Pelas terras, pelo Iguaçu, do Paraná... (dia 12)


Há o tempo do cedo,

o tempo do tarde...

Há o tempo do sorriso,

e o do alívio...

Revezam-se em humores,

os transformamos em amores,

porque o tempo do Tempo, fala mais alto...

Com o Tempo, não se brinca...
(Paulo R. Boblitz - 18/fev/2015)

Amanhecera bonito, sequinho, a temperatura bem gostosa, que de nada adiantaria, porque nos aqueceríamos, por três quilômetros à frente, subindo cerca de 70 metros; depois seria descer tudo de novo, para nos aquecermos outra vez...



Estávamos na Quarta-Feira de Cinzas, dia que nos lembra a efemeridade da vida, o quanto o Tempo é senhor de tudo e de todos, nos fazendo viver, para depois vivermos mais intensamente, se assim determinou a nossa vida...


Começamos o dia com certa moleza, porque o cansaço vai se somando, cada dia um pouquinho, cada dia um pedacinho de preguiça, que se nos instala sorrateira... 
Começamos o dia limpinhos e cheirosos, num pedal lento e sem pressa, o corpo conversando entre si, juntas e músculos, barriga soltando comentários, quando necessitamos levantar do selim, democraticamente...


Minha cabeça vai até Sofia, analisando-a, escutando-a em seus segredos, sentindo-lhe a pressão dos pneus, ouvindo seus estalos, seus rangidos, também preguiçosa espreguiçando-se...


Seguimos assim, meio carinhosos, meio preguiçosos, meio solitários, meio saudosos, aquecendo, suando, já escrevendo na mente, tudo aquilo que será esquecido...

As imagens vão se achegando, nos flertando para outros amores; a transição vai se estabelecendo...

O que eu quero dizer é que um pavio é aceso no momento em que iniciamos o nosso dia, sem tamanho certo ou calculado, a depender do terreno e de outros muitos fatores, mas é certo que em dado momento, a explosão irrompe, sem barulhos, sem avisos, sem satisfações...


A energia pulsa, o bem estar se eleva, os níveis d'alma sobem, a força conquista bruta, o desejo de se lançar, e socamos a bota com mais afinco, sem raiva, com certa emoção, e comungamos em movimentos de equilíbrio, eu e Sofia, um ajudando o outro, cada um se libertando, se drogando na saúde da satisfação, que dura enquanto a química interna não se satisfaz; somos um punhado de faíscas que se lançam em vapores, mais forte, e mais forte, e mais forte, até que a razão chega e se impõe sobre nós...


O dia hoje seria pesado, já posso lhes adiantar, 87,7 quilômetros de muitas subidas e muitas chuvas, uma delas um verdadeiro temporal, o cinza brincando de pega-pega com o azul... Hoje deixaríamos pelos asfaltos, 4.500 calorias, subindo 1.515 metros, em 10 horas e 32 minutos de selim que se transforma em pau, quando a trama do tecido da cueca, desenha-se na bunda, nessas alturas, o lugar mais importante do nosso corpo. O coração foi bem: média de 118 bpm, pico de 153 bpm, e em algum lugar das tantas descidas boas, deixamo-nos levar até os 63,7 km/hora; coisas de momentos...

Nesse dia também fui agredido...

Subíamos eu e Sofia, devagar como sempre subimos, eu gastando meu feijão com arroz, ela gastando a paciência dela, quando passou um caminhão, daqueles enormes, com dois, quem sabe três andares, carregado de porcos, rebocando todos os ventos da estrada. Foi uma porrada de fedor...

Não doeu nada, não me machucou, mas sequestrou meu oxigênio; tivemos que parar...

Sofia fazia careta, e desandei a rir, talvez pela ação dos gases, que juro, durou alguns minutos, como se o rastro, oleoso, tivesse grudado no asfalto.


Quando subimos, produzimos nosso próprio microclima, umidade e calor nos rodopiando, subindo em espiral...

Tenho uma conduta que gosto, uma mania que respeito, um desejo que sempre satisfaço: se der vontade de escrever, pare e escreva; não deixe para depois, mas naquela hora, que me perdoem, haveria de ser uma exceção, porque o mundo inteiro fedia...

Carregue sempre um caderno de anotações; você nunca sabe quando irá virar poeta...



Por isso eu gosto de dizer: cada subida é mais um aprendizado; naquele momento, mais uma lição...


Falando em aprendizados, nossas experiências é que ficam bem guardadas; as fotos, a gente vê depois, e de quando em vez, sempre que der vontade. Lembro que bem no início desse dia, passou por nós um veículo da Polícia Rodoviária, que piscou os faróis em cumprimento, e buzinou. Aqui, a Teoria da Relatividade, é aplicada: velocidades diferentes, e em sentidos opostos, produzem reações diferentes; quando me dei conta, já tinham passado, e ergui meu braço esquerdo em câmera lenta.

