O Corneteiro

Menino não tem razão, mas a razão sempre o persegue...

O encontra um dia crescido, vendo tudo de novo ao vivo...

Quem já foi menino, já de tudo, um dia pensou...

Apanhem suas cornetas, juntem-se à banda aí embaixo...

Não precisam saber tocar...



O Corneteiro
(Paulo Boblitz - nov/2005)


Era um garoto magro, magrinho de dar dó, sem camisa, de calças curtas e frouxas, suspensório penso de um lado só, uma corneta a todo sopro, marchando ao longo do caminho, tocando sabe-se lá o quê...

Marchava em passos firmes, em passos largos, cabeça empinada, peito estufado, os ombros jogando de um lado para o outro, uma banda na cabeça a tocar, que só ele ouvia...

Sofregamente soprava tirando sons agudos, graves, longos e curtos, olhos semicerrados, mensageiro de alguma coisa, a repetir movimentos, a soprar para o mundo ouvir...

Por onde passava, contagiava; outros meninos pulando ou atrás dançando, a fila aumentando, a tribo se unindo...

Logo, panelas e latas se juntaram e o coro aumentou. Um carro que passava, apitando seguiu seu caminho, aprovando no embalo e no ritmo...

Os pássaros revoavam e tornavam a pousar, os bicos abertos em sugestões, por que não iam assustar as próprias vidas!?

Um cachorro apareceu e começou a uivar; recebeu uma botada de algum lugar, e dali saiu correndo, ganindo harmonioso...

Um tambor juntou-se ao grupo, bum-bum-bum agora cadenciando; a meninada ficou mais alegre.

Senhores e Senhoras paravam e observavam, alguns tiravam os chapéus, outros os saudavam com as mãos.

A mulher gorda na varanda começou a rebolar, corpo para um lado, corpo para o outro, cotovelos para cima e para baixo, para frente e para trás...

Qual era mesmo a música? Ninguém sabia, mas todos já a assobiavam, a acompanhavam, e tamborilavam, tá-tá-tá fazia a corneta, pra-lá-lá fazia a latada com as panelas, contagiantes seguindo na calçada, até que cansados, pararam e descansaram no meio-fio.

Por alguns instantes o silêncio se fez ouvido, a onda se acalmou, o vento começou a soprar. As mãos amparam os queixos, os suores pelas frontes escorrem...

Baixinho soava um sax, artista do outro lado da rua tentando alguns trocados, tocando algo suave, grave e triste melódico, entortando-se nas notas mais longas. A garotada quieta só observa, longos anos de sopro em treinamento, boas notas seqüenciadas, gostosas no ouvir, a contar histórias diferentes a cada um...

De novo lá vem aquele carro, que alegre dá o tom, solta a primeira buzinada e passa intermitente, o braço do motorista regendo, os lábios em sorriso produzindo inspiração, continuando até perder-se na distância.

A meninada num salto se levanta e começa frenética a tocar. O sax pára por uns instantes, e após entender o que ouve, começa a acompanhar...

Lá vem a garotada outra vez, a barulhada em profusão; o guarda interrompe o trânsito, abre os braços e jura que não sabe de nada, mas acaba também gingando, diante da banda inusitada, que apenas toca o que cada um quer tocar, sem imaginar, sem seguir nenhum plano, nenhuma ordem ou convenção...

A mulher gorda levanta-se e agora rebola mais forte, passeia de um lado ao outro da varanda, ensaia levantar uma perna pesada, vê que consegue e levanta a outra também, dança leve sem saber por que dançar; lança beijos e sorrisos, parece estar feliz, entra no clima e navega...

O cão de novo late aborrecido, acha o barulho um absurdo, ameaça rosnando avançar..., e lá vem da bota o outro par, pá..!, quase no seu traseiro..., e dali sai correndo; é melhor não se meter...

A passarada voa e pousa no fio mais alto, conversa entre si e torna a voar; o mundo está mesmo perdido...

De novo o silêncio chega e se instala, a banda interrompe seu movimento, todos sentam na grama, sorriem corados pelo esforço, transpiração exuberante, cabelos molhados colados na testa, instrumentos descansando de lado; respiram apressado e no compasso...

A árvore frondosa como teto, a grama verde macia como piso, a sombra de leve os tocando, caminhando para lá e para cá ao sabor dos galhos que se mexem; ninguém fala nada...

De repente um sorriso maroto e todos gargalham, e sorriem sem parar, em gaitadas travessas...; conseguiram a todos mexer, produziram diferente um dia...

Descansados, vêem o carro que buzinava a passar, solitário trombeteando sem razão, tentando encontrar o tom...

Fazem os dedinhos de legal, sorriem e dão um tchau.

Olham para cima, cada passarinho cuidando do próprio ninho; o cão agora calmo em desalinho, dormindo de pernas para o ar; a mulher gorda sentada na varanda, esperando o tempo passar...

