Os relógios de nossas vidas

(Paulo Boblitz - ago/2005)


Diz o sertanejo, que o jumento zurra sempre ao meio dia; que o galo, o nascer do Sol anuncia. É verdade, mas não tão correta e pontual...

Quando perguntamos ao caipira que horas são, ele olha para o Sol, faz uma cara de raciocínio, torna a coisa mais difícil, e como entendido chuta a hora.

Quando queremos saber se vai chover ou não, ele faz a mesma pose, olha em torno de si, faz um "hummm...", e responde sim ou não, com um "talvez" bem embutido, carregado de seriedade e autoridade.

Tudo balela...

É certo que o jumento orneja próximo do meio dia, mas rebusna também ao longo do dia inteiro - pura coincidência... Já os galos, começam a clarinar ainda escuro, e ficam cacarejando ou insultando-se até o Sol raiar, hora em que se preocupam em pegar as galinhas, deixando o canto para lá...

Dizemos ainda, que quando vamos dormir cedo, vamos dormir com as galinhas... Quem já teve esta oportunidade, deve ter achado engraçado, ver galinhas, perus, galo, d'angolas, subindo na mesma árvore para o sono, assim que o Sol se põe.

Todo mundo tem um relógio dentro de si, e um despertador também. Assim, sabemos a hora do almoço, da janta, da merenda, do cochilo, do sono demorado, do compromisso, e despertamos os vários despertares da vida, como o para trabalhar, para namorar, para amar, para transar, para diversas experimentações por aí.

Depois de nove meses, despertamos para a vida...; depois dos treze anos, despertamos para o amor...

O homem, como animal organizado, inventou logo um mecanismo que mostrasse a fome na mesma hora para todo mundo; que mostrasse a hora de entrar e sair no trabalho; que uniformizasse os encontros e compromissos – inventou o relógio...

Enclausurou o tempo, e determinou o caminhar dos ponteiros na mesma velocidade.

Agora já não há necessidade de olharmos o Sol, de observarmos as galinhas e ouvirmos os galos. Agora já não temos mais as desculpas de tempo nublado, ou de não ter-se galináceos por perto...

O relógio controla e determina tudo...; pela primeira vez tivemos vinte e quatro horas por dia, distribuídas ao longo do dia e da noite.

Foi ele quem disse primeiro, que todos os homens e mulheres são iguais... Inventou a ditadura...

* * *

Economizando energia

(Paulo Boblitz – ago/2007)


Alguém me disse que viu na televisão, que desligando os aparelhos, no dedão, apagando todas aquelas lampadinhas vermelhas ou verdes, chegamos a economizar cerca de vinte e cinco ou trinta reais por mês.

Não pestanejei duas vezes; saí logo desconectando tudo o que era de aparelho da parede. Lá em casa ficou parecendo necrotério...; tudo apagado, sem nada a esperar da vida, de um controle remoto qualquer...

Sentado na sala, olhando tudo aquilo sem brilho, e sendo encarado pela patroa, a perguntar quem iria ficar se abaixando para plugar tudo na tomada de novo, logo pensei numa boa idéia, pois que diante de quaisquer empecilhos, o que mais vale é a criatividade.

- Mulher..! – falei virando para ela – por que não aproveitamos que está tudo desligado, e pintamos o apartamento..?

A aprovação foi imediata, e logo sorri com aqueles vários dias de poupança, sob desculpa de uma poeira que penetraria nos equipamentos, a danificá-los.

Nesse período, teríamos que arrumar outras coisas para fazer, pois ela sem televisão, eu sem o computador, e tudo morto dentro de casa..., o potencial era infinito...

No embalo da idéia, já que à noite estaríamos a dormir, por que não desligarmos também o freezer e a geladeira?

Foi tiro e queda... Além da energia poupada, logo descobrimos que não precisávamos mais comprar comida para a nossa pequena cadela Luna, que passou a amanhecer todos os dias, lambendo aquela poça no chão, com gosto de frango descongelado.

Pintamos o apartamento e, cansados, voltamos a ligar tudo novamente, já que não chegamos a arrumar mais nada para fazer.

A cachorra também logo enjoou de sopa gelada pelo chão, embora tratássemos de temperar a ave no dia anterior, para o degelo durante a noite.

Agora com tudo pintado, já está havendo necessidade de novas cortinas, e o sofá bem que poderia ser substituído.

O tapete central, nem pensar em colocar no lugar novamente. Com a nova luminosidade, manchas que nunca havíamos percebido, apareceram...

A geladeira necessitou ser reparada, pois os longos períodos repetidos de degelo, fez com que o gás fosse embora.

O freezer desenvolveu um barulhinho novo, e agora trepida com intenso vigor – parece até em abstinência alcoólica.

A cachorra sem-vergonha, agora só faz cocô e xixi no antigo lugar das poças que lambia. Diz a mulher que aquele sumo deve ter infiltrado, e agora já fedendo, deve ser sinal de bom lugar para qualquer necessidade...

Moscas estão aparecendo; a mulher querendo tudo novo, e o meu dinheiro indo embora...

Se alguém aparecer com mais alguma informação de poupança..., não vou dar atenção, não vou ouvir, não vou querer saber, e pode ser até que eu ainda venha a xingar.

Por causa de vinte e cinco reais por mês, acabei despertando a sanha gastadora na esposa, que para meu desassossego, estava apenas latente.

Todos aqueles longos anos de catequese com demoradas conversas de aproveitamentos e remendos, foram jogados fora apenas num conselho...

Falando em conselho, acabo de pisar em uma pasta marrom fedorenta da pobre Luna coitada, que, desnorteada, não sabe mais onde fazer as porcarias dela. Para piorar, depois que sentiu novos sabores, não aceita mais aquele resto de macarrão, que com ela aproveitávamos.

Com tanta coisa para a televisão informar, tinham logo que vir com um assunto desses...; olhem só o tamanho do meu prejuízo...

* * *

Minha vida é um filme

Quem nunca observou, não perca a chance...

Tudo nessa vida faz barulho...; tudo tem áudio...

Por que vocês não entram nos próprios filmes?

O meu está logo a seguir, e não é pirata...



Minha vida é um filme
(Paulo Boblitz - jun/2009)


Acordo sempre cedo todos os dias..., às vezes pelo som do despertador, ali para qualquer coisa, e outras vezes pelo som da claridade, que vibra em meus olhos produzindo lampejos de lucidez...

Abro os olhos e rezo, mas confesso que a reza é apressada, afinal a bexiga sempre acorda cheia...

Num instante começamos a ouvir barulhos...; é o colchão que se espreme, a sandália que arrasta onde visto o pé, a coberta posta de lado, o levantar estalando as juntas, o clique do botão do banheiro acendendo a luz, o bocejo expulsando a preguiça, o mijo caindo, um pum em liberdade...

O barulho aumenta com a descarga, a imagem do espelho quase grita, desgrenhada e um pouco inchada... Água que cai numa torneira aberta, o armário que se abre, a pasta na escova...

Pisco e mais um pouco encaro a escovação, som mecânico de limpeza, oco raspando algo...

Um galo ao longe também diz que já está acordado...; logo outros também confirmam...

Lavo o rosto e o som agora é outro... Apago a luz e vou fazer café; uma torneira se abre e encho o copo, água em jejum sempre faz bem; a pequena cadela vem dar bom dia, faz o barulho de um cheiro e vai embora...

Mais água caindo, agora na cafeteira, o filtro de aço é encaixado; abro o armário e pego o café, abro o pequeno pote, uma gaveta e a colher bate na outra..., depois arranha o pó e o despeja...; já posso unir as duas partes, e aço com aço vão se enroscando; a cafeteira está pronta, não sem antes bater no fogão... Acendo um fósforo, que acende o fogo... Agora é só esperar, ouvindo outros sons que não os nossos, um pingo que cai, outro galo que canta, um motor que passa, a cadela que se coça...