Pedalar em dia de pedal, é pedalar e pedalar; só o Tempo passa...

E o Tempo passando, os policiais rodoviários me cruzaram novamente, agora no mesmo sentido, de novo uma leve buzinada em cumprimento; desta vez, meu braço esquerdo permaneceria um longo período no ar, enquanto eles afastando-se, o veriam enquanto as vistas fossem boas.


Na nossa vida de estradas, isso é algo meio natural, porque as pessoas se empolgam ao ver malucos de bicicleta, carregados pelo meio do nada. Um misto de inveja e desejo, passa-lhes nas cabeças, talvez por nossas coragens, talvez por nossas vontades, talvez por nossas liberdades, e talvez por nossas felicidades; o fato é que percebemos, todas tantas empolgações...


Tempo é algo inexorável, a quem inventamos uma maneira de medir, levando nosso Sol em consideração, mas na verdade, ele não está nem aí para a História, para as invenções, para a evolução, pior ainda para você, um pequenino ponto montado numa coisa de metal...

Mas Tempo é algo também palpável, pois que há tempos para muitos Tempos, momentos em que normalmente observamos alguma coisa, e lá estavam eles novamente, um em baixo, de prontidão, o outro em cima averiguando, a carga de um caminhão. No meu Tempo lento, passei num outro Tempo, percorrendo o curto espaço em que durava a longitude daquele veículo pesado e suspeito; levantei a mão em cumprimento, mas nem me deram atenção... Estávamos no nosso Tempo, e eles no Tempo deles...


Mais à frente, enquanto recebíamos a dádiva do temporal, na descida para o rio Adelaide, nos ultrapassaram mais uma vez, mesmo sentido, cuidadosos, desta vez sem buzinas e faróis, porque o tempo estava feio para todos nós, mais para mim, sem pára-brisas...


Como o Tempo não se importa com nossas coisas, almocei, pedalamos mais um tempão, e quando já estava próximo do fim, nos encontramos novamente, após a bela subida depois do vale do rio Andrade, bem no entroncamento para Capitão Leônidas; depois dos tantos cumprimentos através do dia, paramos e conversamos, descobrindo que um deles também pedalava, perguntando-nos sobre como era pedalar uma distância daquelas... Enquanto descansávamos, expliquei o que não tinha segredo: pedalamos o que o nosso condicionamento permite, e o nosso condicionamento permite, aquilo que nos acostumamos a pedalar...


Parece complicado mas não é; você começa, sente algumas dores, alguns desconfortos, mas na segunda vez, todos eles serão menores, e na terceira vez, menores ainda, e na hora em que eles cessarem, estará na hora de retorná-los novamente, para haver o progresso; é dessa forma que o condicionamento vai acontecendo.


Ainda faltava uma boa ladeira para o final, e fomos embora. O ideal de um passeio, são distâncias de 40 a 50 quilômetros, porque começam e terminam bem, com você bem também. Você chega cedo, tem tempo de se cuidar, de mais passear para conhecer, principalmente para o descansar. Pedais longos, só quando não existirem opções.

Nesse dia, acontecia aquilo que sempre acontece quando se é um dia puxado: você parece já ter visto tudo, você pára de sonhar, você só faz contas de cabeça... Olha para o hodômetro a todo instante, calculando quanto falta para o final.


Pedais longos, pedais difíceis, conseguem transformar aquele desejo do não querer chegar, com o sacrilégio de logo aquilo tudo acabar.

São momentos de autodefesa, é o instinto que se protege, você avisar e ficar lembrando à mente, que falta pouco, só mais um pouco, que segure a barra, não liberte as cãibras...


Pedais longos e difíceis, consomem o feijão com arroz bem rápido; depois passam a consumir a nós...

Chegar no Hotel Salto Caxias, foi como chegar no oásis, com sombra, água e comida, um bom abrigo...

Foi uma boa noite de sono, que a somar-se com o caminho leve que seria o do dia seguinte, deixaria a média boa.

Dia seguinte, faltariam apenas 4 dias para Foz; como faz o Iguaçu, também lá, terminaríamos o nosso passeio...

* * *

Pelas terras, pelo Iguaçu, do Paraná... (dia 11)

Os olhares dizem tudo,

revelam todas as almas,

que por detrás habitam...

O olhar da súplica,

depois o do desengano...


Nossa primeira selfie, mas a levaram embora...
(Paulo R. Boblitz - 17/fev/2015)

Seria um dia especial, assim nós o aguardávamos, e foi, mas poderia ter sido melhor...