O primeiro corre, o segundo o imita, e mais um pouco não tem nenhum...

Amanhã inventarão uma outra coisa...

* * *

Mundo sem cabeças

É! Eu não sei onde estava com a cabeça..., mas enfim saiu e está aí embaixo.

Cabeça é algo que sempre carregamos, e em certos momentos, não a utilizamos.

Como cada cabeça é uma sentença, pensem vocês...



Mundo sem cabeças
(Paulo Boblitz - set/2006)


Viver num mundo sem cabeças, é algo complicado. Outro dia, peguei a minha cabeça, coloquei debaixo do braço, e saí andando descompromissado pela minha folga. Enquanto andava, o mundo cada vez mais se distanciava, e descobri que havia me colocado olhando para trás.

Algumas vezes, forçado pela pressa, acabo me posicionando com a cabeça para baixo.

Além de complicado, há também um inconveniente: ficamos sempre com um dos braços ocupado.

Por vezes, encontramos com algum amigo pelo caminho, trocamos cumprimentos com o apertar de mãos e, conforme a posição das cabeças, sorrimos ou não, ou precisamos nos virar de costas para um cumprimento mais formal, tipo olho no olho, ou até mesmo trocar a cabeça de braço, se não, podemos acabar trombando com elas.

De certa forma é um sistema embaraçado, esse negócio de andar com a cabeça fora do pescoço, pois algumas vezes a gravata acaba voando com o vento. Outras vezes, algum engraçadinho a traz escondida nas costas, dentro de uma mochila, e fica parecendo com o verdadeiro homem sem cabeça, mantendo pois, ambos os braços desocupados.

Exibicionistas..., ficam andando para cima e para baixo de bicicleta...

Quando toca o telefone celular, estando o aparelho no bolso das calças ou preso na cintura, dependendo de qual braço segura a cabeça, necessitamos nos contorcer para pegá-lo e levá-lo até a orelha. Um dia o meu tocou e logo atendi:

- Alô!?

- Crouxs-squi, ixquie..., shlesp glock...

Logo matei a charada e vi que só podia ser o meu amigo Lelé. Devia estar chupando o celular de novo, quando com algum dente apertou aquela tecla "call", que completa as ligações...

Sorri lembrando que Lelé é meio maluco... Ele ficou assim quando treinava para ser jogador de basquete. Num lance mais afoito e disputado, acabou por jogar a própria cabeça na cesta, ao invés da bola. Ele fez a cesta de três pontos, e o adversário, com raiva do drible, deixou que ela caísse no chão, de propósito.

Às vezes eu tento inovar, colocando a cabeça sobre os ombros, mas ela sempre ameaça cair.

Outro dia eu precisei fazer alguma coisa no meio do caminho, dessas coisas que fazemos utilizando os dois braços, e tive que pedir auxílio a um amigo para que a segurasse um pouco. Ele segurou, mas desligado como sempre, acabou levando a minha cabeça embora. Foram momentos de muita aflição, e de gozação também, pois não foram poucos a me lançarem críticas e conselhos.

Perder a cabeça?, nunca mais... Agora eu só ando com ela amarrada, como andavam aqueles relógios antigos de algibeira.

De vez em quando, ao acordar, pego a cabeça da esposa por engano e só descubro quando me olho no espelho. Como sempre acordo primeiro, ela normalmente costuma não notar; aí eu vou lá na cama bem devagar e destroco.

Nesse nosso mundo em que não existem forcas e guilhotinas, carregar embrulhos é um suplício, e aquela moda da gola rolê nunca pegou...

Aqui, dizer que cabeças vão rolar, é tabu. Confusão é quando um ônibus lotado arranca ou breca de repente. Martelar um prego na parede, é complicadíssimo sem ajuda.

Se um mundo sem cabeças já é difícil imaginar, acabar essa história então..., só escrevendo FIM.

* * *

Associação das Bolas

Por trás de cada bola, ou tem uma criança, ou tem um adulto...

O mundo inteiro é cheio de bolas, e gostamos de todas elas...

Adoramos quando as mulheres nos dão bola, e Brasília vive mexendo com elas, em todos os escalões...

Associação das Bolas é mais uma delas, das tantas que existem para cuidar dos interesses...



Associação das Bolas
(Paulo Boblitz – mar/2008)


- Pôu..!, pôu..!, pôu..!, pôu!, pôu! – soavam as graves e compassadas marteladas no tampo da mesa do presidente.

- Silêêêncioooo..! – gritava já impaciente o presidente – Ordem!!!

- Magote de desajustados... – falou baixinho o presidente, demonstrando que faltava pouco para encerrar de vez aquela sessão.

- Pôu..!, pôu..!, .........., calem a boca! – martelou e gritou bem alto no microfone, terminando com um nome feio bem cabeludo, que ninguém ouviu.