Sentado apenas aguardo, e por instantes tento repassar ou simplesmente pensar no novo dia, todo dia a mesma coisa, os mesmos sons, o mesmo aroma que agora me invade fazendo barulho do borbulhar do vapor; é o café saboroso que desperta, mais cheiroso do que gostoso, que queima a língua suavemente, nos transmite o calor esquentando as caldeiras...

Como algo e o mastigar tem seu próprio som, que sacia e satisfaz, produzindo energias... Pego meu café e vou ao computador, mais um som de botão sendo clicado, pequenos motores aumentando as rotações, o monitor nos dando informações, um bipe..!, mas sem ele também seria a mesma coisa...

O brilho se espalha, a esposa se mexe mudando de posição, fica mais um pouco, pois todos temos os nossos horários; o dela começa um pouco depois, com outros barulhos diferentes, uma filha para acordar, livros a juntar, tarefas a lembrar...

Os barulhos, devagar vão aumentando; agora existem vozes... - é a preguiça indo embora, cedendo lugar aos afazeres...

Meu café já acabou, hora do banho e do vestir, cada etapa tem seu barulho...; uma toalha, um pente, um zíper, um cadarço, papéis que são juntados, documentos enchendo o bolso, a porta que se abre, o até logo pronunciado, separando os barulhos que vão, dos barulhos que ficam...

Ligo o motor e aperto o cinto, engato a primeira e acelero, entro no ritmo dos que se movem...; agora são freios, buzinadas, arrancadas, apressados, o barulho mudo de quem oferece o jornal no semáforo, mostrando bem grande as mazelas do dia, gritando no barulho das letras, a fofoca em voga...

Levanto os vidros e escuto meu suspiro, todo dia os mesmos barulhos, não tão iguais mas parecidos, afinal vamos em frente a cada dia, mais um barulho novo conquistamos, nossa cabeça que amadurece, que mais reflete nos barulhos antigos...

No trabalho, o crachá faz emitir um bipe, que aciona a cancela, que oficialmente informa que existimos; estamos ali para produzir...

Novos barulhos, também os mesmos, vão se repetindo até irmos embora; um outro banho, mais um café, mais uma vez o teclado, quem sabe algo a escrever, até o bocejo atrapalhar, informar mais um silêncio que se aproxima...

Uma nova reza que não chega ao fim, pois pegamos no sono e sonhamos...; mais barulhos se nos chegam, nos vêm informar que estamos vivos, por enquanto libertos a navegar, a fazer o que nunca pensamos fazer, coisas da mente que, solta, começa a aprontar..., até que o despertador perca o pudor, ou a claridade perca o véu...

Abro os olhos e tudo começa de novo, os mesmos barulhos, as mesmas coisas, tudo igual...

Não fossem os problemas que se renovam, não fossem as soluções que imaginamos, não fossem os obstáculos que contornamos..., as alegrias que sorrimos, o tempo..., esse não passaria...

Seria como se estivéssemos na tecla pausa...

* * *

Mingo, meu amigo trapalhão

Duminguim, como o chamávamos, virou para mim e perguntou:

- Boblitz, quantos dentes têm o teu garfo?

Eu parei de comer e junto com ele verificamos que eram quatro...

- Então, comi três...

Estávamos no aeroporto de Salvador, jantando qualquer coisa, pois nosso avião só partiria dali a 4 horas. Enquanto conversávamos, ele tentava levar comida até a boca sem sucesso, até que ele, percebendo, fez a pergunta.

Por instantes, procuramos para ver se encontrávamos os outros dentes de plástico, mas eles já não estavam lá..., e rimos juntos por mais um tempo, como aquele em que ele resolvera fabricar cerveja no meio da selva...

Mas isso é uma outra história. Por enquanto, fiquemos com essa que criei em homenagem a ele:



Mingo, meu amigo trapalhão
(Paulo Boblitz – ago/2004)

dedicado ao amigo
José Domingos de Carvalho
(Duminguim)


Já estávamos voando há algum tempo, Mingo e eu, sem rumo como sempre, ele no canto dele, eu cá no meu...


Sempre que voávamos juntos, muita conversa era jogada fora; Mingo a tagarelar e eu a escutar...

Mingo era falastrão, famoso por ser conquistador. Eu era paciente, a escutar aquela ruma de embromação, às vezes me flagrando pensando em como é que ele conseguia agüentar, no caso remoto de toda aquela conversa ser verdadeira...

Voávamos separados, com nossas bússolas há muito tempo malucas, com nosso vôo sempre próximo do solo, visual e sem instrumentos; fizesse sol ou chuva, céu claro ou nebuloso, sempre estávamos lá, um fazendo companhia pro outro, quem sabe por um depender do outro, Mingo a contar histórias de louras, morenas ou ruivas, e eu a franzir o cenho, querendo e fazendo força por acreditar...

Éramos amigos há muito tempo, Mingo meio irrequieto, sempre cheio de idéias, desligado de tudo e de todos, às vezes me deixando maluco com tanta atrapalhação, já que eu era organizado e meticuloso, quieto e sempre ligado. Talvez por isso déssemos tanto certo, por sermos diferentes em tudo. Apenas numa coisa concordávamos: nos fazíamos rir o tempo todo, pois sempre estávamos de bem com a vida, ele com o jeito dele, eu aqui com o meu.

Estávamos alegres naquele dia; fazia pouco tempo que a chuva havia parado, o sol brilhando numa atmosfera limpa, lançando seus raios dourados sobre nós, também lavados e reluzentes... Mingo sempre zoadento; eu cá só escutando...

De vez em quando o alertava:

- Mingo..., tome cuidado...; você está se empolgando...

Sempre que o criticava, ele maneirava um pouco, se concentrava mais no vôo, parava de fazer aqueles ziguezagues, aquelas subidas e descidas, pois quando estava a contar mais um de seus casos, acabava gesticulando bastante, e à medida em que a história se desenrolava, mais e mais se arrebatava, e quanto mais se mexia, mais medo me dava em ver aquilo aos trancos e barrancos a deslizar pelo ar, às vezes aproximando-se perigosamente de mim.

Eu, por instantes fechava os olhos, balançava a cabeça não querendo acreditar, e tratava de me afastar de Mingo, não sem antes de chamá-lo de maluco, lembrando-lhe que algum dia ele ainda nos mataria...

- Voe quieto!, seu..., seu..., e o nome feio não conseguia sair, pois que Mingo era querido e não fazia aquilo por mal.

Mas não tinha jeito... Logo ele esquecia e começava com novo entusiasmo... Eu dava de ombros e tratava de tomar cuidado, sempre o vigiando para não deixá-lo aproximar-se de mim.

Mas nesse dia, já estava tudo acertado. O destino estava nos esperando mais à frente, naquela curva do tempo que somente a ele pertence, que apenas a ele é dado a permissão de conhecer...

Mingo espalhando zoada, eu a vigiá-lo para não corrermos perigos...; por isso não vimos aquele obstáculo; não tivemos nenhuma chance...

- Páaa!!! - Foi uma porrada e tanto...

Estacamos de repente e fomos ao chão ao mesmo tempo. Por sorte conseguimos aterrissar, cada um do jeito que pôde, cada um envolvido com seus próprios problemas.

Olhei para Mingo e perguntei:

- Tá tudo bem com você?

- Táaa... - respondeu ele meio choramingando, comprimindo a cabeça com as mãos.

- E com você!? - berrou para mim.

- Tá tudo bem! - respondi também comprimindo a testa, e sacudindo a poeira da bunda.

Aquele buraco na porta que eu havia mostrado pro Mingo, não era buraco nenhum...

Na verdade, como dois besouros coloridos e muito elegantes, asas longas e brilhantes, e com grandes antenas, caçávamos comida o tempo inteiro...

Nos achegamos, olhamos para cima, um tanto quebrados e doídos, um já querendo mangar do outro, e com as mãos espalmadas nas testas, olhamos aquele janelão transparente...; alguém o havia tampado com vidro..., bem no nosso caminho..., bem no meio do nosso plano de vôo...

