Feliz Natal, para cada um de vocês...

Existem dois momentos em que descobrimos, e até sentimos, o querido Papai Noel...

Quando crianças, quando sonhamos e alguns deles tornam-se realidade...

Depois, quando nos transformamos em pais, do primeiro, do segundo, do terceiro, do quarto, do quinto e assim por diante, a cada filho que vai nascendo e nos fazendo realizar os sonhos de nossas crianças...

Primeiro com a gente, depois com os próprios filhos, a idade vai chegando, e com ela, aquele doce perde o açúcar, até que de novo, novos ciclos se repitam com nossos netos, bisnetos, trisnetos, bem..., tataranetos já é exagero...

Felicidades para cada um de vocês, que de novo o bom velhinho se aposse de suas mentes, compartilhando, amando, doando, fazendo sorrisos em brotos, pois são tantos os presentes que recebemos, e nem nos damos conta...

Um grande abraço também...


Paulo R. Boblitz

Neurônios

Dói aqui, dói acolá, coço aqui...,

tanta coceira...

Corro aqui, corro acolá...,

tanta doideira...


Neurônios
(Paulo R. Boblitz - out/2014)

Já vi por aí que devemos usar a mão esquerda, quando normalmente utilizamos a direita.

Devemos ainda mudar as coisas que necessitamos, de lugar, dificultando assim, aquele conforto a que nos acostumamos. E por certo, muitas outras coisas, a fim de que nossos neurônios, enfrentando novas dificuldades, continuem em reprodução.

Não sei e nem vou discutir se são verdades ou apenas mitos, ou micos, espalhados pela internet...

Sei apenas que a Inspiração, se nos chega em profusão, por incrível que pareça, quando estamos em franca produção, até mesmo quando parecemos cansados; experiência própria...

Enquanto andando pelos meus 25 quilômetros diários, em média, pois às vezes andava mais, bem mais, carregando minha mochila com 13 a 14 quilos à bordo, escrevia crônicas na cabeça, várias delas num dia só, apenas para perdê-las quando parava, quando necessitava tomar um banho, quase sempre muito frio, quando a tudo interrompia porque tinha que jantar, algo misturado com a hora do almoço, porque ele havia sido de laranjas, chocolate, pão com queijo de ovelha, e muita água que pegava pelo caminho, nas diversas fontes potáveis ao longo do Caminho de Santiago de Compostela.

Não importavam as bolhas conquistadas, nem tampouco os castigos que o sol impingia às minhas panturrilhas; era começar a andar, e a coceira de escrever se estabelecia, e não havia jeito, pois era andar ou ficar parado para escrever, e não se chegar a lugar algum...

Nos albergues, impossível com aquela gente toda, todas aquelas línguas, concentração... Assim, matando a sede com a vontade, enquanto ia degustando quase 1 litro de caña (chope) São Miguel, o santo mais simpático da Espanha, escrevia o pouco entrelaçado que me sobrava...

Na roça, no próprio trabalho, na bicicleta, enquanto corpo e mente se movimentam, se vão cansando, inspirações vão se chegando...

Durante o banho, às vezes é o momento em que ela ataca furiosa, quando fico nervoso até poder sentar-me diante do computador, antes que tudo aquilo vire fumaça... Não, ainda não sentei pelado, pior ainda molhado ou ensaboado...

Deito e já estou embalado sonolento; ela chega barulhenta e me faz levantar, e eu levanto, porque não se consegue dormir sob buzinas que ficam a martelar...

Do mesmo jeito que as atividades produzem mais atividades em cascatas, a indolência gera a preguiça e o sono, o olhar vazio sem horizontes...

Se você quer produzir, não pare; os neurônios agradecem... Agradecidos, criam, sonham em voz alta e você inventa, seja lá o que for...

Mas, e o cansaço? O corpo cuida e avisa, dá sinais e você boceja; entra noutra onda...