Mais um instante, o silêncio por fim se fez ouvir, com todos quietos sem brigar, atentos à mesa diretora. O presidente então continuou...

- Isso é preconceito! A Bola Oval é americana e..., diferente um pouco de todos nós, eu também concordo..., mas temos de ouvi-la segundo a nossa democracia..! Com a palavra de novo..!, a... Bola Oval! - determinou o presidente, prendendo um sorriso que já começava a se insinuar.

A Bola Oval, delicada como era com aqueles lacinhos laterais, piscou três vezes, limpou a garganta, deu um sorriso meio amarelo, juntou as duas mãozinhas, dobrou sintomaticamente um dos joelhos, e com a voz gasguita reiniciou o discurso:

- Não suportááámos mais levar tantos chutes...; e aqueles môôônstros devem nos pegar usando luvas... Era o que eu tiiinha de dizer..., hi, hi, hi... – afastou-se sorrindo nervosa, enquanto o burburinho recomeçava.

- Pôu..!, pôu..!, pôu..! – bateu com autoridade o presidente, antes que a sessão tumultuasse novamente...

- O próximo! – gritou com a cara bem feia.

Chegou a Bola de Gude que, pequenina, não alcançava o microfone. Enquanto pulava, a platéia mangava, até que a Bola de Gude cansou e voltando-se para o presidente, abriu os braços em desalento.

O presidente, uma Bola de Futebol de Salão meio gasta pela velhice de tantos jogos, deu mais duas marteladas sobre a mesa, olhando cerrado para aquela cambada de bolas debochadas, exigindo educação. Ele era respeitado, pois que era bastante pesado e musculoso, e tinha também muita experiência.

Ele fez sinal para o secretário, um último modelo da Bola da Copa do Mundo, que saiu correndo ágil com sua juventude, e voltou do mesmo jeito com uma banqueta para que a Bola de Gude alcançasse o microfone.

A Bola de Gude agradeceu, pois era simpática e educada, e num pulo só alcançou o objetivo. Com um olhar sério e respeitoso, deu boa noite para todos e começou:

- Senhor presidente..., Senhoooras e Senhores... Somos uma classe humilde, sem pretensões outras como as dos senhores, como a de subir em pódios, receber faixas, louros e troféus. Nós apenas cuidamos da alegria da meninada, que adora nos ficar trocando, que nos guarda carinhosamente em saquinhos de pano..., que chegam a nos colecionar de um ano para o outro...

A platéia logo reconheceu a sabedoria naquelas palavras simples, e silenciosa aguardou o orador se organizar.

- São duas as nossas reclamações..., bem curtas para não tomar o precioso tempo dos senhores...; uma, que cremos não haver muita solução, e outra, que temos certeza estar a correção em nossas mãos...

A platéia começou um murmurinho, perguntando-se o quê poderiam ser duas questões tão antagônicas: uma já resolvida, e a outra por resolver?

A Bola de Gude continuou:

- Como todas sabemos, os videogames e computadores estão cada vez mais difundidos, e a cada dia que passa tornam-se mais baratos. Aliado a esse problema, estão as ruas e calçadas cada vez mais pavimentadas. Nossa existência está se resumindo à periferia e ao interior. Estamos em verdadeiro processo de extinção... – concluiu com certa dramaticidade.

Ouviu-se um vozerio surdo na platéia. Enfim alguém chegava com um assunto sério e importante para ser debatido...

- Pôu..!, pôu..!, pôu..! – martelou o presidente – conclua... – falou voltando-se para a Bola de Gude.

- O que vimos solicitar, é que sejam criadas áreas específicas nas praças públicas para o desenvolvimento de nossas brincadeiras, e que, se criadas, não se permita que sejam depósitos de cocô de cachorro. Isso nos suja e transmite doenças para a criançada.

A platéia riu em alvoroço, mas o assunto era sério, e logo foi interrompida pelos sons graves das marteladas do presidente, que mais uma vez a repreendeu com um pedido de silêncio.

- O assunto será analisado e debatido com muito carinho, por tratar-se de questionamento justo e legal, e de alto interesse para o desenvolvimento de práticas saudáveis de comercialização e socialização entre a garotada. É com vocês que a meninada aprende a ganhar e a perder, arriscando-se, desenvolvendo estilo próprio, bem como competência peculiar para lograr sucesso na vida pessoal – concluiu o presidente.

Não era à toa que aquele presidente já estava em seu oitavo mandato consecutivo, pois o que não lhe faltava, era sabedoria e inteligência, além da própria presença atarracada e musculosa, condição adquirida nas quadras de cimento com laterais de alvenaria, onde ela não cansava de correr e se bater, de ser chutada para todos os lados o tempo inteiro, diferente da Bola de Futebol de Campo que gostava de fazer cera o tempo inteiro.