- É vidro de novo... - virei para o Mingo e informei.

A primeira vez em que batemos num vidro, não entendemos nada, e ficamos horas e horas discutindo e tentando atravessar aquela barreira física, no entanto transparente...

Mingo, como sempre, cientista e filósofo, achou logo que estávamos numa outra dimensão. Começou teorizando que a superfície estaria a separar 2 universos, o de cá onde estávamos, e o de lá onde não podíamos ir. Num instante começou a fazer os cálculos complicados, onde aumentando a velocidade, nossa imagem deformaria, e a depender do ângulo de penetração, nós conseguiríamos passar, e se passássemos, estaríamos numa outra realidade, quem sabe energética, num mundo de cristal...

Na época, chegou a se empolgar fazendo cálculos financeiros, pois quando retornássemos, ele ficaria rico com tanta palestra e explicação. Um livro lançaria, um laboratório compraria, secretárias contrataria...

Secretárias..., e de repente tudo esquecia, pois que mulher, era o seu ponto franco.

- Afinal..., onde é que estávamos mesmo? – ele costumava perguntar, sempre que divagava em saias.

- Nós estamos feito dois besouros patetas, a tentar seguir em frente, e não vou dar mais nenhuma carreira para tentar atravessar. Acho melhor voarmos em outra direção – naquela primeira vez, ponderei impaciente.

Mas Mingo era teimoso, e não fosse nossa amiga Dona Joaninha, que ia passando naquele instante, talvez o Mingo ainda estivesse até hoje em conjecturas.

E ela, na época, nos informou:

- Não adianta! Vocês não conseguirão! Vocês podem ver o que há lá dentro, mas não podem passar. Outro dia aconteceu o contrário. Eu estava do lado de dentro, meus amigos voando cá fora, e eu batendo a cabeça toda vez que tentava me chegar a eles, até que alguém abriu aquela janela e eu pude voar para fora - ela completou.

Para quem bate num vidro, a sensação é horrível, pois não vemos nenhuma descontinuidade em nosso trajeto, e de repente, nos arrebentamos numa coisa que não vemos, numa superfície invisível...

Lembrando da situação anterior, virei para o Mingo e repeti:

- É o tal do vidro novamente...

- Deveria existir uma lei que proibisse essas vidraças transparentes... Deveriam ser todas com revestimento... – resmungou Mingo...; e continuando... – é um perigo para nossa espécie... – concluiu todo filósofo.

- Tá certo, Mingo... A gente descansa um pouco e depois nós vamos procurar onde voar em outro lugar..., mas a culpa foi sua! Não fosse eu ter que ficar tomando conta do seu vôo, teríamos visto a vidraça..., seu exibido...

Dito isto, já arrependido por ter falado, deitei-me à sombra de uma folha, fechei os olhos e tentei me acalmar, enquanto Mingo ficava pra lá e pra cá, ensaiando uma resposta para mim, de vez em quando estacando e levantando uma das asas, como quem fosse iniciar alguma frase, desistindo em seguida...

De onde estava, conseguia vê-lo sem que ele notasse; garanto que naquelas alturas ele já estaria fazendo novos cálculos matemáticos, pois que no fundo, no fundo, não aceitava a explicação de Dona Joaninha, calculando a refração da luz, o comprimento de onda, a trajetória, a aceleração, a desaceleração, o impacto e outras coisas mais, inúteis a nós, dois besouros grandes, eu bem maior do que ele, portanto mais dolorido ainda.

Se um dia ele chegar a uma conclusão, vai torrar o meu juízo com tanta explicação... – fiquei pensando...

Acabei pegando no sono, um sono pesado de quem está cansado, pelo susto e pela dor da bordoada. Acordei com um som de estalidos, e vi o Mingo se contorcendo todo.

- Mingo..! O que houve? - perguntei, ainda desembaciando os olhos.

E ele, numa voz grave:

- Estou fazendo alongamento...

Dito e feito: - "tráac!" – esticou uma das asas para cima, desdobrando-a, enquanto encostava uma antena na outra, entortando a cabeça no sentido contrário.

Mingo não tinha jeito mesmo... Ali estava ele, com meiões coloridos acima dos joelhos, esticando-se todo em exibição, só para as meninas que passavam voando por cima, olharem para ele...; à noite ele teria muito assunto para conversar com elas...

- "Tréec..!" – e Mingo agora já estava numa outra posição, encostando um calcanhar nas costas, enquanto o segurava com uma das outras patinhas, jogando o corpo todo para frente...

Era um exibido mesmo... Pra quê tudo aquilo? – me perguntei.

Minha cabeça doía e a barriga já dava sinais de fraqueza; estava impaciente e irritado para ficar vendo toda aquela arrumação.

O Mingo, decididamente, não é desse mundo... – imaginei com a minha certeza.

Bati minhas asas e levantei vôo, começando a ir embora, em direção oposta à da vidraça, quando escutei um berro às minhas costas.

- Ei..! Espere por mim!

E Mingo saiu fazendo carreira, ainda meio manco e desengonçado pela queda, voando de qualquer jeito, tentando me alcançar, mas desta vez eu não deixaria, pois lá vinha ele comentando:

- Creio que a vidraça é constituída por cristais birrefringentes, com polarizações diferentes entre si, o que faz com que as ondas...

Enquanto ia falando e pensando no que falava, ia gesticulando e apontando como a dar uma aula, provocando aquele vôo característico que somente aquele maluco fazia.

Esgueirei-me de mansinho atrás de um arbusto e o deixei passar discursando sozinho, e não pude deixar de sorrir, pois daquele jeito ele encontraria outra coisa pra bater na cabeça, tal era sua abstração genial em voz alta, a explicar o que teria acontecido conosco lá atrás. Quando ele se comportava assim, ficava cego e surdo, mais parecendo um rádio...

Enquanto ele passava, fiquei pensando que quando ele descobrisse que o deixara conversando só, ficaria bastante zangado; já sabia até o tamanho da bronca que ele me daria... Faz mal não; amanhã fazemos as pazes novamente...

E segui no meu rumo, pensando na sorte que tivemos: não estivesse aquele vidro no caminho, teríamos passado e não encontrado nada, pois que dentro de casa não tem comida para besouro...

Tem sim é chinelada de uma zelosa patroa, e nestas alturas não estaríamos aqui..., eu contando a história, e Mingo falando sozinho...

* * *

Partidarismo

(Paulo Boblitz – mar/2005)


Os animais não têm partidos; têm instintos, e por isso vivem a correr atrás de comida, ou a correr para não tornarem-se comida...

O homem com partido, de certa forma é radical; sem partido, é alienado; e de vários partidos, é muito sabido e sobretudo habilidoso...

O animal cuida para viver, e o homem vive para cuidar...

O radical e o alienado, de certa forma vivem bem, pois acreditam no que pensam, e principalmente no que fazem...

O pluripartidarista, profissional, por sua vez, vive bem também, sob o ponto de vista confortável do viver, pois defende enquanto ataca, e ataca enquanto defende, principalmente os próprios interesses...

A diferença entre os homens e os animais fica fácil de estabelecer, mas entre os próprios homens, só a experiência pode determinar.

Existem os sábios e os sabidos, os primeiros sempre bem lembrados, e os segundos, dificilmente esquecidos...

Herói e vilão, ambos passam para a História, o primeiro porque deu de si, e o segundo porque tomou para si...

Ambos se encontrarão ao final de certo tempo, segundo o julgamento e a própria História, na mesma linha de importância, tanto mais quanto mais tempo passar. É a ironia da humana confusão. É o conflito pela comunicação. É o problema da memória. É a questão de como se conta a História...

Muitas vezes, o problema é só de torcida, tornando-se partidarismo. Outras vezes, o problema é de engenharia, tornando-se manipulação da massa. Seja como for, ambos são casuístas...

Por isso a importância da cultura, pois é ela a verdadeira visão, a verdadeira decisão, a real convicção. É com ela que deixamos de lado a alienação, e conseguimos enxergar o herói e o vilão, independente da História...