Dormir é bom, faz você voar por aí; dormir demais, faz doer os ossos..., então, mexa-se! Aprenda a tocar piano...

Mas cada um, lembre-se, tem sua própria dosimetria...

Seja como for, tenha um espírito forte.

Ele é a mãe, ou o pai, de todas as valentias...

* * *

Sofia azul...

Não somos loucos,

não somos solitários,

apenas pensamos, sonhamos,

sorrimos para a vida...


Sofia azul...
(Paulo R. Boblitz - set/2014)

- Sofia, você não está com frio...

- Tô sim! Não vê minha cor?

- Você sempre foi azul...

- Mas eu queria ser cor de rosa...

- É..? E eu, como ficaria?

- Tô com frio...

- Tá mudando de assunto...

Ela tremeu... Olhei para a outra cama, vazia, peguei a colcha grossa e a cobri...

Ocupado estava com meu diário, quando ouvi nova reclamação:

- Agora tô com calor...

Sorri, levantei e fui lá descobrir seu guidão. Agradecida, estremeceu a garupa...

Alisei sua sela, o quadro forte, limpei o espelho, agarrei seus bar-ends e a soquei no chão, coisa que sempre gosta, como se uma égua a empinar garbosa, afundando meio mundo de suspensão... Pingos d'água caíram, molhando o chão; ela estava gelada...

Até ali haviam sido dias de muito frio, especialmente o anterior, inteirinho debaixo de chuva a levantar a lama espessa, aumentando o nosso peso. Meus alforjes não haviam suportado, permitindo que a água entrasse molhando tudo; eu ainda sentia o tempo gelado, roupas úmidas, calores da subida que tinham ido embora, pulso voltando ao normal, a calma por fim se achegando, o corpo entregando-se ao cansaço, coxas de vez em quando fibrilando...

Estávamos nós dois no fim de um grande dia, orgulhosos por um grande feito: havíamos vencido a Serra do Rio do Rastro, cerca de 22 lindos quilômetros para cima, por entre as nuvens...

A cada maior cansaço, uma parada, um gole d'água, mentes aguçadas pelos mundos de barulhos à volta, envoltos nos mistérios em nevoeiros que teimavam em nos acompanhar.

Sofia recebia em pingos, meus suores, meu sal a se misturar com seu doce molhado, seus óleos e estalos; não tínhamos pressa...

Gememos sim, do mesmo jeito que gemiam os motores dos forças brutas que se nos chegavam por trás, do mesmo jeito que estrugiam os freios dos que à nossa frente se continham a descer, da mesma forma como as águas em alegrias se batiam e respingavam em liberdades. A única a não fazer barulho era a névoa, a nos ouvir os pensamentos, nos abraçando e envolvendo amorosa, como a nos brindar respeitosa, descortinando-se a cada metro, desenrolando-se aos poucos à nossa frente. Ela fez questão de nos seguir até bem depois de vencida a batalha, quando o líquido tomou o seu lugar, alfinetando-nos em cócegas, informando que o sol não estava longe...

Olhei para Sofia, agora brilhando à fraca luz do quarto; notou que a admirava, virou-se e piscou o led. Balancei a cabeça com um sorriso, pisquei um olho e mandei um beijo; lá fora o vento cantava, molhando tudo...

Estávamos em Bom Jesus da Serra. Levantei, apaguei metade daquela luz, o quarto entrou em ritmo de calmaria, Sofia bocejou, ajeitou-se amolecendo suas partes duras, fechou os olhos e adormeceu...

Tal como pingente, um pingo a parecer cristal, teimava em abandonar Sofia, brilhando no meio escuro como precioso a enfeitar minha princesa, diamante joia em seu corpinho lindo... Sorri também para ele, pois seria muito difícil nos acompanhar pelo pedregal do Parque Nacional de São Joaquim, pelos Campos de Santa Bárbara, atravessar o Rio Pelotas, chegar em Vacas Gordas, depois seguir até Urubici, num dia longo e penoso...