A chuva da noite havia cessado; o mundo estava seco...

A ladeira que nos iniciaria, ainda frios, já sabida, portanto, sem nenhuma surpresa a nos causar.

O café da manhã e a dormida, tinham sido da forma que esperamos, muito bons...

A roupa cheirava gostoso, lembrando o cheirinho de casa...

Nem terminava nossa primeira ladeira, a garoa já se fazia presente, aquele pinguinho minúsculo, um aqui, outro acolá, a manchar de gota, meus óculos escuros, quando, em se somando, vão constituindo lentes que deformam nossa visão; o jeito então é tirá-los e pendurá-los na gola do pescoço, e aí, aquelas gotículas, bem miúdas mesmo, começam a nos fazer cócegas picantes, nas meninas dos nossos olhos...

O ar é geladinho, e o suor acaba misturando-se à umidade do lugar, numa amizade de fazer inveja...

Claro fica que as fotos acabam sendo prejudicadas, porque objetivas não se dão bem com gotas, nem com gorduras, pior ainda com impressões digitais; enquanto a água se me chega pela frente, vou mantendo o status da máquina fotográfica, de prontidão no meu bolso traseiro direito, como se uma pistola a ser sacada, na precisão. Quando a água é de escorrer, então a guardo protegida, pedalando desarmado...

O mundo frio tem seus cinzas, enquanto o mundo quente, tem seus vermelhos. Para mim, o gostoso é quando nem um, nem outro. Se chovesse, nada poderíamos fazer, a não ser aceitar a molhação...

Assim seguimos, ora molhados, ora meio molhados, pois que não conseguíamos secar de vez.

Por incrível que pareça, o mundo nublado sempre se apresenta com mais detalhes, porque as sombras não são tão marcantes, os contrastes deslizam-se entre si com suavidade, o brilho de tudo, é menos intrusivo...

O gavião, sem dar bola para nós, cuidava de ganhar a vida; nem sequer olhou para nós, bonitos como estávamos, Sofia mais do que eu...

De mansinho o sol se achegava, mas naquele dia, as nuvens estavam unidas...

Estávamos a navegar novamente para o norte; sem essa de chegarmos logo, em Foz do Iguaçu...

Vínhamos embalados quando vimos o macaquinho, deitado já sem vida no solo duro e áspero. Não deu tempo de frear e nos adiantamos um pouco, mas retornamos, apenas para constatarmos que o pobre animal morrera quase naquele instante.

Foi a primeira vez em que vi Sofia chorando...

Tristes dos arrogantes que, por um punhado de minutos, tiram a vida de quem era feliz...

Acima, num galho, alguém mais abalado que Sofia, chamava em vão...

Escondi o sangue, porque não existe sangue bonito...

Devagar fui levando Sofia, desanimada pela emoção, logo ela que encantava os animais pela estrada. A subida me ajudaria a pormos as ideias em ordem, e não nos falamos por um bom tempo...

Chegamos em Dr. Antonio Paranhos, quase 11 e meia, no horário de verão, aquele em que nos adiantam uma hora; o almoço estava quase servido... Dali até a Usina, eram só mais 10 quilômetros...

Avistar as comportas da usina, é emocionante, antever na mente, tudo aquilo grande lá embaixo, obra do homem a dominar a Terra, a dela retirar o benefício...

Mas parecia que nossa bandeira, estava a nos avisar...

Nos acercamos, batemos fotografias nos locais amplos destinados a elas, mas quando nos enfronhamos naquilo que seria de tirar o fôlego, uma câmera começou a nos acompanhar, como se fôssemos intrusos... A pequenina engenhoca branca, de para-sol e tudo, girava lentamente nos enquadrando, buscando talvez, nossos perigos ou loucuras, e tão rápido como se soletra Pin-da-mo-nhan-ga-ba, um carro da Segurança achegou-se por trás, com tudo o que tinha direito a piscar, como se eu e Sofia fôssemos contagiosos.

Parei e o mandei seguir, pensando que ele estava a nos respeitar, mas que nada, ele estava a nos enxotar. Bati de leve em Sofia:

- Vamos minha linda; não somos bem-vindos...

Ao fim do paredão, paramos e conversamos. O Segurança explicou que cumpria ordens da Operação... Lancei-lhe um sorriso e apertei-lhe a mão, dizendo que entendia...

Não discuto Segurança, até porque há 40 anos a venho obedecendo. Naquela hora, só o que queríamos eram bons ângulos; naquela hora, desconhecíamos, por não termos a vivência de todos eles, as potenciais possibilidades que eles acompanham todos os dias. O que eu quero dizer é que por ali passávamos, e que eles passam os dias inteiros, vendo gente passando...