Fisiologismo e ideologia, têm tênue linha de separação. A comandar os dois, encontra-se o interesse, que a exemplo da maré, ora se eleva, ora se abaixa, não importando a direção...

A tudo isso chamamos de política, que como o próprio nome define, encerra todas as razões...

* * *

Tempo ruim











Essa história deve ter acontecido numa tarde qualquer de 1985 ou 86, e o susto foi muito forte. De sustos em sustos, nossos cabelos vão tingindo de branco, ou, se preferirem, perdendo a cor...


De nossa Petrobrás, guardo mais alegrias do que sustos, ou, nela, a vida me sorriu melhor...

A pequena Curimã 2, onde a BS-3 ficou atracada, aquela mesma em que construímos o campo de futebol (ler Competição em alto mar), estava ligada por uma gangway móvel e complexa, pois a plataforma é fixa e a balsa se mexia conforme as ondas e marés. Subíamos até o topo da PCR-2 e depois passávamos para a PCR-1 pela passarela de ligação, um projeto bonito e bem feito, pois as duas, embora fixas, se mexem constantemente.



Tempo ruim
(Paulo Boblitz - dez/2005)


O vento marinho entrava pelas narinas, carregado e pesado, deixando seu gosto pelo caminho da língua. O aço gorduroso de maresia era frio, molhado e escorregadio, e sujava a tudo que nele tocasse.

Subindo e descendo, já fazia um bom tempo que víamos aquela chama laranja se aproximando, energia queimando na ponta de uma lança de queimador. Já era tardinha e o Sol escondia-se às nossas costas, por trás daquelas pernas de aço da PXA-1 ao longe, em silhueta contra a luz forte que tentava no horizonte ir deitar.

O rebocador mergulhava mais fundo enquanto cortava o mar, cavalgando fazendo seu bigode crescer enquanto rumava, enquanto afastava as ondas no singrar. Gotículas se chegavam, molhando-nos a face, mostrando-nos o gosto salgado do oceano...

Navegávamos contra a corrente, contra a ordem natural das ondas, e a cada vazio a embarcação descia e estremecia, um ferro grande qualquer batia, mais água espumada subia pelo ar. A cada mergulho, o rebocador tornava a se elevar, teimoso e constante, vibrante mas humilde, diante de tanta grandeza a lhe cercar.

Olhei para o amigo e tive pena, pois não havia mais o que vomitar, nem nada mais a se fazer, a não ser levar o ar fresco na cara e tentar reagir, ao que chamamos de enjôo do mar, triste disfunção que nos maltrata, que toma conta de nosso organismo, que rege o timão de nossos nervos, que queima o fusível de nosso circuito interrompendo a razão, produzindo tremores, turvando a visão, fazendo sofrer e enfraquecendo qualquer espírito...

Tonto..., justamente ele que regurgitava até pelos ouvidos, que não soubera respeitar o grande mar, tonto agora não discernia mais nada ao seu redor. Mar não se enfrenta, não se desrespeita. Mar sempre é acatado...

O mau tempo já nos tinha feito voltar, pois helicóptero nenhum arriscaria pousar em espaço tão reduzido, cercado por torres de aço, pontas e antenas, aço puro agigantado, duro a todos querendo amassar sem nenhum perdão... No meio do caminho havíamos feito a volta, pois o tempo naquela tarde estava mau humorado, acinzentado e assanhado, cheio de buracos no ar, a querer nos tragar...

Mar e ar se conversam, se trabalham e se ajudam, pois um é feito do outro, e quando um empurra, o outro rejeita na mesma proporção, até as reações se fazerem nulas, hora em que o mar engole tudo, sorve a própria morte e a mantém prisioneira lá bem fundo, no fim do mundo, onde tudo é muito escuro, tudo é bem espremido...

O barulho do vento e das ondas se confundia com o ronco surdo dos motores, e se misturava às grossas baforadas de fumaça negra saindo das duas grandes chaminés laterais. Metal da proa pontiaguda recebendo pancadas de toneladas molhadas, sem fim até que chegássemos ao nosso destino, aquela plataforma cada vez maior, cada vez mais iluminada, mais barulhenta, mais cheia de silvos, de motores a roncar, atividades para a broca perfurar cada vez mais fundo, não importando o tempo que se faz soprar, nem a luz que se faz chegar...

O frio já começava a castigar, e o tonto mais um pouco estaria inconsciente, onde nem bílis mais se chegava, e as convulsões é que ditavam as únicas reações de um corpo nauseado. Dava pena e preocupava, ver o colega em ação involuntária. O Capitão já havia acelerado o mais que podia, máquinas a toda força, e quanto mais rápido andávamos, mais fundo penetrávamos nas paredes de água. Quanto mais se fazia, mais a situação piorava...

Chegamos já de noite aos pés da plataforma de Curimã, impávida sendo açoitada, milhares de bolhas de champanhe em cada perna a espumar, mangueiras pendentes balançando, o mar assobiando a cada vez que passava pelo piso grelha do convés inferior, a água espelhando um sem número de luzes, dançando nervosas no sobe e desce das ondas raivosas...; mas o pior ainda estava por vir...

Havia uma balsa de serviços atracada ao lado dela, a enorme BS-3, pulmão de materiais e alojamentos, e teríamos, por razões de segurança, que desembarcar por ela, face à visibilidade do operador do guindaste. Embarcaríamos na cestinha e sairíamos daquele suplício, daquele inferno molhado...

A cestinha foi descida no convés, distribuindo pancadas também raivosa, e uma dupla embarcou primeiro; era preciso avisar ao guindasteiro que subiria um colega já quase fora de si, pois subir na cesta com as embarcações se mexendo, requer cuidado e equilíbrio.

As ondas espremidas entre as duas embarcações, ora aproximavam, ora repeliam uma da outra, produzindo movimentos laterais perigosos. O próprio guindaste operava já de uma base em movimento, balanço esse que era transmitido e amplificado para a ponta de sua comprida lança.

De popa virada contra as ondas, vez ou outra, quando o rebocador a afundava, uma delas aproveitava e lavava o convés. Deu medo olhar aquilo... Deu medo olhar o colega já sem lucidez. Deu medo de desembarcar. Deu medo quando pensei que o operador pudesse não ter tanta experiência. Deu medo ver tudo grande e escuro, brilhando ao facho dos holofotes, mostrando cada garra afiada e brilhante. Deu medo de ser mordido...

Nada era suave, e nem poderia ser, sob o ronco feroz dos motores à vante e à ré, tentando manter o rebocador parado no lugar. Quando a balsa balançava para um lado, o rebocador reagia ao contrário, e todos éramos impelidos para algum lugar.

A cestinha pairou por alguns instantes e logo tocou os pranchões do convés molhado, vibrando em barulho daquilo que se é largado. Escorregou um pouco para os lados, parando quieta quando o cabo foi relaxado.

Certificamo-nos que estava tudo pronto, tentando ver o operador por trás de tantos holofotes. Não o vimos, mas ele nos entendeu e buzinou. Olhei em volta e rezei, reza apressada ao som dos baques da embarcação na água; reza atribulada pelo carregar do colega até à cesta, ajudado por mais um da nossa equipe; reza misturada com tantas ações...

Sentamos o colega no meio do lastro de lona, e o agarramos com todas as forças. A parede de cordas da cestinha balançava para um lado e para o outro, mole jazida no convés, um pé sobre ela, o outro pé sobre o convés. Haveria um forte impacto quando o cabo de aço fosse retesado.

A buzina do guindaste troou, o coração apertou, a saliva não desceu, a reza se apressou, e o impacto chegou... Fomos, de um salto só, içados a pequena altura e nos transformamos em pêndulo em ângulo, pois as embarcações haviam se afastado.

Começamos um movimento lateral, diretos em rota de colisão com a borda lateral do rebocador, tubos grossos que formam uma grade firme e protetora, nos aguardando com sofreguidão...