Levantei, ajeitei sua colcha felpuda, e Sofia estremeceu; já sonhava com os caminhos, já conversava com as pedrinhas, já cantarolava com o vento...

Meus olhos pesavam, os ruídos se misturavam, os sonhos também se aproximavam; apaguei a luz, convidei a noite, encerrei o dia.

Puxei o cobertor, ajeitei o travesseiro, encolhi-me e baixinho desejei:

- Boa noite, Sofia...

* * *

Tomando as cabeceiras...

Não são os nossos amigos,

os anjos das horas incertas?

Não são os nossos amigos,

melhores que dinheiro no bolso?


Tomando as cabeceiras...

(Paulo R. Boblitz - out/2005)

- Pode deixar comigo, que eu vou tomar as cabeceiras... - meu amigo, do outro lado da linha, falava lembrando o velho pai que isso já dizia, lá pelas bandas da Bahia...

- Tomar o quê!? - perguntei sem entender direito.

- As cabeceiras..!, a frente do negócio..! Deixa comigo que eu resolvo... - respondia o amigo, sorridente.

Concordei sem muito questionar, pois o que precisava era daquela ajuda, e com cabeceiras ou não, eu seria ajudado.

Terminamos a conversa, fiquei meditando nas cabeceiras que o amigo havia utilizado; mais um termo inusitado, elegante no afirmar da posição, porém simples e contundente na decisão...

Minha cama tem as cabeceiras, onde depositamos, eu e a esposa, nossas cabeças ao fim do dia, cansados.

Minha mesa tem as cabeceiras, onde sentamos, eu e ela, em cada uma das extremidades, quando gerenciamos o que cada filho deve comer, até que eles, crescidos, resolvam comer do jeito deles. De vez em quando, sentam-se em nossos lugares, orgulhosos iguais aos pais - assumem as cabeceiras...


Algum dia estarão a nos repetir, pondo em prática o que aprenderam...

E quantas coisas ensinamos, porque aprendemos algum dia, de vários dias ensinados, um atrás do outro em paciência, em sabedoria ancestral, dos tempos antigos em que o sério era o ideal, em que os homens cultuavam o respeito, por si próprios e descendentes, em esmerado linguajar para bons modos ensinar...

Um dia inventaram esse culto ao mais jovem, esse negócio do mais velho ser coroa, e badalaram na gíria, como badalam os sinos dos fiéis, que achamos legal enquanto ainda jovens, até que precisemos assumir as cabeceiras...

O pai do meu amigo, não o conheci, mas pude sentir o seu ensinamento, no amigo que assumiu, aquilo que com o pai aprendeu, pois que cabeceiras são reservadas aos que comandam, assim como o boiadeiro que rege a boiada, a nascente singela do rio majestoso, e nas igrejas, o espaço do altar-mor...

Tomar as cabeceiras é assumir as rédeas, é comandar a ação, é envolver-se com o próprio espírito, diferente de quem faz apenas o favor.

Tomar as cabeceiras é brigar, é ter resoluto o desejo de resolver.

Sábios os nossos mais antigos, que usavam os termos corretos nas horas certas, muitos deles hoje descansando, a prumo, sob outras cabeceiras, contando suas histórias no branco do mármore, quem sabe das cabeceiras algum dia tomadas...

* * *

Pelos Andes Peruanos, e, Pelo Ladakh, o pequeno Tibete

Se o sentir invejas, é condenável,

despertá-las nos outros, também é, mas,

se puras são as tais invejas,

o despertar de todas elas, é

mais ainda maravilhoso...


Pelos Andes Peruanos, e, Pelo Ladakh, o pequeno Tibete

(Paulo R. Boblitz - jun/2014)

Pelos Andes Peruanos

Elegantes pelo frio, suados pelo esforço, maravilhados pelas vistas, assim seguiram Antonio Olinto e Rafaela Asprino, pelos serrilhados do Peru.

