Voando sobre a Estrada Real

O que é um planejamento,

senão uma visão do futuro?

O que é o futuro,

senão nossos desejos de hoje?


Voando sobre a Estrada Real
 
(Paulo R. Boblitz - jun/2011)

Os oito monomotores ruidavam muito forte, chegando vagarosamente na bola da cabeceira.

Já estávamos prontos para nossa decolagem, um plano que se desenrolava há vários meses.

O barulho dos oito motores enchia nossos pulmões de vibrações, pois nos inundava cada carlinga com sua reverberação entrecortada pelo vento forte que soprava.

E o ruído foi aumentando conforme cada um começou a checar seu próprio motor, até que o primeiro fez sinal, largou dos freios e se pôs a taxiar, alinhando-se com a pista, uma tripa de chão vermelho esturricado e poeirento, cercada por mato seco e carrapichos.

Eu era o último, pois gostava do ar quente que nos sacode, das miragens que eu via deformando cada bólide orgulhoso cheio de cores.

Restei sozinho enquanto todos ganhavam altura, como gansos enfileirados. Olhei para o lado e ninguém se aproximava; soltei os freios e me ajeitei, enquanto o pequeno monomotor se aprumava na proa certa. Segurei novamente os freios, empurrei a manete dos gases e todos os cavalos se soltaram em baforadas medonhas.

É sempre um momento maravilhoso, comungarmos com a força que enjaulada nos quer catapultar chão afora. A vibração se estendia pelos meus braços, segurando o manche. Os freios reclamavam do esforço concentrado, subjugando minhas pernas. A adrenalina subia e o arrepio da emoção corria frouxo. Era chegada a hora...

Soltei os freios e o pequeno monomotor saltou como pangaré indômito, a ser domado durante a corrida naquele chão cheio de pedras. Entre sacolejos fortes, alcancei a velocidade de estol, ultrapassei e decolei. Estava no ar, onde a calma se instala, o chão se afasta, as coisas começam a diminuir, e nossas asas se juntam às nossas imaginações, pois voar sempre será divino...

Com o sol espreitando por entre os picos à nossa esquerda, nos dirigíamos para o sul. Fazia um friozinho gostoso, pois já partíamos de 3.400 pés, cerca de 1.140 metros em relação ao nível do mar. À minha frente, meus amigos enfileirados, todos agora em velocidade cruzeiro, aproximando-se para um vôo em bloco. Baixei um pouco a rotação, deixando-a ainda, um pouco acima, pois precisava me juntar a eles.

Ouro Preto ainda dormia o sono justo que todas as noites cobram, quando elas apagam o dia. As nuvens se abriam em alegria, pois não queriam perder tempo em suas subidas para o céu. Cada vale tinha seu nevoeiro, nuvem de sonhos e aperreios, que com o raiar se afastam, carregando tudo.

O motor ronronava e eu já me juntara a todos, que me receberam com balançar de asas, alegre cumprimento de máquinas voadoras e seus pilotos.

Mergulhei inclinando as asas para a direita, passando por baixo de todos eles, pois queria fotografá-los contra a luz dourada que nos enchia de vida e de vigor, pois o dia começava lindo, como todos os dias devem começar. Enquanto passava por eles, via cada barriga clara, e asas flamejantes. Não há nada como o mundo dos ares...

Nossa altitude era de 500 pés em relação ao solo, não muito alto e não muito baixo, pois nos interessavam os detalhes de cada caminho. Precisávamos ver por onde estaríamos pedalando nos próximos 14 dias, no sobe e desce das serras de Minas, das tradições de um bravo povo que um dia tudo aquilo conquistou e nos foi legando.

Havíamos consultado o Guia de Cicloturismo ESTRADA REAL - Caminho Velho, dos autores Antonio Olinto e Rafaela Asprino, agora ali em nossas pernas, riscado em nossas cartas de vôo, com cada detalhe, cada marca, cada estradinha que já estávamos percorrendo com o coração.

- Olhem lá a ponte da Caveira! - gritou Suzana.

E todos nós a sobrevoamos em rasantes.

- Minha gente! Vou descer... - avisou pelo rádio, o João de Deus.

- Como, descer? - perguntou o Omar.

- Vou tomar um banho na cachoeira - respondeu o Macaxeira.

E um a um começamos a pousar, na garganta larga da serra de Itatiaia, mas faltava um.

- Eduardo! Cadê você? - perguntou o Gilton.

- Volto já; vou ver a cachoeira do Calixto e chego já - respondeu ele, empolgado.

Ada, que já estava em procedimento de pouso, arremeteu, soltou um longo hurra e nos gritou:

- vou também e já volto!