O operador viu e acelerou com vontade, transformando nosso movimento em arco, fazendo-nos subir do melhor jeito que ele podia... Livramo-nos de uma borda e agora estávamos indo rápidos demais contra as defensas da balsa, grossas toras de madeira, desfiadas em farpas pontiagudas, pontas de parafusos gigantescos, pneus e muitas correntes, aço grosso retorcido de tanto levar pancada...

Como era alta aquela balsa..., e como subíamos desembestados... Passamos a poucos centímetros da amurada, e continuamos a subida em disparada... O operador compensou a lança e sustou nossa subida, e nos desceu com suave maestria, nos depositou com carinho naquele chão rude em madeira com fina camada de areia grossa para as lagartas do guindaste não escorregarem; chão macio de quem chegou em porto seguro...

Sentamos em uma caixa qualquer de algum equipamento, as pernas tremendo com tanta adrenalina, as mãos doloridas de tanta força no pegar, até que a respiração desse uma trégua, o coração diminuísse, o frio voltasse a incomodar... O colega foi atendido e por instantes a baldeação interrompida. Mais quatro cestinhas e poderíamos, todos juntos, comemorar. Graças a Deus não houve nada naquela noite, pois Ele é Quem guiava os comandos do guindaste.

Estávamos exaustos e doloridos, mais ainda agradecidos, e naquele dia fomos dormir mais cedo, mais experientes, mais conscientes, mais temerários, pois no mar aprendemos a esperar, aprendemos a ter paciência.

É sempre ele quem dita a hora e o lugar...

* * *
Em qualquer lugar que chegamos, encontramos sempre aqueles mais empolgados, ou, aqueles mais afoitos, ou, aqueles mais exibidos...

Eles também crescerão...



Brigadista especial
(Paulo Boblitz - jan/2006)


Brigadista é todo aquele que, na hora H, quando o bicho está queimando, ele corre para tentar apagar, junto com os outros brigadistas, que sempre treinam mantendo a forma. Em cada unidade, a Petrobrás mantém um campo de treinamento onde simula vários tipos de incêndio.

Em Urucu não poderia ser diferente, e lá havia também uma turma de brigadistas.

Certa vez, na hora do almoço, na nossa mesa sentou-se o colega todo prosa, com um macacão cheio de cores, cheio de fechos ecler nos punhos, nos ombros, nas pernas, em tudo quanto era lugar. O macacão tinha faixa inclinada, faixa horizontal, faixas em todas as direções, bandeira do Brasil num ombro, bandeira do Pará no outro, tinha amarelo, tinha verde, azul, laranja, branco e quem sabe até mais algumas outras cores.

"Isso era para chamar a atenção" - explicava o colega brigadista - "de propósito...", pois identificava o brigadista no meio dos outros simples mortais.

Antes mesmo de alguma coisa pegar fogo, o sujeito já era um herói...

E aí, como nossa turma era afiada, tanto quanto afinada, começamos a fazer perguntas, e a cada pergunta obtínhamos uma resposta, cada vez mais empolgada, nem um pouco desconfiada...

A hora do almoço era o nosso descanso, a hora em que mais descontraíamos, e sempre almoçávamos a turma inteira. Isso tinha uma explicação lógica, como o transporte que trazia todos ao mesmo tempo, o entrosamento bom do grupo, que era bastante unido, e novamente o transporte, que levava todos de uma só vez.

Interrompendo a nossa curiosidade sobre o traje do rapaz, o Custódio, levantando-se para pegar mais suco, delicado perguntou ao grupo se alguém mais também queria, no que respondi de imediato:

- Quero..! Me traz dois copos, por favor... - pedi de propósito, pois os copos eram do tipo descartável, daqueles que não têm rigidez nenhuma. Assim, como fazer para trazer três?

Ele fez que sim com a cabeça, deu meia volta e saiu andando. Quando tinha andado dois passos, parou, virou-se indignado e perguntou:

- E eu.!?

E sorrindo levantei, e com ele fui pegar suco de cupuaçu, deixando a mesa mangando dele, pois com copo mole daquele jeito, só cabia um em cada mão.

Voltando à mesa com o meu suco, que lembra muito o gosto da graviola, virei bem sério para o colega brigadista e perguntei:

- Você tem medo de onça?

- Têênho..!, mas quem não tem!?

E aí, entre um gole e outro, respondi:

- Eu..., estando do seu lado..., teria menos...

Um colega, já percebendo alguma armadilha no ar, perguntou:

- Pur quêê!?

- Vai que a onça pense que ele é uma arara grande, vai comer ele primeiro..., né não!?

E começaram a chamar o colega de arara, arara para lá, arara para cá, e do dia seguinte até meu último embarque, nunca mais o vimos com aquele macacão vistoso de brigadista pára-quedista especial.

* * *

Peço perdão

Perdão por incomodá-los; faço isso com boa vontade...

Perdão por ocupá-los...; faço isso também por mim...

Perdão se alguém não gostar...



Peço perdão
(Paulo Boblitz – ago/2004)


Dedicado a todos
que necessitam
pedir ou dar
um perdão.


Peço perdão ao Senhor meu Deus, em primeiro lugar...

Peço perdão ao Senhor meu Jesus Cristo, em segundo lugar, embora eu O confunda com Vosso Pai e, às vezes, fique sem saber a Quem pedir...

Os Dois sempre me deram tudo o que solicitei. Meu medo é que um dia Efetuem alguma cobrança e eu não possa pagá-Los à altura como tantos já pagaram, pois sou fraco e tenho medo de não honrá-Los diante da dor ou do sofrimento.

Peço perdão aos meus amigos e aos amigos que ainda conhecerei, todos irmãos. Fico triste por não ter conseguido conversar com os que já se foram. Quem sabe um dia nos encontremos e lá então conversaremos, creio eu que já perdoado por quem se libertou da gravidade.

Peço perdão por não ter criado, ou por ter criado o que não precisava existir.

Peço perdão por não ter entendido, ou por pensar ter assimilado.

Peço perdão por não ter tido a paciência, ou por tê-la tido em demasia, estragando alguma coisa...

Peço perdão por não ter conquistado pelo perdão, ou pela simpatia, ou pelo amor, ou por ter usurpado alguma coisa que não fazia jus.

Peço perdão por não ter amado a quem necessitava do meu amor, mas eu não sabia, ou se sabia, não me dividi, não me suplantei...

Peço perdão por não ter sorrido na hora certa, ou ralhado quando precisava. As mágoas são diversas eu sei, pelo magoar, pelo dizer, pelo fazer, mas não conhecemos o futuro e nem o verbo a ser pronunciado.

Peço perdão por não ter trabalhado, por não ter produzido, por não ter gerado, ainda que continue sem saber o que poderia ter construído.

Peço perdão por ter sido fraco, ou por ter sido forte, quando as situações exigiam o contrário...

Peço perdão se não ensinei, e se não aprendi, pois existimos por alguma razão...

Peço perdão por não ter visto, embora tenha a mim sido mostrado...

Peço perdão por não ter esquecido, ou pelo esquecimento daquilo que não poderia esquecer.

Peço perdão por não ter sido leal, seja pelo egoísmo ou pela inveja, pela comodidade ou pela ignorância.

Peço perdão por ter sido arrogante, ou por ter sido humilde quando precisava reagir.

Peço perdão por ter sido perdulário, ou magnânimo quando o certo era cortar.

Peço perdão por não ter ousado, ou por ter sido precipitado quando o correto seria calar e ouvir...

Peço perdão por não ter chorado, ou por chorar quando devia ter enfrentado.

Peço perdão por ter adoecido, quando devia sustentar, mas isso independe de nossa vontade.

Peço perdão quando sucumbi aos vícios, quando devia ter honrado minha saúde para um futuro de velhice.

Peço perdão por não me lembrar do quê ser perdoado, ou do quê a ter que pedir, ou de quem a ter que solicitar.

Peço perdão por não ter sofrido como vejo tantos a sofrerem, ou por não ter agradecido por tantas felicidades que eu conquistei e que vi acontecer...