Imagens de Bicicleta pelos Andes Peruanos, esse é o título da aventura que os dois me narraram através de um DVD muito gostoso de se ver, pelas imagens, pelas músicas, pelas curiosidades registradas. Mesmo que você não seja um Cicloturista, ou até mesmo que seja, mas não tem a coragem, a viagem lhe contamina, desperta invejas, faz sonhar, faz pensar em qualquer dia desses, pegar a amiga bicla e cair no mundo das estradinhas, dos povoados, das montanhas lindas, dos sorrisos que sempre nos aguardam.

Comprei suas últimas obras, aliás as tenho todas, e vez ou outra, quando estou desanimado, fujo para meu canto e navego pelas cachoeiras, pelas toscas pontes, pelos cascalhos que conversam conosco, não vendo a hora de um grande feriado, dumas férias em que possa pedalar por aí, sem pressa e compromissos.

Não estou fazendo propaganda; estou, empolgado, prestando meu depoimento. Antonio Olinto e Rafela Asprino, entraram em minha vida quando visitei o sítio deles: www.olinto.com.br, um Projeto de Cicloturismo no Brasil, que já se estende fronteiras afora, pela dinâmica do casal em nos apresentar sempre o melhor.

Conheci-os virtualmente pelo Guia Estrada Real, de Ouro Preto até Paraty, mas um dia ainda nos abraçaremos pessoalmente.

Agora acabei de acompanhá-los pelas montanhas do Peru, e novamente atacado pela doença que faz coçar nossas mentes, faz inquietar nossos corações, faz vibrar nossas ondas sonhadoras...

Falta ainda assistir Ladakh, o Pequeno Tibete, uma viagem de bicicleta pelos himalaias indianos, e, No Guidão da Liberdade, quando o Olinto deu a volta ao mundo de bicicleta. Depois conhecerei o Guia  Estrada Real - Caminho dos Diamantes, agora mesmo a convidar-me pela capa, uma estradinha de chão em zê, marrom aprisionada pelo verde, como se um rio seco a nos levar pelas lindas montanhas mineiras, cujas entranhas sorveram pedras preciosas e muito ouro, ainda hoje produzindo minérios e outras riquezas...

Se você quer viajar diferente, de carro, bicicleta ou a pé, visite o sítio deles e compre as saborosas obras, portas e janelas abertas para um mundo inigualável, onde só você e o terreno, farão barulho. Nada é caro por ali, e eles ainda ensinam como poupar durante as viagens, dão dicas e bons conselhos.

Se essa inveja for pecado, então que me perdoem todos vocês, por fazê-los também invejosos das coisas e qualidades boas.

* * *

Pelo Ladakh, o pequeno Tibete

Eu ia falar desse casal em duas crônicas, mas o DVD sobre o pequeno Tibete, não me permitiu; ele é bonito demais, muito bem trabalhado e narrado. O porquê do meu depoimento: porque eles estão construindo, não um Projeto, mas um grande sonho para tanta juventude que os observa.

Antonio Olinto e Rafaela, parece-me, conquistaram alguma coisa que os fez diferentes nesse vídeo; estão mais soltos, mais alegres e divertidos, talvez pelo clima, talvez pelos mistérios das montanhas coloridas do Tibete.

A paisagem é lunar, linda e agressiva ao mesmo tempo, de encher a alma de qualquer um, pela grandiosidade a nos cercar, ainda mais se ajudada pela nossa falta de ar; é muito alto...

Numa pequena entrevista com Cicloturistas que encontraram pelo caminho, simplesmente resumem toda a magia de se pedalar numa viagem, você e sua bicicleta numa interação formidável, em constantes negociações um com o outro, onde os dois, ciclista e bicicleta, enfrentam as mesmas condições em pé de igualdade...