Fernando, calmo como sempre, ponderou:

- Cuidado para não se perderem...

Também pousei e fiquei ali em minha carlinga, vendo aquele momento mágico que é cada um jogando água fria no outro, para ver se cria logo a coragem de entrar. Omar me viu e gritou:

- Vem logo, Carniça!

Mostrei a ele o intercomunicador do rádio, pois o Márcio Dayrell me chamava; queria saber se já estávamos na serra de Ouro Branco.

- Ainda não! Estamos tomando banho de cachoeira! - respondi

- Vocês não podem deixar de ver aquele paredão, que tem uns 700 metros de altura. Nas várias vezes em que estive lá em cima, sempre subi igual a um cabrito - pela frente, vencendo o paredão e me agarrando às plantas e pedras! - gritava ele, como se eu fosse surdo.

Márcio era o responsável por tudo isso. Foi ele quem me iniciou nessa vida, quando em novembro de 2007 me convidou para percorrermos o Caminho de Santiago de Compostela, ele com 72 anos, eu com 56.

- Boblitz!? Na escuta? - agora era o Wagner Paulino, com aquela voz de trovão.

- Vocês não podem deixar de seguir para Congonhas..! Lá estão as obras do Aleijadinho..! Se vocês não forem, não irei perdoá-los - concluiu ele, sempre pronto para uma boa briga, guerreiro que foi em dar partida em três refinarias importantes da Petrobrás.

Quando encerrei o contato e já ia descendo para o meu banho, João Macaxeira me alertou:

- Sabe onde você vai tomar banho? Na pousada, quando chegarmos lá de tarde...

Concordei com ele e os acompanhei na nova decolagem, cruzando com Ada e Eduardo que voltavam.

- Vocês também! Só vão tomar banho na pousada... - resmungou o Macaxeira novamente.

Aquele dia foi especial, primeiro dia repleto de expectativas, onde pudemos observar toda a grandeza da Natureza, quando em transe forte, moldou todos aqueles paredões, fez crescer todas aquelas montanhas, e em cada vale, abrigou um povo maravilhoso cheio de História.

Congonhas não está no Guia do Antonio Olinto e Rafaela Asprino, mas eles também não escreveram que nós não podemos efetuar esse pequeno desvio, afinal, cicloturismo bom é aquele em que a gente improvisa, conhece e curte todos os bons recantos. Que a Estrada seja Real, mas Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa) também foi nobre com a Pedra Sabão.

No dia seguinte, seguiríamos para Conselheiro Lafaiete, retomando a Estrada Real e o Guia, afinal, de Ouro Branco a Conselheiro Lafaiete, percorre-se o caminho sobre o asfalto, portanto, não cremos que estaríamos perdendo muita coisa, mas com certeza perderíamos muito, se não visitássemos Congonhas do Campo, como era conhecida antigamente.

Daí em diante foi um levantamento meticuloso através do Google Earth, onde reconhecemos a presteza dos caminhos levantados pelo Olinto e Rafaela. Nalguns pontos, a parecer de propósito, o Google Earth nos apresentou as imagens borradas, talvez a nos reservar as surpresas que estaremos encontrando, seguindo os passos desse casal maravilhoso que vive a construir mapas e roteiros para todos nós.

Servi-me dos aviões para sobrevoar todo o caminho mapeado pelo Olinto e Rafaela, como a dizer, pedalando-o por antecipação, saboreando-o com extrema lentidão, pois o estaremos pedalando em meado de setembro próximo, curtindo todos aqueles conselhos ali no Guia apresentados. Nós o estaremos percorrendo em sentido inverso, de Ouro Preto até Paraty, onde encerraremos com dois dias navegando nas escunas, sobre o tão mar azul, que da serra da Bocaina, lá bem de cima a 1.525 metros de altitude, divisa entre São Paulo e Rio de Janeiro, talvez avistemos, majestoso e plácido.

Cada pedacinho do caminho já foi provado e saboreado, antecipando as tantas brigas que travaremos, entre nós e a Natureza, com suores e baforadas, enlevos ante tantas vistas maravilhosas que sorveremos, com a devida certeza de que Deus nos ama, pois que ninguém faz nada belo, a troco de nada...

Mas nem tudo é alegria, até porque sem os percalços, o gosto não seria assim tão doce, o aroma tão floral, a visão tão magnífica. Ada, tem grande chance de não ir, já avisou, pois o dever ficou em primeiro lugar. Eduardo quebrou o braço, colocou parafuso e tem dois meses para se recuperar.