São tantos os perdões a solicitar e a perdoar, que me vejo perdido entre as lágrimas que teimam em marejar, com a dor do aperto no coração, embriagado entre os remorsos e ressentimentos que se embaralham em minha tela, pelas lembranças que o olhar vazio arranca do horizonte do passado. O suspiro é cansado e abatido, quando deveria ser de valentia. Mais um perdão, por favor.

Perdão por ter sido exibido, quando ao meu lado havia um humilde.

Perdão pelos orgulhos tolos, pelos empacar, pelos não arredar, pelos gritar, pelos calar, pelos silêncios malignos ou cheios de ódio, pelos revides físicos ou verbais, pelas vinganças pensadas ou executadas, pelas futilidades ou vaidades, pelas nulidades materiais que o dinheiro compra, pelas coisas boas jogadas no lixo das frivolidades.

Perdão por somente agora eu o estar pedindo.

Perdão por não ter unido, por não ter apaziguado, perdão por tudo aquilo que separei.

Perdão por ter sido omisso e distante, surdo e cego, por não ter orientado, ou por não ter sabido encaminhar. Perdão por não liderar.

Perdão pela falta de sensibilidade, pelo não agradecer quando deveria, pelo não reconhecer quando recebido. Perdão, perdão, perdão...

Perdão por não ter sabido cultivar a humildade, nem utilizá-la, mesmo achando bonito quem a pratica.

Perdão meu Deus, por sofrer por quem eu amo, por enxergar os erros de quem me preocupo, e de nada poder fazer para ajudar, ou por não saber como mostrar, ou intervir, ou resolver. Perdão por perguntar: por quê o Senhor deixa acontecer?

Perdão pela vergonha que sinto por tudo o que eu fiz e que não fiz, quando poderia ter sido diferente se eu tivesse o dom da compreensão, ou da paciência, ou da compaixão, ou da sabedoria, ou da lealdade, ou da experiência do sempre mais velho, que sabe porque é velho, que é velho porque sabe, que sabe porque vive na velhice...

Hoje olhamos à volta e não vemos mais aquele brilho de outrora. Vemos a poeira do desânimo, o arroxear das pancadas que foram dadas e recebidas, os frutos bons que vingaram, as daninhas que forçaram seus caminhos nas pedras duras das palavras e das ações. Juras foram esquecidas, sentimentos suprimidos, sangue do sangue a misturar, e evaporar ao som das partilhas daquilo que foi conquistado em conjunto, com amor, com sacrifício, com padecer e noites em claro. Meu coração chora sem lágrimas, sem o doce sabor salgado da infelicidade que é passageira, mas com o cruel aperto do nó que não desata, com o volume diminuído dos pulmões que um dia aspiraram as flores prometidas do para sempre, com o acre sabor do saber sem volta impotente, câncer da família desfeita a dar exemplos, sorrisos transformados em caretas, suspiros que se tornaram xingamentos. Ele chora palpitando pela ausência da lealdade, em ardor silencioso das incompreensões e das incompetentes faltas do renunciar.

Perdão por não ter cumprido com meu papel, no ato da peça que me valia, esquecendo a fala não querendo sopro do palco, improvisando onde não inventamos, apenas vivemos, apenas devemos fazer a nossa parte, sempre bem feita, conforme o que foi contratado, prometido e selado diante do Senhor.

Perdão Meu Grande Pai Todo Poderoso, em ver tudo isso e nada fazer, apenas me intrometer, sem sangrar, sem nenhuma dor direta sentir, e apenas daqui de longe constatar que não somos o que somos, mas apenas o que fomos.

Perdão meu Bom Deus, por ter que pedir perdão. Perdão por, às vezes, não saber ou não querer ouvi-Lo.

Perdão...

* * *

O pimeio dente

Quem já foi criança, é bem capaz de não se lembrar... Quem já viu acontecer, pu sheto me daá rajão...

Lembei desha históia, quando minha amiga agóinha me contô como faiava o pópio nome déia... Quando ela quiansha, né!?

Tá aí no bog...; minha amiga não!, a históia...



O pimeio dente
(Paulo Boblitz - ago/5)


- Mamãe!, meu dente tá mole... - falou a criança, balançando o dentinho com a ponta do dedinho.

- Vem aqui meu anjo...; deixa a mamãe examinar...

O irmão mais velho, fedorento e com espinhas, foi logo fazendo inferno:

- Vai ter de arrancar... - enquanto falava, ia fazendo uma careta de dor, levando as mãos à bochecha, como se tudo estivesse inchado.

A criança olhou apavorada para a mãe, que já estava com os braços abertos sorridente, esperando para ser a sua primeira dentista.

O irmão mais velho não podia deixar passar a ocasião, e novamente fuzilou:

- Eles dão uma injeção desse tamanho... - e abriu os dedos polegar e indicador, diante dos olhos já arregalados da criança, agora já com a boca aberta em análise pela doutora da casa.

E continuou:

- Eles usam um alicate desse tamanho, ó! - e fez o tamanho da ferramenta, bem maior do que o normal.

- E quando eles arrancam o dente, vem até pedaço de juízo, fora a ruma de sangue também...

A criança, já apavorada, perguntou:

- É er-áde, ãe?

- Claro que não! Manda ele ir cagar...

- Ái a-á! - falou a criança com os dedos da mãe em sua pequenina boca, examinando-lhe a dentição.

E o irmão mais velho soltou uma risada sem tamanho, certo que havia cumprido a sua missão, como quem a informar que por aquilo tudo ele já passara.

Como a oportunidade era difícil de se repetir, não deixou por menos, continuando a enjoar o irmão mais novo:

- E vai ficar um buraco assim, ó! - e fez o tamanho do buraco...

A criança olhou para a mãe, pedindo ajuda, e ela prontamente:

- Manda ele tomar banho...

- Ái o-á ânho...

E o irmão mais velho aí é que ria, e o pior!, já estava contaminando a própria mãe, que já começava também a achar a situação engraçada.

A criança, completamente cercada pelas adversidades, vendo a sua esperança, a sua mãezinha querida, logo ela!, também a abandonando, traiu-se em início de choro.

Os olhos a denunciaram, criaram água e mais brilharam mudando de cor, anunciando em muda mensagem, o desconforto do temor, a sensação do abandono, do ninguém mais gosta de mim... Tudo parecia desmoronar para a criança; até a Santa à sua frente, já queria mangar.

- Prooonto... - disse a mãe.

Fez-se um silêncio de repente; os olhos da criança enxugaram, o irmão mais velho parou com a macaquice, e todos ficaram a contemplar...

A mãe, com o pequeno dentinho entre os dedos, um pouco vermelho de pouco sangue, o exibia para o mundo, principalmente para a criança, em amorosa lição que operação de mãe não dói...

A criança já passava a língua pelo buraco, e estendia seu pequeno braço para pegar o que havia sido seu.

A mãe, antes de dá-lo, recuou um pouco a mão, avisando:

- Vamos guardá-lo de recordação..!

E a criança, tomando o dentinho com curiosidade e fazendo que sim com a cabeça, o observava com atenção, em pé por entre as pernas da mãe, já esquecida do seu primeiro problema existencial, assim como esquecido estava do irmão mais velho, agora sem muita graça e ação.

- Agora assobia! Assobia que eu quero ver... - provocou novamente o irmão mais velho, não inteiramente derrotado...

- Fái tomá fanho..! - falou soprando a criança, tentando assobiar, saindo correndo pelo mundo a anunciar, mostrando a sua grade aberta a todos os amiguinhos, com orgulho comentando:

- Foi minha mãe que aancou..!, e eu nem choei...

* * *

Palavras

(Paulo Boblitz - jun/2009)


As palavras não são duras; dureza é o que elas podem representar...

Toda palavra encerra uma verdade, pois que cada uma tem o seu significado.

Nós apenas as utilizamos, e as pobres são incapazes de representar algo em contrário, quando com elas mentimos...