Corajosos, de casa e cuia, tem o mundo inteiro, e todas as estrelas do mundo, só para eles... As tomadas cênicas não ficam em nada a dever aos melhores de Hollywood, porém eles não buscam nenhuma estatueta, mas sim pedalar e nos mostrar por onde pedalar com prazer e emoções.

Subidas fortes, de tirar o fôlego, de quem já está quase sem ele numa atmosfera rarefeita... Obrigado Rafa, pela emoção e pela Oração no ponto mais alto da mais alta estrada do mundo.

Pedalam em bicicletas simples, quero dizer, nenhuma delas é sofisticada, levíssima ou de marca glamourosa; são Cicloturistas, e isso basta...

No topo do mundo, onde um dia as montanhas se rebelaram e quiseram subir aos céus, não conseguiram e foram contidas, ainda hoje as marcas daquela rebeldia estão presentes como testemunhas, da luta grande travada entre o quente e o frio, quando as cores estabeleceram as veias de tantas forças, retorcidas como as estradas em ziguezagues, nos estonteando em delícias...

Um dia tudo aquilo rugiu, em explosões subiu, e acalmou, como a gente acalma quando diante daquilo que nos enche, nos transborda, nos enobrece por estarmos ali, apreciando as coisas do Paraíso, e não em shoppings do consumismo...

Milhões de pixels ficaram gravados para sempre, e os acompanharão por onde andarem, tamanhas lições que a Natureza ensina, calma sem repetição, amorosa e contemplativa. Como cabras montanhesas, seguiram por trilhas, trilhinhas e trilhões, num mundo em que a Terra reclama em pó, a ousadia em que um dia, aqueles monstros petrificados resolveram crescer...

Atravessaram pontes e singelas pinguelas, esquisitas passagens, pontes nenhumas. Desmontaram as bicicletas transformando-se em Ciclopedestres, sem pressa num mundo de pedras, onde os solados e os cascos vêm esculpindo caminhos há muito tempo..., e chegaram onde todos chegamos..., naquele fim que não dá mais para pedalar, pois que nesse mundo, tudo tem começo, meio e fim...

Viajei com eles, com os olhos deles, com as emoções que me fizeram também sorrir, e a inveja não diminuiu...

* * *

Ergonomia e sobrepeso

Não era para ser uma crônica,

mas foi saindo, evaporando, e

antes que virasse fumaça, escrevi...



Ergonomia e sobrepeso
(Paulo R. Boblitz - mai/2014)

Pode até ser que os assuntos não se entrelacem, mas vou arriscar...

Se você está pesado, consequentemente está consumindo mais combustível, além do seu monobloco (sua coluna vertebral), correr sério risco de algum empeno.

Pense nisso: somos iguais a um bom automóvel, sem os acessórios, é claro.

Temos quatro rodas, mas só gostamos de andar sobre duas, isso mesmo, empinados, perigosamente em equilíbrio.

Temos uma carenagem, nossas roupas, simples ou estilosas.

Às vezes andamos de forma conversível, sem capota; outras, com ela protegendo, com nossos bonés ou chapéus.

Trafegamos em qualquer terreno, traçados ou não, e ainda podemos reduzir, momentos difíceis em que galgamos penhascos ou arvoredos.

Temos, além disso, um giro formidável, tanto para a esquerda quanto para a direita, freios independentes, e engatamos qualquer das marchas sem embreagem e nenhum arranhão. Além disso, mudamos de direção bruscamente, à frente ou à ré, sem possibilidade de quebra de qualquer peça móvel do sistema de tração.

Somos impermeáveis, andamos dentro d'água, completamente submersos, na lama, e mesmo assim não atolamos, nem apagamos o motor.

Temos dois faróis que dificilmente queimam, a não ser bem lá no fim de suas vidas úteis, mas logo corremos para o médico de olhos, e implantamos novas micas.