Da garra surge a vontade; da vontade surge a força, e da força, bem..., é ela quem produz milagres...

Um brinde ao futuro, pois que se não generoso, será com certeza, atencioso - os dois estarão conosco, se não fisicamente, com certeza em pensamento...

Até lá, até o dia do nosso embarque, só nos aquietaremos quando as portas do avião estiverem seladas, pois os dias não são iguais, renovando-se um após o outro, molhando, secando, ventando, distribuindo vida e somando, afinal, são as pitadas que temperam, que fortalecem o sabor.

Com Fé, a força aparece; com a força, a realidade se faz presente.

Em setembro, voltamos a conversar...

* * *

Mundo pequeno...

Se o mundo está pequeno,

de bicicleta, ele fica maior...

Se o mundo está em revolta,

de bicicleta, ele fica melhor...


Mundo pequeno... 
(Paulo R. Boblitz - jun/2011)

Uma vez nós estávamos em nosso passeio de todas as quintas-feiras, à noite, quando sempre puxamos para a Mãe Gorda ou para a Atalaia Nova, dois pontos opostos, quando descobrimos que esse mundo é mesmo pequeno.

Quem já não teve essa experiência? Por ela, já passei algumas vezes.

A primeira foi quando encontrei um antigo amigo de infância, que por um acidente quase perdeu a mão direita. Desse dia em diante nunca mais nos vimos, pois ele perdeu aquele ano na escola, por ter que se submeter a várias operações. Morávamos os dois em Fortaleza, no Ceará, por volta de 1963.

Em 1991, no meio do nada em plena selva amazônica, fui apresentado a um amigo da empresa, e quando ouvi o nome dele e segurei aquela mão, algo diferente se passou em minha mente. Enquanto eu ainda pensava, ele me pediu para repetir meu nome Boblitz, e nos demos um bom abraço, pois não nos víamos desde que cursávamos a Quinta série. Ele estava morando em Mossoró e eu já morava em Aracaju. Aquele foi o último embarque dele, e novamente, nunca mais nos vimos.

Por volta de 1993, andando pelo centro da cidade de Manaus, ouvi aquela voz estridente, algo esganiçada a berrar meu nome. Eu atravessava a rua e, com o devido cuidado, tentava encontrar o dono daquela voz. Foi só no terceiro ou quarto berro que pude ver aquele braço gesticulando de dentro de um táxi, parado atrapalhando o trânsito, onde os outros carros já começavam a buzinar reclamando.

Ele encontrou uma vaga e estacionou. Fui até ele e reconheci nosso Motorista que nos conduzia todos os dias, de Fazenda Belém, no município de Icapuí, no Ceará, para Mossoró, onde dormíamos. Aos fins de semana, voltávamos para casa em Fortaleza. Quando foi que isso aconteceu? De 1985 a 1987.

Mossoró, uma panela quente como a chamávamos, rodeada de montanhas, a meio caminho entre a costa e o sertão, foi palco de pelo menos quatro fatos interessantes em nossa História: o Motim das Mulheres, a Primeira Eleitora do Brasil e da América Latina, a Libertação dos Escravos 5 anos antes da Lei Áurea (Abolição, uma cidade no Ceará, também reclama essa marca), e a Brava Resistência ao Bando de Lampião, que depois do episódio, nunca mais conseguiu se recuperar.

Andei por cerca de 3 anos por Mossoró, e nunca encontrei o Cabra Véio Omar por lá, vindo a conhecê-lo há poucos anos, aqui em Aracaju, onde chegamos transferidos, quase juntos em 1989, e pedalamos sempre que o tempo nos permite.

Pois foi naquela dita quinta-feira lá de cima, já quando nos dispúnhamos a voltar, que alguém resolveu modificar o percurso, fazendo com que trilhássemos pela beira do rio. Olhamos para trás e vimos retardatários, e resolvemos esperá-los debaixo de uma lâmpada, sobre um cimentado. Havia uma senhora ali em pé, que nos reconheceu e se aproximou:

- Vocês não são aqueles que almoçaram conosco lá em Brejo Grande?

Conforme a conversa se desenrolava, descobrimos ter sido em nossa primeira trilha noturna, de Propriá até Brejo Grande, onde chegamos todos com bastante sono, pegamos um barco e fomos até a foz do rio São Francisco, tomamos banho de rio, e retornamos para o almoço já pelo meio da tarde.

Daquela quinta à noite, para esse domingo logo cedo, passaram-se muitos dias, pois que o tempo sabe esperar com paciência...