Nenhuma delas é competente para desmascarar quem as pronuncia...

Palavras são apenas sons que nos surgem da alma... Se somos puros, elas por certo encerrarão pureza; ao contrário, se somos falsos, elas prometerão um futuro cheio de dores...

Palavras representam muitas coisas... Podem destruir, podem construir...

Palavras salvam, estimulam, modificam, tornam as pessoas mais humanas... Não é à toa que somos animais falantes...

- Alô!? - escuto apenas o silêncio..., que muito também diz...

- Alô!? - ninguém responde...

Por isso a solidão é triste, por não existirem palavras...

Por isso os loucos são dementes, por não ouvirem respostas de paredes...

Por isso ficamos roucos, quando nos lançamos ao vento...

Calo também, aumentando a distância...

Passo a desejar..., pois que desejos são palavras mudas; só as escutam nossos Anjos...

Mas dizem que ouvir também é conversar... Assim, fico contente...

Jamais percam a vontade de falar... Cantem, se for o caso...

Por isso as mulheres são especiais, por mais falarem...; enquanto estiverem falando, o mundo será sempre belo...

Palavras..., sons e grunhidos tornados verbo...

Por isso temos poder...

* * *

Uma nova paixão...

(Paulo Boblitz - jun/2009)


Fazia tempo que não me apaixonava..., uma pena, pois é tão gostoso estarmos apaixonados...

Pensamos nela o tempo inteiro; sonhamos em tudo o que fazemos, como se ela estivesse nos olhando...

Imaginamos, imaginamos, e imaginamos...

O que ela estará fazendo agora? Será que pensa em mim?

Dúvidas e mais dúvidas, ansiedades, desejos, fantasias...; como é bom a paixão...

Mudamos radicalmente... De repente, tudo fica ótimo. Esquecemos da palavra não, nem ligamos para alguma perda, não sentimos mais a dor, nada mais nos é desagradável, pois estamos tocados pela magia do amor...

Rimos à toa..., e descobrem logo que estamos apaixonados, pois que passa a brilhar em nossas frontes, aquele enorme néon.

Damos uma topada e não pronunciamos nenhum nome feio. Dão-nos uma fechada, e ainda sorrimos para o energúmeno...

É delicioso estarmos apaixonados, embora não sintamos nenhum sabor...

Tudo o que queremos é sonhar..., os sonhos mais ridículos do mundo..., sonhos de quem está apaixonado - pura exibição virtual..., mas para quem?

Desejo sexual? Fica ultrapassado, pois nos reprovamos se tivermos alguma chama erótica num desses sonhos. Nos autotransformamos em hipócritas conoscos mesmos...; a fantasia entrando em choque com a própria fantasia...

É o amor..., estado de espírito debilóide...

Perdemos dinheiro e nem notamos; brigamos com os amigos, e ainda achamos bem feito...; perdemos até o apetite...

Enfeitiçados..?, iludidos..?, pois que nos enganamos por nossa própria conta, criamos expectativas, tudo porque pusemos a vista em tamanha formosura..., ou porque tamanha simpatia apenas nos sorriu...

Mas sonho não é coma, e até mesmo desse, um dia, podemos dele acordar...

Acordamos..., afinal aquele sorriso nem tinha sido para nós, e sim para o infeliz atrás de nós... Infeliz? Num piscar já estamos com raiva!?

Assim é a passagem de um estado para o outro..., do calor ao frio, sem passar pelo morno...

Mas olho de novo para ela...; continua deslumbrante..., cativante..., um doce...

Voltamos a nos iludir...; é a paixão ainda trabalhando...

Seja como for, enquanto dura é formidável...; nos sentimos mais fortes, mais bonitos e inteligentes, nos perfumamos, nos olhamos mais no espelho...

Faz bem a gente se apaixonar de vez em quando; a gente sai da rotina, volta a ser menino, começa a sonhar acordado, faz um monte de coisas erradas...

Faz bem esse negócio de se apaixonar...; a gente volta a se inspirar, descobre que pode...

Todo mundo deveria se apaixonar mais vezes; faz bem à saúde, aumenta o nosso brilho... Prometo: vou me apaixonar todos os meses...

Não consigo deixar de olhar para ela... Cativante..., simplesmente sublime...

Que importa se só eu sinto? Pelo menos, já é meio caminho andado...

Por que todos vocês também não se apaixonam..?

* * *

Confissão

(Paulo Boblitz - ago/2005)


Vou fazer uma confissão: meus textos não são todos meus; devo reparti-los com os autores das músicas com que escrevo ouvindo.

Aqueles são os verdadeiros mestres, pois desabrocham as nossas idéias, nos tocam no coração, nos fazem inspirados, lembrar de palavras bonitas, interligá-las todas sob o suave som, sob o lamento da percussão, sob a verdadeira língua universal, a que todos usam para suavizar, conquistar, pensar, amar e chorar...

Os autores choraram as notas, antes mesmo de tocá-las nos instrumentos, tão macias quanto macios os tons, tão tristes quanto tristes os pensamentos, tão alegres quanto alegres as sensações, tão vibrantes quanto enérgicas as composições, a juntada de tantos instrumentos numa hora só, o ápice do mais alto em solidão, o cúmulo do agudo em agonia, o grave soturno do sério baixo...

Não faço nada sem nada me inspirar; assim não deixo de olhar a natureza, as pessoas a meu redor, os animais em confusão, os pássaros em vôo planado, o pranto do vento pela fresta, o apito do trem que se impõe, a onda que se quebra em espalhar, o trovão que se anuncia no piscar, o vaga-lume que errático, sobressai na escuridão, o medo que me faz homem de pensar...

Não penso nada sozinho, e sou escravo dos meus olhos, dos meus ouvidos, do meu nariz. Provo a brisa fria que cai, sinto o arrepio do vento intrometido que corta o tecido fino, cheiro o mato molhado da manhã em transpiração, e um piano toca em minha fronte, um violino teima em sussurrar, um sax expele o seu lamento, e tudo se confunde no papel, na escrita rápida antes que se vá...

O sino ao longe lembra a Deus, que me lembra de rezar, que atrapalha o meu pensar, mas só renova o meu imaginar, pausa boa do silêncio dos instrumentos, hora de organizar, mais idéias que vão surgindo..., meu Deus perdoe a falta de atenção, a confusão de minha reza, oração e texto em mistura, loucura que só o Senhor entende, doidice que só o Senhor consegue separar...

Sinto no tato a caneta, aço duro a me lembrar, das coisas boas que eu vi ao meu redor, das músicas suaves que sopraram em minha alma, do sopro divino que Deus me sussurrou, das idéias que Deus me fez pensar, do sonho que Deus me fez sonhar...

Não sou nada sem nada à minha volta; não penso em nada sem nada me atingindo; não crio nada sem nada me criando; não faço nada sem Deus me ajudando...

Perdoem o meu agir, pois devo tudo a tudo fora de mim; perdoem a minha autoria, pois tudo já foi criado, já foi pensado antes de mim; é só estender o braço e pegar, abrir os olhos e enxergar, saber ouvir e cheirar, dar crédito ao crédito que Deus nos deu, deixar fluir e anotar, tudo o que é belo e sutil, levantar o véu e olhar, saber olhar para ver, orar para merecer...

Não criamos para as pedras, pois elas não nos dão atenção; não criamos para os animais, pois eles não nos entendem; não olhamos para o chão, pois ele não nos reflete como o céu, pois escrevemos para Deus, quando os Seus filhos nos entendem, Lhe honram no pensar, e criam mais notas que o vento não consegue levar; oramos todos juntos em pensamentos, em reações que nos fazem lembrar, das coisas belas que Deus criou...

Nosso paraíso existe em cada um, segundo o paraíso que cada um possui, segundo a vontade da felicidade, segundo a luz que cada um consegue enxergar, na cor que cada um gosta de ver...