Necessariamente não utilizamos setas, e às vezes até trombamos uns com os outros, mas, sem maiores acidentes ou consequências, a não ser quando tais trombadas são mais profundas, referindo-me aqui aos nove meses...

Temos um molejo infernal, inigualável; basta qualquer música contagiante...

Mas reparem: isso tudo só conseguimos, se formos ágeis, portanto, se estivermos pesados, além do alto consumo, também sobrecarregaremos outras partes da suspensão, como joelhos, quadris, tornozelos etc.

Sim, mas onde entra a tal Ergonomia? Já entrou! Está envolvida nisso tudo aí em cima; ela é inversamente proporcional ao que você consome, e aqui, permitam-me citar uma contradição: quanto mais redondos somos, menos aerodinâmicos...

A propósito: somos Flex e ninguém se compara com nossa gama de combustíveis, embora alguns, a longo prazo, acabem produzindo mazelas aos nossos motores principais, porque não temos apenas um, cheio de cavalos, mas vários num cavalo só. Calma!, foi só uma representação, uma facilidade de interpretação, afinal, nossos pulmões, coração, cérebro, rins e tantos outros, funcionam sem você dar nenhuma partida na chave de ignição, por isso mesmo que não temos bateria...

Escolha bem seu combustível, alguns que não produzam poluições internas, que costumam ficar armazenadas. Poluição sadia é aquela que expelimos todos os dias, principalmente o suor.

Não precisamos ser um Mercedes Benz (qualquer modelo), nem por isso, precisamos parecer um Fiat 1 ponto zero...

Que tal uma bicicleta? Põe você em forma, rapidinho...

* * *

Metamorfose...

Se você tem medo,

medo é palavra que não existe...

Medo é você quem inventa,

quando a coragem está com preguiça...


Metamorfose...
(Paulo R. Boblitz - mai/2014)

Tudo era luz, e de repente a escuridão...

Tudo eram ares, e de repente a opressão...

Tudo era afável, e de repente o frio inundou...

Fiquei assim por longos dois dias, e no terceiro vi a luz...

Dourado sempre fui, do Sol amigo, irmão; agora muito pálido, encarava a transformação...

Força era algo que não conhecia; agora a tudo abria caminho...

Braços que antes não tinha, agora braceavam no ar...

Por instantes fico ofuscado, tudo é novo à minha volta, até o mundo...

Inflo o peito e tomo ar; agora sou outro ser...

Olho para cima, azul cintilante. Olho em volta, verdejante...

A brisa passa num cumprimento; uma gotinha de orvalho rola...

Meus abraços alongam, desenrolam amores...

Faço força e me estiro, enfim liberto, enfim novamente nascido...

Cresço comendo e bebendo forte, sadio para muitas alegrias...

Até que um dia, dedos me correm pelo corpo; sentem meus pelos veludo...

Nesse dia sou batizado, Milho Bonito chamado, a todos apresentado; só orgulho, nenhum gorgulho...

Vi a festa do sertão, bebi do maná que caiu em água, alegrei a mesa da família, do matuto engordei a bicharada...

Imitei o som de preciosas pedrinhas; sequei guardado que nem ouro...

Hoje, pelo ciclo, espero semente...

* * *

Ciclista não é herói...

Se você quer discorrer sobre alguma coisa,

trancar-se, é o melhor a fazer...

Jamais, jamais!,

deixe sua bicicleta, dar opiniões...


Ciclista não é herói...

(Paulo R. Boblitz - mai/2014)

Vez em quando observo vídeos que mostram quedas espetaculares...

Umas poucas vezes, fotos com roupas rasgadas, sangue à mostra, arranhões dignos de quem foi puxado por um cavalo...

Outras vezes, aquelas caras de sofrimento...

Não raro também, são as comparações entre o Ciclismo e algum outro esporte...

E uma porção de vezes, muita lama para que eu me faça uma pergunta: isso é pedalar?

Bicicletas são bacanas, mas há quem goste de cavalos, de correr atrás de bolas, correr pelas ruas socando o chão...