A associação começara tempos atrás sob a presidência de uma Bola de Basquete. Acreditava-se que, por ser a maior, ela conduziria os trabalhos de forma competente. A pobre coitada até tentou, mas de tanto quicar no chão da quadra e de ser arremessada na tabela, acabou por desenvolver uma gagueira intempestiva.

A Bola de Vôlei também tentou, mas esta sofria de problemas de posicionamento. Não conseguia ficar muito tempo num lado só, a não ser quando dos pedidos de tempo pelos técnicos. Havia ainda aquela rede alta que, numa aproximação, sofria pancadas de um tal corte, e outras tantas de recepções pelos bloqueios. Ela vivia esperando em sobressalto pelas redes. Era ruim da bola...

Assim, várias tentativas foram sendo feitas, e a que logrou alguma liderança de fato, com os pés literalmente fincados no chão, foi a Bola de Futebol de Salão.

A Bola de Futebol de Campo gostava de muitos holofotes, muita televisão, e por isso acabou sendo dominada por muitos cartolas. Acabou comendo bola... Por isso ela não conseguia transmitir confiança, embora fosse a mais difundida de todas as bolas. Uma coisa é fazer sucesso lá fora; outra coisa é presidir uma associação...

A Bola de Boliche uma vez chegou a se candidatar, mas não foi eleita. Esquisita, pesada e dura, com três buracos num lado só, tinha uma obsessão por ficar derrubando coisas. Logo foi rotulada como desacertada da bola e pouco comparecia às sessões.

A Bola de Tênis era tão sofisticada que chegou a cogitar não ser necessária a sua inscrição. Foi convencida pela Bola de Frescobol, que alegre e faceira, bronzeada e brincalhona de tantos fins de semana, sem muito alarde a alertou: "ninguém sabe do dia de amanhã..."

A bola de Bilhar era soturna, muito noturna, e gostava de ambientes fechados, com pouca iluminação e alguma bebida, não agradando a todos. Por outro lado, havia uma hierarquia entre elas, e elas próprias não se entendiam, produzindo sinucas...

A Bola de Golfe era muito nobre e esnobe, embora todos a quisessem no buraco. Não teve jeito em ser convencida e ainda está por associar-se. Ela exige um "caddie" para onde for, e "caddies" são para os tacos, uma outra associação que congrega tacos, bastões, pinos, cabos, bumerangues e assemelhados...

A Bola de Pingue-Pongue ninguém entendia quando falava com aquele sotaque asiático, e vivia às turras com as Bolas de Tênis e de Vôlei, acabando por ficar desacreditada.

As Bolas de Beisebol, Críquete e de Pólo, ninguém conhecia bem; nunca ninguém lhes deu bola.

A Bola de Futebol Americano, na verdade de "Rúgbi", era diferente, era oval e não se achava muito uma bola. Possuía muitas futilidades e era considerada por todas as outras bolas, como sem rumo certo, e por qualquer motivo também explodia em ataques e chiliques. Talvez fosse pela convivência com aqueles que a jogavam, sempre com muita violência, inclusive contra aqueles que nem detinham a sua posse: uma turma que usava
capacetes e diversos protetores e acolchoados. Era uma bola que se destinava às descargas de adrenalina e anabolizantes.

- Pôu..!, pôu..!, pôu..! – ouviram-se as marteladas do presidente retomando a sessão. Voltando-se para a Bola de Gude, em tom sereno perguntou:

- Qual a segunda questão???

A Bola de Gude pigarreou limpando a garganta, ganhando tempo e inspiração, iniciou:

- Estamos aqui hoje, para tentarmos pôr um fim numa prática muito antiga..., de colegas nossas...

O zunzum aumentou, assim como a curiosidade de todas as bolas. Logo fizeram silêncio, antevendo alguma bomba no ar.

A Bola de Gude continuou:

- Estamos sendo extintas pelo progresso..., e naqueles recantos onde a criançada se reúne para conosco brincar, nossas próprias colegas associadas, nossas colegas de classe, truculentas, intrometem-se e acabam com a brincadeira...

O vozerio aumentou na proporção direta da indignação, e logo todas queriam saber que colegas eram estas?, quem seriam as truculentas?, quem estaria a solapar tão unida e festiva coleção de bolas que há séculos preocupava-se apenas em tornar o homem mais alegre e festivo, passando pelas bolas coloridas de mascar, terminando nas delicadas e requintadas que enfeitam as árvores de natal.

O presidente interveio rápido:

- Continue, continue...

A bola de Gude tomou fôlego, e apontando exclamou:

- São elas..!, são as Bilas de Aço que nos destroçam as cabeças; são elas que nos arrancam lascas, que nos partem ao meio, que nos abreviam a vida entristecendo a todas as crianças que nos perdem. Nós somos feitas de vidro, coloridas, translúcidas ou opacas, e as bilas de aço não foram construídas para nenhuma brincadeira...