Olho para a Lua e ela é só minha por meus instantes; Deus a dá de graça para quem a quer olhar. Procuro as estrelas e elejo uma para mim, quem sabe se algum dia, nela eu vá morar, meu jardim de luzes construir, a noite escura embelezar, piscar de longe a convidar amigos...

Olho para o Sol e ele me ofusca, me lembra que eu tenho olhos terrenos, olhos para olhar e refletir, as belezas delicadas que Deus nos deu...

Olho para a sombra e nela eu não me vejo, vejo um filho querido de Deus, como vejo meus outros irmãos, encostando-nos na terra sem um tocar...

Olho para o papel e a tinta que tem rumo, verbo em versos a caminhar, em idéias proliferar, a Deus apenas representar e honrar...

* * *

Reflexões sentadas...

Só existem dois momentos inteiramente nossos: quando estamos debaixo do chuveiro, e quando estamos sentados no trono, aguardando o desenrolar do fato(*); tem gente que até aprecia uma boa leitura...

Momentos em que a mente pode trabalhar sem nenhuma responsabilidade, nenhuma pressão... (opa!)

E hoje aprendi mais uma palavra nova: Bostejar..., que não tem nada a ver com bosta, e tem, pois que significa dizer tolices...

(*) Brasil, Nordeste: intestino ou vísceras de animal



Reflexões sentadas...
(Paulo Boblitz - mar/2008)


Eu gosto muito de queijo, mas não abuso, quer dizer, passo algum tempo sem comprá-lo, mas quando compro, vira e mexe, estou com uma fatia nos dedos.

Pois bem..., acabei comendo demais de ontem para hoje, e sentado aqui olhando as mensagens na net, a barriga começou a dar sinais de volteios e corrupios, aumentando a pressão...

Somos, de modo geral, folgados por natureza, pelo menos enquanto podemos. Assim, fui lendo as mensagens e acompanhando de longe as revoluções, até o momento em que a coisa tornou-se séria, exigindo pronta atuação e um largar de outras coisas tornadas secundárias, para atender os reclames de tantos órgãos em desavenças...

Enfim, uma perfeita teoria da relatividade em andamento prático, onde as prioridades se alternam conforme o aperto...

Fui, portanto, ao trono como todos vocês vão, numa natureza normal e sem pressa, pois que não me fiz esperar, a ponto de deixar o fiofó estressado. Lá chegando, acionei a trava tradicional da porta, aliás, um vaso sempre será um vaso, pois mesmo que numa opção para casal (já vi redes, lençóis, camas, banheiras e tantas outras coisas), jamais seriam ocupados pela dupla ao mesmo tempo. Não seria romântico...

De posse das calças já nas mãos, inteiramente relaxado, sentado como quem espera por alguma coisa, o que condiz com a verdade, pois não sou daqueles que sentam para se livrar de alguma coisa, esperei o vir com paciência. Se quiser sair, que saia, mas que saia com as próprias forças...

Com um olhar perdido no horizonte, logo ali na porta à minha frente, aquele olhar que vemos mas não enxergamos, ainda pude sentir que algo se mexia: era a barriga que se preparava para uma resolução um tanto radical, coisas que não adianta nos metermos...

Dei um bocejo e a primeira estrepitante saraivada saiu de rompante... Dei uma piscada enfadado, e logo mais um pouco, saía uma outra, desta feita mais liquefeita, mas entrecortada de bolhas gasosas pelo meio...

Imaginei o spray por alguns instantes, ao mesmo tempo em que inalava os primeiros efeitos... Não era de queijo..., mas caramba!, de algo muito, mas muito fedido..! Cheguei até a olhar em volta para ver se eu estava mesmo só, coisa dos instintos, coisas do ego, que não aceitam certas verdades...

A coisa amainou por instantes, mas é como naquele negócio do olho do ciclone...; de repente, começa de novo...

E foi o que aconteceu, uma nova tempestade com ozônios diferentes, mais enchente escorchante, afinal, o que estaria acontecendo? Onde é que aquela turma queria chegar?, pois que isso é, de certa forma, falta de respeito..., pois que minha parte eu havia cumprido, me sentado, feito o meu papel, aliás já estava com ele nas mãos, mas a coisa parecia abusar, pois cagar é uma coisa, fazer farra é outra..., e estavam os dois numa pirotecnia danada...

Por instantes eu pensei, finalmente acabou..., e até usei do papel..., só para perder o pedaço...

Num espasmo indolor, numa última cartada, mais água rala desceu de fato... Estavam a gozar comigo..., ou quem sabe os dois em medição de forças...

Olhei para o horizonte novamente, aquela linha do olhar, que horizontal nos leva a algum lugar, e esperei paciente que os dois se cansassem, no caso o cu e a barriga...

E enquanto recostava em busca de maior conforto, pensei na vida e em torno dela, das coisas e jogos que participamos, pois que a vida é feita de riscos, um perfeito jogo de escolhas...

E foi assim que imaginei, caso tivesse cinco cus nesses momentos, que eu bem poderia brincar de loteria...

* * *

Analógico ou digital

Pode até haver quem não concorde...,
mas tem muita coisa, que é mais gostoso como antigamente...

Vocês mais jovens é que não conhecem...



Analógico ou digital
(Paulo Boblitz - ago/2005)


Analógico não tem nada a ver com a lógica da Ana, nem digital são os dedos do Tal.

Analogia tem a ver com a lógica sim, pois trata de semelhanças entre coisas diferentes, por exemplo os ponteiros de um relógio, todos eles ponteiros, um anão e parrudo que diz as horas; outro magro e comprido que diz os minutos; outro bem mais magro e também comprido, mas apressadinho, que diz os segundos...

Os três falam da mesma coisa - do tempo...

Digital tem a ver com os dedos, pois temos dez em ambas as mãos, mas engana-se quem acha que digitação é só escrever um texto ou trabalho qualquer no computador.

Digitação é movimento de exercício dos dedos, assim define o meu dicionário, edição de 1963, portanto anterior aos computadores como os conhecemos hoje em dia. Assim, digitamos em um piano também...

Hoje em dia, não digitamos os dedos em exercícios, mas adquirimos a LER (Lesão por Esforço Repetitivo) por tanta digitação.

E é o progresso quem modifica as coisas e os costumes, e as definições também.

Perguntei as horas para o meu filho, e ele, após consulta a alguma coisa de plástico no pulso, informou:

- Dez e cinqüenta e sete...

Olhei para ele e fiquei pensando, não aguardando, o valor exato dos segundos..., mas lembrando daquelas ofertas que terminam em novecentos e noventa e nove, que nos fazem esquecer da milhar inteira.

Então, ponderei:

- Meu filho..! Já são onze horas..!

Ele não entendeu muito bem o que eu quis dizer, pois apenas lera o que no mostrador aparecia: números digitais em cristal líquido. Coisas de japonês.

Quando o tempo era dos suíços, necessitávamos aprender a ver as horas, e brincávamos aprendendo, praticando a tabuada dos cinco...

A tecnologia é sempre o cume do conhecimento, mas é também o seu maior exterminador. Não sabemos mais mexer nas réguas de cálculo, nem consultar tabela de logaritmos; o ábaco ninguém mais sabe o que é, e prova dos noves é coisa de lelé.

Tempo digital deixou de ser vivido, passou a ser acompanhado, e o lemos em seus múltiplos detalhes, até à fração do segundo, o piscar de um olho... - quem sabe a serventia dessa informação?

Tempo analógico é que é o gostoso, daquele que vem redondo, de preferência cheio de rodinhas dentadas no interior, com três ponteiros bem distintos, um anão e dois compridos. Com ele vivemos o tempo, pois somos obrigados ao arredondamento, para mais ou para menos... - quem se importa com exatidão!?

Raciocinamos com frações, com quartos de hora, com metade de hora, com múltiplos de cinco, e determinamos, por analogia, se estamos além ou aquém, se corremos ou deixamos como está, pois com analogia, enxergamos o tempo, temos noção do tempo, vemos ele em movimento circular, imitando nossas vidas, tudo girando sem parar...

* * *