Voltávamos da trilha que nos levou até a praia do Jatobá, pela areia da praia, pesada por agarrar os nossos cravos, com uma fome para lá de braba, pois não encontramos nada que estivesse aberto àquela hora. Quando largamos a areia, Raimundo lembrou de tomarmos nosso café da manhã lá no Mercado. Lembrei então daquela senhora e perguntei se o Vovô ainda se lembrava de como chegar até lá.

- Deixa comigo... - respondeu ele, pedalando.

Enquanto pedalávamos até o nosso novo destino, fui lembrando de minha nova experiência: usei hoje, pela primeira vez, um bretelle. Vocês precisam ver na hora de fazer xixi...

Chegamos, nos sentamos à sombra gostosa pela brisa fria que soprava, nos despojamos de nossos capacetes, nossas luvas, e logo o Mangabeira, esposo de dona Neuza, se aproximou. Raimundo pediu um café da manhã reforçado.

Como aperitivo, chegou logo uma garrafa de café, e a sorvemos por inteiro.

Mais um pouco, queijo coalho frito em fatias bem grossas, ovos estrelados, cuscuz com queijo derretido pelo meio, pilombetas fritas e crocantes, carne de sol em pedaços, suco de jenipapo e mais café. Nós os pegamos de surpresa...

Se João de Deus, o Macaxeira, estivesse lá, teria dito:

- Só faltou a macaxeira...

Estávamos apenas seis, pela ordem cavalheira, Rosita, e pela ordem alfabética, Arruda, eu Boblitz, Chê Nestor, Raimundo e Vovô. Tomamos um café da manhã sob um telheiro que avança sobre o rio, ao som das águas leves que se chegam em suaves ondas. Do outro lado do rio, Aracaju..., e imaginei estar ali à noite, vendo o tremeluzir das luzes na água que não pára de marolear.

- Seu Mangabeira!? - chamei.

- Como é que funciona? - perguntei.

- Todos os dias da semana, de domingo a domingo, café da manhã e almoço, mas servimos também no jantar, se telefonarem marcando. Nossa especialidade é pirão de galinha de capoeira, pirão de peixe e pirão de guaiamum, claro, com os respectivos acompanhamentos. Quem cozinha, é minha esposa, a Neuza. Tudo aqui é caseiro...

- Então escreve aqui o endereço com o telefone... - pedi, debaixo de um largo sorriso dele.

Bar e Restaurante Mangabeira - rua B, loteamento Beira Rio - Barra dos Coqueiros (ao lado da ponte) - fones: (79) 9828-4657 ou (79) 9973-8362.

Pena, não ter levado minha máquina fotográfica, mas já vou acertar com a minha Patroa, um almoço por lá. Quanto pagamos? Vocês não iriam acreditar...

Não, não ganho nada em mostrar as coisas boas para os outros, mas se foi gostoso para mim, deverá ser também para vocês, afinal de contas, esse mundo não é pequeno..?

* * *

Trilha do Vovô (ii)

O que são 66 anos?

99 ao contrário, dirão alguns...

Fibra e juventude, digo eu,

porque Vovô não me deixa mentir...


Trilha do Vovô (ii)
(Paulo R. Boblitz - jun/2011)

- Que adianta bicicleta bonita..? O negócio é perna..! - parece que estou ouvindo Vovô na sua cantilena eterna, quando garotões com suas máquinas maravilhosas, vão ficando para trás...

De fato, Vovô tem pernas para dar e vender. Ele já pedala há muito tempo, tanto tempo que já perdeu as contas, essas mesmas contas que hoje diriam quantos quilômetros ele já pedalou. Ele nunca se utilizou de hodômetros; apenas das pernas, que são robustas como ele, que come de tudo, bebe pouquíssima água, não se utiliza de isotônicos nem de droga nenhuma. Não fuma, e não dispensa sua cervejinha nos fins de semana.

Mas Vovô não fica apenas nessas negativas, pois ele também não anda lá na frente, embora se quisesse, o faria sem o menor trabalho. Não deixa ninguém para trás, não permite que ninguém repare sozinho a bicicleta, quando ela pára por conta de um pneu furado ou uma outra quebra qualquer. Ele sempre chega junto e suja as mãos com o maior prazer desse mundo.

Vovô é o tocador da manada, aquele que vem recolhendo os desgarrados, varrendo o percurso nos dando a segurança de que nenhum Carniça foi esquecido pelo meio do caminho.

Vovô não precisa de marchas, nem de acessórios bonitos, nem de menos peso na bicicleta, nem de bike-fit, nem de bicicleta bacana.