Está certo que a lama, a chuva, o sol, o vento e mais algumas estripulias, fazem parte do ciclismo, porque não temos portas, nem janelas, nem para-brisa, pior ainda uma capota...

Sites que se dizem especializados em bicicletas, quando ficam a dar ênfase nesses pontos radicais, conseguem mesmo é espantar muitos adeptos.

Eu caí, tu caíste, ele caiu, todos nós caímos, grande coisa! Não estamos sobre duas rodas?

Para isso é que existem os acessórios de segurança, como em qualquer outro esporte..!

Levantamos, sacudimos a poeira e continuamos sem perder nem um pouquinho do sorriso..., por isso mesmo, porque a bicicleta é, acima de tudo, fonte de juventude...

Coisas caem do meu lado; suspeito que foi Sofia quem derrubou...

Quando alegre, fica meio atrapalhada; lanço-lhe um sorriso e continuo...

Voltamos a ser crianças, limpamos o organismo, vitaminamos as vistas d'alma, fortalecemos os músculos, perdemos peso, jogamos o estresse fora...

Conseguem ver? Notaram quanta Farmácia, perdão, quantas Drogas nos invadem sem efeitos colaterais?

Se bicicleta é vida, então paremos de sofrer, de bancar os esquisitos...

Comecemos a mostrar vídeos bonitos, fotos engraçadas, sorrisos escancarados, as crianças em que nos tornamos quando felizes...

Chega de sangue, de feridas, de sofrimentos, porque tudo isso é mentira..! Claro que é!

Se você não consegue subir uma montanha, a culpa é sua porque não treinou...

Se você levou uma queda feia, a culpa é sua porque desdenhou...

Se você teima em comparar bicicletas com bugalhos, está faltando personalidade...

Sinto uma cutucada; é Sofia me incentivando...

Passo a mão em seu guidão; ela treme, pisca seu farol...

É assim que é, mas também não precisa exagerar; não leve sua bicicleta para a cama... Isso é doentio!

Sofia, empolgada, concorda e salta; quase me derruba da cadeira...

Dou-lhe um tapinha no pneu...

Ela estremece e me roça carnuda; quer saber se vamos passear...

Digo que não; ela então exige...

- Escreve aí:

Olho para ela e aguardo... Ela entorta a suspensão, vira um pouco no guidão, faz ar pensativo e solta:

- Não gostamos de quem faz dramas...

Balanço a cabeça concordando...

- Não gostamos de gente metida a bacana...

Olho para ela com aquele sorriso de respeito, e dedilho satisfeito as letras no computador...

Ela demora, faz charme, arqueio a sobrancelha como quem pergunta se tem mais. Sofia entorta mais um pouco, sensual mostra a robustez do garfo; seus raios brilham...

- Adoramos quando giramos..., e só!

Dou-lhe uma palmadinha, prometo só uma voltinha...

- Deixa só eu terminar... - falo para ela com carinho...

Ela sorri e fica olhando para o monitor; ansiosa, ela sabe que sempre termino com três asteriscos...

Dou de ombros e termino...

* * *

Vigílias...

Dormir em serviço,

dá um bom xadrez...

Dormir no ponto,

dá atraso no encontro...

Já o dormir acordado,

é sonho de montão...


Vigílias...
(Paulo R. Boblitz - mai/2014)

Nessa vida que há, mesmo que por demais, vigília nenhuma se perde...

Outro dia aluguei um filme; nele, um artista tentava hipnotizar o outro artista...

- Olhe bem para os meus dedos... - dizia ele...

Eu também olhava...

- Olhe fixamente para o que tenho em minhas mãos...

Eu não tirava os olhos...

- Você está com sono. Você está com muito sono... Suas pálpebras estão pesadas..!

Acabei dormindo...

A esposa, notando, correu e desligou a TV, mas já era tarde...

- Marido, acorda!

