almoço num posto de gasolina lá perto, bem freqüentado, a comida sempre nova e gostosa, o atendimento de primeira...

Não faz muito tempo, eu descobri que estava comendo pouco e pagando mais, isso depois de um longo período de almoços...

Foi quando eu resolvi fazer uma graça com o Pedreiro e os dois Empregados, quando terminamos uma etapa de minhas obras, levando uma quentinha para cada um, cheia transbordante de coisas gostosas como eles gostam, e eles adoraram...

A moça, fazendo as três quentinhas na minha frente, ia colocando tudo aquilo que eu mandava, até que me lembrei das carnes, pois daquele jeito não haveria lugar. Ela sorriu e disse que caberia muita coisa sim.

E eu fui de volta para a Roça, com as três quentinhas inundando o carro com cheiro de comida e de churrasco, pensando com os meus botões que a minha salada, a minha farofa, o meu caldinho ralo de feijão, o meu vinagrete, e o meu franguinho pouco, no peso, nem chegava no primeiro terço do que coube em qualquer daquelas quentinhas.

Estavam a me enrolar...

Dia seguinte cheguei disposto a modificar tudo aquilo e fui logo pedindo um PF. A moça estava ocupada e me encaminhou para um garçom, meio doidinho, pois estava descalço a servir todo mundo.

Já com o prato nas mãos, chamei pelo doidinho e pedi um PF.

- PF sô eu qui faz - foi logo dizendo...

- E o prato né esse não; é o prato fundo... - completou.

Virei para ele e lhe disse:

- O prato é esse sim e serei eu a fazer o meu PF - enquanto falava, já enchia a colher com uma salada de batatas com maionese.

- Não!!! Desse jeito é selvserf..! Aí tem que sê pelo peso!

Não dei bola e continuei, enveredando pelo vinagrete, perguntando:

- Vinagrete pode?

- Pode, mas sô eu qui tem qui botar...

Pus o vinagrete e segui para a farofa...

- Farofa pode?

- Pode, pode! - já mais resignado, respondendo...

Diante do feijão, para molhar a minha farofa, perguntei:

- Caldo de feijão pode?

- Vai botando, vai botando...

Terminando com o feijão, perguntei:

- E um franguinho assado, pode?

- É, pode ir lá pegar e escolher o tanto que quiser... - já abrindo a guarda, verificando que mesmo para um PF, eles ainda estariam levando bastante vantagem comigo.

Chegando na churrasqueira, pedi o meu filé de peito de frango e contei que estava pagando mais e comendo menos que num PF.

Ele já me conhecia e me serviu com três pedaços bonitos, olhou com ar de entendido para o meu prato e disparou:

- Agora o Senhor vai na balança e pesa, pois esse prato daí tá com cara que tá mais barato que um PF.

Fiz que sim e parti para a balança, onde o doidinho já me esperava para me dar a Comanda. Virei para ele e disse:

- Agora vamos pesar, e se der preço menor do que um PF, pago pela balança...

- Mas o Sinhô é sabido todo, né!?

Deu mais caro, como sempre, então paguei um PF. Sorrimos e fui para a minha mesa, não sem antes de eu avisar:

- Semana que vem, vou fazer o meu PF de novo...

Hoje ele é meu amigão e até me trouxe abacaxi assado com açúcar e canela; uma delícia...

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Glossário:

- PF = Prato Feito, na gíria dos restaurantes populares, o prato comum oferecido, normalmente entupido de feijão, arroz, macarrão, e um pouco de carne. No Caminho de Santiago, ele é conhecido como Menu del Día.

- Comanda = pedaço de papel onde são anotados os pedidos, para posterior pagamento no Caixa.

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