Todos olharam para a Bila de Aço que, corpulenta e massuda, inflou ainda mais o tórax em tom de desafio. Lembrando bem, ninguém sabia ao certo por que tais bilas foram associadas, uma vez que se destinavam a rolamentos para elementos de máquinas. Eram esféricas sim..., mas não chegavam a ser bolas, afinal bola que era bola, tinha que ter alma de bola. As bilas eram compactas e com camada externa de liga especial. Por outro lado, depois de algum tempo sem utilização, elas oxidavam, deixando um pó que a tudo sujava.

Imediatamente, todas as bolas questionaram a dura Bila de Aço, que foi convidada a se explicar. A Bola de Gude cedeu lugar entregando o microfone, e a Bila de Aço começou:

- Nós somos acostumadas à força bruta, a trabalhos em alta rotação, longas jornadas circulando, e quando somos transformadas em bilas para a meninada, já estamos gastas e velhas. Nós não sabíamos que fazíamos tanto mal. Achávamos que tudo era natural, e quando trombávamos nas nossas amigas, endurecíamos como fazíamos quando estávamos no trabalho antigo. Prometemos que de hoje em diante, não endureceremos mais na hora do choque. Propomos, nós e as Bolas de Gude, alertar a garotada para que não apliquem muita força em todas nós.

Todas as bolas bateram palmas por longo tempo. Há muito não se via um assunto delicado, ser tão bem resolvido em tão pouco tempo. A Bila de Aço foi recebida com muitos abraços, e muitas antipatias foram desfeitas naquele momento.

O presidente encerrou a sessão, e todas saíram rolando felizes para as suas casas.

Naquela noite, a Bila de Aço passou a ter uma alma; transformou-se numa Bola de Gude de Aço, e daquele tempo em diante foram sempre polidas e mostradas brilhantes pela meninada orgulhosa.

A próxima reunião já está agendada, e mais uma vez a oval Bola de Futebol Americano estará em pauta. Dessa vez ela não levará nenhuma reclamação; ela prometeu apenas cantar...

* * *

Concentração

Não cheguei a me concentrar para escrever Concentração, pois o espírito estava zombeteiro...

Nos concentramos às vezes, apenas para desconcentrarmos no que fazemos, ou, executamos tudo aquilo que gostamos, sem lembrar que estamos concentrados...

É uma palavra intrigante, que por si só, concentra significados...


Concentração
(Paulo Boblitz - ago/2005)


Esta é uma palavra constantemente desafiada, pois para quem quer concentração, tudo só atrapalha...

Podemos fazer uma porção de coisas no embalar da mecânica, no ato rotineiro sem pensar, conversando, ouvindo música e fazendo. Precisou concentrar, é desconcertante...

Falou em concentração para o espírito, ele mesmo já começa a se irritar, e a ouvir sons que nem ele imaginava que existissem...

Falou em concentração, tudo conspira para quebrá-la, a começar pela rebeldia que a quer dispersar. Nós não fomos feitos para uma vida em concentração, daí a nossa falta de atenção na grande maioria das execuções.

Quando finalmente conseguimos nos concentrar, aparece uma mosca ou um mosquito a nos apitar. Quando nos livramos do inseto voador, vem um espirro avassalador; depois das fungadas, o nariz começa a escorrer; depois da coriza, o telefone toca e precisamos atender; depois que descobrimos que ligaram por engano, olhamos a hora e precisamos correr...

Concentrar é difícil, principalmente na cidade sempre cheia de carros, buzinas e muitos outros sons.

Concentração é exclusivista; não admite nenhuma concorrência, pois nasce da presunção da necessidade de uma extrema atenção ao que se pretende fazer, e se ouvimos um pássaro gorjear, embora lindo seja o seu cantar, não estamos concentrados..., não estamos do jeito que nos propusemos ficar...

Somos desconcentrados pela própria concentração, pois o mundo não pára de girar, nem quer saber se alguém está concentrado.

Talvez seja por isso que a melhor concentração, seja a contemplação, a mente posta a trabalhar induzida pela visão, pela oração do bem estar, sem nada a preocupar...

Concentrar é pré-estabelecer que uma coisa difícil precisa ser feita... Concentrar é pré-estabelecer que uma coisa fácil necessita de muita atenção... Cada visão tem uma concentração diferente, e concentração acaba virando castigo, pois concentrar, talvez seja a hora errada de fazer...

Concentração significa tudo voltado para o centro, e centro sempre é a parte de dentro, e dentro sempre é mais difícil de alcançar...

Esforços são concentrados; pessoas são concentradas; mutirão é uma concentração; conspiração também; o leite pode ser concentrado; a solução também, tanto que o concentrado vira precipitado.