Somente cada um de nós conhece o que se passa por dentro de nossas cabeças, portanto, a pensar frio como estou agora diante do computador, não tiro a razão de quem comigo se preocupou. Fosse como fosse, creio que eu e Sofia conseguimos retirar dali, as boas imagens, a energia que eles libertavam para produção de novas energias.

Meus pensamentos me levaram a Itaipu... Aquilo que pensava, que sentiria a vibração da água a passar pelos túneis apertados dos condutos forçados, até ali não havia experimentado, mas em Itaipu, eu já podia sentir meus pés tremendo... Empolgado pelos próprios sonhos, saía forte e valente, para a vertente que se derramava à nossa frente, novamente uma bela subida, porque os rios sempre correm pelos baixios...

Lá no topo, uma encruzilhada arredondada, que meu roteiro não previu. Sem aviso, sem placa alguma, a estrada se dividia em duas, e nós, quando cá embaixo pequeninos, não temos como ter a menor ideia de quem é o caminho certo.

Sozinhos, escolhemos pelo mais bonito, e já pedalando, notei a aproximação de um carro em sentido contrário. Fiz-lhe sinal apressado e notei suas lanternas vermelhas também apressadas, parando. Retornei até ele e descobri 4 Piás, perguntando então qual o caminho bom até Quedas do Iguaçu...

Era aquele mesmo, esse que estávamos trilhando. Uma bela descida nos aguardava, e por ela deixei-me levar por Sofia, que é quem me conduz por esses momentos felizes, afinal ela não me deixa fazer força, e qual não foi a nossa surpresa quando nos vimos novamente ultrapassados pelos 4 Piás, parando mais à frente, fazendo-nos sinais para que parássemos também?

A súplica
Juro..., a incerteza me tomou conta, a adrenalina atingiu o pico, e fui parando devagar, preparando-me para alguma coisa inesperada...

O desengano
- Tio! A gente não podia ir embora, sem tirar uma selfie...

E eu que nunca tirei uma selfie, por ficar envergonhado, feliz estava com a felicidade dos Piás; por alguns segundos, devo ter sido aquilo que eles devem ter mostrado para os amigos, como aquele estranho que não esperamos cruzar, como o tão sonhado ET a nos aparecer do nada...

Foram embora do jeito que apareceram, risonhos e cheios de vida, deixando-nos somente ladeiras dali em diante, cerca de 18 quilômetros até Quedas do Iguaçu, mais subindo do que descendo...

Há quatro dias que tomávamos banhos de chuva, mas este era o primeiro que tomávamos o dia inteiro...

Já entediados com as poças, com a lentidão do que era pedalar com força, nos deparamos com o Arrepiado, um pobre cãozinho a parecer desnorteado; deu vontade de abraçá-lo, de carregá-lo conosco, mas isso só acontecia nos filmes de aventuras. Tratei de afugentá-lo dali, onde o perigo o espreitava, onde o perigo somente queria tragá-lo como mais uma das tantas manchas do asfalto, e mais uma vez partimos, com a sensação da impotência, daquilo que nada podemos fazer, por não dominarmos as circunstâncias...

Há sempre um tipo de partir especial para quem parte; no nosso caso, o de abandono, esperando que a sorte do pequenino lhe sorrisse, que ele entendesse a gravidade, que não tentasse cruzar a rodovia, cheia de insensatos apressados...

Às portas de Quedas do Iguaçu, deparamo-nos com um trailer vendendo coisas gostosas, inclusive as vassouras. Perguntei sobre umas frutinhas vermelhas, que descobri serem tomates cerejas, e afirmei-lhe que se não estivesse de bicicleta, levaria uma daquelas bonitas vassouras. Perguntou-me de onde estava vindo, e à resposta, perguntou se eu não queria um Caldo de Cana com Abacaxi. Fiz que sim e recebi um copo generoso. Na hora de pagar, ele me disse que não era nada, a segunda vez em que me ofertavam generosidades em hospitaleira recepção.

Pequenos gestos, grandes percepções... O Brasil ainda é dominado pelas gentilezas...

Chegávamos em Quedas do Iguaçu, no Hotel Salufer, e nele encontramos o bem receber, carinho que todos gostamos, depois de um longo dia molhado... Deixei Sofia olhando a paisagem, tomei um banho, fui jantar, jantar malandro numa lanchonete, pão mala sem gosto e dormido, umas tripinhas de queijo, um nome besta de alguma coisa burguer.

Enquanto comia, a chuva caía grossa, trovões soavam com boas promessas, o amarelo sapecando o verde; seria uma boa noite de sono...

Em 6 horas e 38 minutos, pedaláramos 49,9 quilômetros, galgando 924 metros, queimando 3.437 calorias. Outro pão, nem pensar; então que viessem as batatas fritas...

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