Vovô nem precisa de motivo para pedalar, aliás, ele talvez seja o nosso grande motivo para pedalarmos, pois que já percorreu Sergipe inteiro desde sua juventude, e hoje, por semana, pedala cerca de 500 quilômetros. Isso mesmo..!

Se alguém pensa que estou exagerando, é só colar no Vovô e tentar acompanhá-lo.

Vovô é um sujeito, que se quisesse, e se fosse um pouco maluco, já teria pedalado pelo mundo, várias vezes, pois outro dia, numa simples estimativa, alcançamos com facilidade, mais de 1 milhão de quilômetros, o que esse velho porreta já pedalou.

Vocês não leram errado não; vou repetir: mais de 1 milhão de quilômetros, assim, por extenso, para que não haja nenhuma dúvida.

Vovô também não precisa de carro de apoio, nem de nenhum exemplo, pois ele é o exemplo vivo para quem quiser observá-lo, no seu jeito simples de pedalar, com as pernas mais abertas desse mundo.

Marque um encontro! Ele será sempre o primeiro a chegar, e a reclamar porque todo mundo chegou atrasado, porque ele é ranzinza e vive a nos dar as suas broncas, claro, junto também os seus sorrisos, porque de Vovô, ninguém consegue reclamar, nem tampouco deixar de gostar.

Pedalando ao lado dele, muita gente que nunca vimos, de carros que passam, de gente na calçada, de gente pedalando, acena e grita o nome dele: "Aí Vovô!!!"

Ele levanta o braço e continua pedalando...

Vovô também não gosta de carreiras, nem de exibições...

Outro dia, pedalando com apenas uma das mãos, justamente a do freio dianteiro, entrou num buraco e acabou caindo no chão. Levantou, sacudiu a areia, olhou se tudo em ordem na bicicleta, e continuou no seu caminho.

E Vovô é muito carinhoso. Sempre que pedalamos até o Mosqueiro, ele nunca esquece de levar um mimo para a Esposa que ficou em casa, como docinhos e salgadinhos. Vocês precisavam ver a expressão de desalento dele, quando um dia o fundo da sacolinha plástica estourou, e eu quase morri de susto quando logo atrás, precisei desviar daquele pote plástico cheio de guloseimas, agora espalhadas pelo chão.

- Vovô, vamos voltar e comprar mais? - cheguei a perguntar.

- Não... Hoje não deve ser dia da patroa comer doce... - disse-me ele, filosofando.

Vovô completou 66 anos, pedalando, e mais uma vez trilhamos a trilha dele, dessa vez, oficialmente, a Trilha do Vovô, que há três anos vimos percorrendo. Saímos de Aracaju, passamos por N. Sra. do Socorro, depois por Laranjeiras, onde visitamos a gruta da Pedra Furada e algumas das 7 igrejas, inclusive a mais antiga, de 1734, que teria, segundo os mais velhos, ligação subterrânea com a gruta da Pedra Furada, em linha reta, cerca de 1,5 km.

De lá, pegamos novamente um estradão em piçarra, que nos fez sair na BR-235, para chegarmos na BR-101, pegarmos outro estradão até o restaurante Calumbi, onde almoçamos um delicioso pirão de camarão, camarão cozido com bastante caldo, arroz branco e vinagrete. Foi com muita preguiça, que retornamos para Aracaju, via Nossa Sra. do Socorro novamente.

A trilha desse ano foi especial, pois havia uma surpresa bem bonita para Vovô: um presente de aniversário que resolvemos dar, justamente a bicicleta que ele mais gosta de fazer gozação.

A marca? Não vou dar essa colher de chá para o representante.

Cantamos os Parabéns, alguém fez um discurso, mais um pouco surgiu a bicicleta... Vovô não chorou, mas seus olhos refletiram todo o encanto da emoção. Montou que nem menino e saiu dando voltas, como quem experimenta um pangaré.

Vovô estava tão alegre, que na trilha não mais ficava lá atrás, como costuma fazer em todas; volta e meia ele passava cortando todo mundo, como se num pedal mágico. Vovô, de repente havia virado criança...

Exemplo nosso todos os dias, sempre exemplar aos mais jovens, nos ensinou mais uma lição: a gente só envelhece quando quer...

Foram 80,9 km, 874 metros de subidas acumuladas, 7 horas e meia de muita coisa boa, muitos sorrisos de Vovô.

Agora sei que existem dois mitos em Sergipe: Zé Peixe é um, aquele que ainda dispensa o rebocador e que vem nadando de alto mar; Vovô é o outro, que pedala sempre com correção, sozinho ou acompanhado, pronto sempre para qualquer distância, no sol, na chuva, na noite, em qualquer horário.

Basta você convidar...

* * *