Assuntos sofrem concentração, e objetivos a exigem; especulação é concentração ao contrário, assim como a generalização, e especialização é o tiro certeiro, entendimento de uma só coisa, concentrada...

Armar ou desarmar uma bomba, exigem extrema concentração, mas somente o desfazer fica em desvantagem, pois podemos ir juntos na explosão, talvez a única coisa difícil na vida no desmanchar, pois para se construir, necessita-se de muitos recursos; para destruir, todo mundo ajuda...

Vida nenhuma gosta de concentração, mental ou física, passageira ou por muito tempo, pois concentração é acuidade e estreitamento da visão, do comportamento, da musculatura, da mentalização, da movimentação, da locomoção. Concentração é a própria tensão, e tesão é o desejo concentrado...

Nada nesse mundo nasceu para ser estático. Por isso, as árvores e outros vegetais se utilizam da dinâmica dos pássaros e ventos, andando por aí, semeando-se sem concentração em densidade, na mais perfeita falta de uniformidade. As pedras também rolam, tornam-se redondas pelo mover, perdem a concentração...

Por mais concentrado que se seja, o universo é sempre maior e menos concentrado... Só Deus concentra tudo.

* * *

O assento de minha privada

Quanto mais fazemos, mais coisas aparecem para tratarmos.

Mais problemas necessitam ser resolvidos.

Menos tempo acabamos tendo, para mais coisas inventarmos de novo.

Mas é assim o dia, que de cansaço em cansaço, nos produz alegrias.

Bons sonos existem para os bons sonhos criarem, novas idéias do produzir...

E tudo é uma questão de oportunidades...

E Trilhas com poesia não é um Diário.



O assento de minha privada
(Paulo Boblitz - mai/2009)


Quando eu era menino, ele era de madeira. Por isso, quando entrávamos no banheiro, mamãe logo gritava:

- Levanta a tábua! Levanta a tábua!

Cabe aqui um esclarecimento: nós homens temos o que comumente chamam de pinto, e ele, resguardado que é, quando se depara com aquela boca do vaso escancarada para ele, parece ficar desconcertado. É a única explicação prática para tantas mijadas fora do vaso...

Hoje são todas feitas de plástico, acolchoadas, pois não deixa de ser um momento de confortável relaxamento.

Há pelo menos umas duas semanas, eu vinha sendo beliscado pela emenda que ela traz, como se um equador, separando a parte de baixo da parte de cima, onde sentamos. Esse é o defeito de todas elas, romper aquela emenda.

Acontece que temos nossas prioridades, e o novo assento do vaso foi ficando, hora esquecido, hora impossível de ser procurado...

Cada beliscão significava uma lembrança para comprá-lo, e já estava produzindo irritação, na cabeça e no lugar beliscado...

Ontem, finalmente o comprei, não que eu tivesse ido na loja para fazê-lo, mas lá chegando atrás de uma ferramenta, verifiquei que ele e todos os irmãos dele estavam me olhando com aqueles olhos arregalados que todos eles têm.

Tinha o mais caro, tinha o mais barato, mas acabei comprando o mediano... Cheguei em casa, livrei-me da tralha e fui logo instalá-lo, descobrindo que os joelhos já não são mais meus bons amigos. A posição é difícil, pois as porcas que o firme seguram, ficam devidamente embutidas, mas nada assim tão difícil, e como num passe de mágica, tra-lá-lá!, olha eu já nele sentado, experimentando o acolchoado, ouvindo aquele ventinho "fuuuuuu", escapando por uns furinhos escondidos.

A esposa estava no computador da nossa filha, e carinhosamente a ela dei a boa notícia:

- Mulher!, comprei uma tampa nova... - e fui desvencilhar-me de minhas roupas para um bom banho, quem sabe até uma inauguração, mas já sabendo que a esposa é quem iria inaugurá-lo, pois mulheres, para tudo o que fazem, necessitam sentar...

Tomei o banho e fui para a cozinha, matar a quem me matava, e quando eu estava com a faca e o queijo, já feliz mordiscando, a esposa apareceu reclamando:

- Mas ela é branca!

Levantei e fomos juntos verificar, interrompendo aquele lácteo prazer.

- Mulher!, o vaso não é tão marrom assim, né?

Diante daquele olhar incompreensível, ainda ponderei:

- Olhe para a porta... Olhe para o teto... Também são brancos! Estão a combinar!

Ela fez que não com a cabeça, girou o dedo indicador na orelha, virou-se e foi embora. Não sei por quê, mas acho que ela não gostou..., mas também ela é sempre do contra; não seria a primeira vez...

De madrugada, levantei para aliviar a bexiga e, antes mesmo de acender a luz, verifiquei aquela coisa branca me encarando... Pelo menos um ponto positivo eu já havia encontrado: fácil localização no escuro, como se fosse uma sinalização para ninguém perder o vaso...

Enquanto ia me desfazendo, ia também pensando: "em noites de Lua cheia, teremos que dormir com a porta do banheiro fechada..."

* * *

Apertando o passo...


Bicicletas, brincadeiras, amizades..., nada disso tem idade...

Nem tampouco a imaginação, ou o jogo sujo, a depender da aposta...

O importante é sorrir, é troçar, é divertir se divertindo...




Apertando o passo...
(Paulo Boblitz - mai/2009)


- Vamos, minha filha... Não dá para ir mais ligeiro?

- Olha só!, todo mundo nos deixando para trás...

- Também!, pesada como um trambolho!; até parece um cambão!

- Créec, créec... - ela respondeu...

Ainda pude ver o último capacete, desaparecendo após a subida suave... Eu teria que adotar alguma estratégia...

Fiz força, bufei, ela gemeu mais um pouco, e fomos galgando juntos, aqueles tantos metros que nos separavam da gandaia...

Enquanto subia, imaginava os faroleiros já desembestados em franca descida, distanciando-se mais ainda de mim, com tantas tecnologias de ponta sobre duas rodas...

- Créec, créec, to-troc...; créec, créec, to-troc... - coitadinha, ia resfolegando pior do que eu...

Finalmente, o alto conquistamos... Agora era só deixar na banguela... Freios!?, pra quê?, se a danada já não andava..!

E sentindo o pouco peso, apertei os lábios e empurrei ver...; eu os apanharia agora, pois deviam estar a julgar-me ainda subindo...

E o vento foi aumentando, a velocidade crescendo, a descida maior do que a subida, pois estávamos indo em direção ao mar..., logo ali na minha frente, estendendo-se manso de longe, azul belíssimo com bigodes brancos...

E quando eu já estava enfogado, sentindo o sabor da surpresa, gritos de uma sombra surgiram, malandros descansando, bebendo água enquanto eu bufava!!!

- Com essa, ninguém te pega..! - gritou um descansado...

- É de última geração!, fibra de carbono! - e caíram todos na risada...

Mandei-lhes um cotoco bem dado, sorri esperto e mais apertei, e rezei para que a vermelhinha não desacorrentasse, agüentasse firme a ladeira, e chispei dali o mais rápido que pude...

- Cré-cré-cré-cré-cré-cré... - fazia a coitadinha entrevada..., e para rimar, abri levemente a boca e numa nota só, na trepidação das cordas vocais, fui cantando: bra-la-la-le-le-i-i-la-la-e-e-e-a-a-a-a a r r r ...

Quem nos visse passando daquele jeito, bem pensaria: dois malucos descendo em carreira, um em cima da outra...

Quando os folgados entenderam o que eu fazia, estabeleceu-se um corre-corre, com as mochilas, garrafas de água e retomadas de bicicletas, e até que saíssem daquela areia frouxa, eu já estaria bem longe..., bem longe quase chegando, enquanto o magote em carreira apupando, aquilo que já não tinha mais jeito..., aquela areia na minha frente branquinha, fofinha aguardando...

Era só apertar de leve o freio, escutar as tamancas gritando, e parar fosse onde fosse, mas de bom jeito...

Apeei-me e os aguardei, um a um chegando, nenhum com o sorriso igual ao meu...

Na volta, antes vou ter que esvaziar os pneus de todos eles...

* * *

Por trás da janela...

Janelas separam ambientes; janelas possibilitam, abrem perspectivas...

Nem sempre as janelas são transparentes, pois depende de nós a sua clareza...

Por trás da janela..., estamos todos, em algum momento..., porque foram criadas para entrada de luz...

Por favor, minha janela é de vocês
...



Por trás da janela...
(Paulo Boblitz - mai/2009)


Janelas encerram significados...; janelas separam, fecham e abrem...

Lá fora um outro tempo, longe de nós aqui no amparo; a luz nos traz as notícias, ou nos mostra o passado...

Agora mesmo está chovendo, cristais caindo uniformes em gotas de vida, de um céu cinzento e carregado, vapores que um dia subiram, pelas janelas entre o céu e a terra...

Esteja eu sentado em minha carlinga, ou em minha poltrona favorita, ou até diante do meu monitor, lá fora tem sempre uma história, diferente das daqui de dentro...

Olho o tempo e a natureza está recolhida, dia chuvoso tudo molhado, frio de leve, enfim todo mundo protegido... É outono, época do acasalamento...

Olho a foto e o sol é brilhante, marcas de antigos pousos riscados, no chão duro e protetor, detentor dos tantos grilhões, ali sempre como realidade...

Lembro do amigo que sonha, do monoplano que busca, ultraleve qual planador a sair por aí velejando, buscando ares que sobem, chegando às nuvens que o envolvem, misturando os próprios ares, como se cortinas estivessem sendo fechadas, de uma janela sempre brilhante...

No meu super pesado, os motores roncam enquanto a janela vai abrindo...; iniciamos a carreira e uma outra janela nos separa, dos ventos raivosos e do barulho incessante...

É o casulo que abriga, do lado de dentro a calmaria, do lado de fora o que agride...

Decolamos..., e pela janela avistamos nossos irmãos, uns maiores, outros menores, e alguns iguais, formando aquela família metálica, de vários fins e cores, reluzentes e potentes desbravadores dos céus, como Ícaros desgarrados em busca de liberdade, em missões diversas a transportar, corações que não pulsam diferentes...

As janelas nos mostram reflexos, de nós mesmos em acordo com a física, de nós mesmos em acordo com nossas mentes, que pensam e refletem independentes, enquanto nossos olhos miram e não vêem nada...

São as janelas da alma..., que podem se abrir a céus de tranqüilidade, que podem mostrar tempestades efervescentes...

Voar é seguir por uma janela, enveredar por outras, descobrir mais algumas pelo caminho, verificar aquelas intransponíveis, para cima o carvão do espaço, para baixo o calor de quem nos espera, aquele chão que nos retorna, que diz que somos homens de novo...

Janelas existem muitas, todas elas mostrando algo, ou apenas de lado, quando queremos ver apenas o que nos interessa...

Passageiros! Escolham suas poltronas...

* * *

Profissão Mãe

Esse é o título da minha homenagem a todas elas, criado em agosto/2005, tão atual quanto era naquele tempo.

E existem mães que fazem até mais do que isso tudo...

Para todas vocês mães, para todos vocês filhos delas, meus parabéns...



Profissão Mãe
(Paulo Boblitz - ago/5)


- Profissão!? - perguntou seca e altiva a vendedora.

- Mãe... - respondeu humildemente a mulher.

- Mãe!? Mas mãe não é nome de profissão!

- Então coloca aí que eu sou Esposa...

- Esposa também não é profissão... - falou a vendedora já parecendo irritada.

- Mas eu não trabalho! - justificou a mulher.

- Então o correto é... Prendas do Lar... - ensinou a vendedora, traçando um movimento de bênção com o braço no ar, já se sentindo superior.

- Prendas do Lar?

- É!!! Dona de Casa..!

- Dona de Casa!? - e continuou - A Senhora sabe o que são prendas? Sabe o que é ser dona?

Diante do silêncio desconcertado da vendedora, a mulher deixou rolar:

Três crianças preguiçosas para vestir, uma no berço querendo mamar, o marido no banho querendo café, toalha e uma cueca...; mais um pouco um beliscão na bunda com o maridão saindo para o trabalho, as três crianças preguiçosas sendo deixadas na escola, não sem antes o choro disso ou choro daquilo, uma de quatro no chão atrás da porcaria do tênis de um deles, o bebê chorando agora porque está com cocô na fralda...

Quando me livro das três pestinhas, mais sujeira de fraldas no tanque, uma pia cheia de louças, uma casa para varrer e espanar, comida para comprar, comida para fazer...

Mais um pouco, pegar os meninos na escola, voltar para arrumar a mesa, mais um beliscão na bunda quando o maridão sai de novo, mais louça suja na pia para lavar, fogão para limpar...

Deveres de casa para ensinar, roupa suja para lavar, roupa lavada para engomar, merenda para os meninos, o jantar para preparar...

O dia inteiro trocando fraldas, dando mamadeiras e colinho...

Minha novela é a única coisa que consigo ver sossegada, e isso se o neném não chorar...

Aqueles dois beliscões lá atrás, você já sabe no que vai dar, não sabe..?

No meio da noite, mais choros e mais fraldas...

É a vida acontecendo, minha filha, cada um fazendo a sua parte, mas no final, a nossa é a mais pesada. E você chama isso de Prendas?, de Dona? Seria verdade se eu ganhasse para isso, mas não ganho nada...


E com o semblante mais suave, continuou, amolecendo:


Posso até perder, por não ter tempo de me cuidar, de continuar bonita e simpática...

Por outro lado..., não conseguiria viver sem fazer isso tudo, sem ver os sorrisos dos quatro preguiçosos, sem apartar as brigas dos três traquinando, sem levar os beliscões que não chegam a doer..., sem vê-los todos em sono, tranqüilos, sabendo que sou eu quem cuida de todos eles.


Quando eles adoecem, só procuram a mim, e é o peso da minha mão quem faz o carinho tão gostoso; é o meu sussurro que alimenta a alma de cada um; são as minhas histórias que os fazem sonhar; é o meu trato sensual que deixa o maridão doidão...

Ou bota Mãe aí nesse negócio, ou não compro essa porcaria de máquina de lavar!

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