Levantei, fui até o quartinho onde tenho as ferramentas, peguei uma corda grande e a trouxe até a sala...

- Marido, você está doido!

Fiz caretas, troquei os olhos e estaquei com o olhar parado...

- Marido!? Você foi hipnotizado!

Não me mexi, não movi um músculo...

- Ande!

Andei...

- Senta!

Sentei...

- Vá lavar a louça!

Lavei...

- Agora descasque as batatas..!

Descasquei...

- Já arrumar o quarto!

Arrumei...

- Maridão!?, preciso de um bom dinheiro...

Ora bolas!, tenham paciência, hipnotizados e hipnotizadores, porque tudo tem limite!

Acordei.

* * *

As músicas cantam, os cães ladram...

Entre o ir e vir,

o que muda é a direção...

Entre o amor e o servir,

o que muda é a gratidão...


As músicas cantam, os cães ladram...

(Paulo R. Boblitz - maio/2014)

As músicas cantam, sussurram, embevecem e nos transportam, nos fazem navegar...

Entramos no som e saímos sem rumo, onde o barulho universal nos conduz em magias...

As borboletas silvam, os pássaros piruetam no ar, os cavalos saltam, e os cães, estes nos trazem para a realidade...

Olhinhos miúdos nos encarando, nos chamando à razão, rabos varrendo o chão...

Cães e músicas não combinam...

Como se um balde d'água fria, os latidos nos resgatam, nos informam que estávamos de partida para algum outro lugar onde os acordes nos vibram...

Concentração que vai para o espaço, vida real novamente à volta, o cheiro de pizza no ar, o Entregador por pagar...

O cão agora salta, a música é para ele; o presunto está no ar...

O doce do violino esfumaça, o cheiro de cebola se apresenta, o pobre cão enlouquece...

- Moço, seu cartão...

Acordo e recebo meu dinheiro de plástico, lanço um cumprimento e fecho a porta; o cão lambe os beiços, se finge de morto, rola e late novamente...

- Ok!, uma fatia é sua..! - ele não sabe sorrir...

Faço que vou mas não vou, ele salta dum pulo só e me rodeia, senta e me encara; quer o pedaço dele, sem borda...

Puxo a cadeira para mim, ele de um pulo se assenta; mal acostumado... 

A primeira fatia é para ele, mas a azeitona eu separo para mim...

E ele come a segunda, come a terceira, e acaba por comer a quarta fatia. Não, ele não arrota...

Meu melhor amigo, se cantasse, cantaria para mim, se sorrisse, sorriria para mim, mas ele é pragmático: olha para o prato, olha para mim, olha para a caixa de papelão vazia, desce e vai em busca d'água, depois deita e vai sonhar...

Nossas músicas são diferentes, nossos sonhos nem por um instante iguais...

A pizza já era... Faço um chá e preparo algumas torradas; lá no canto ele agora de pernas para o ar, talvez na próxima pizza a sonhar...

Acabo, levanto e vou embora, minha música voltar a escutar...

Navego, até o sono me acordar...

* * *

Não dominamos...

A todas as mulheres, todas elas, Marias...

Lindas, sensacionais, fraternas, amorosas...

Eu acho, que da costela de Eva,

surgiu Adão...



Não dominamos...
(Paulo R. Boblitz - mai/2014)

Sofia..!, So-fí!?, Sofiiiiaááá!!!

E por alguns instantes, estivemos mais leves que o ar...

Acordei e vi um céu maravilhoso, azul sorriso, nuvens em novelos...

Doíam-me os braços, as pernas, a bunda, a cabeça, principalmente os brios...

Estatelado, experimentei mexer-me e as juntas doeram juntas...

Cuspi terra, afastei um torrão de grama e percebi minha aventura..., ladeira formidável..., a observava exatamente ao contrário...

Virei de lado, depois fiquei de bruços, mais um pouco de quatro, e tudo parecia bem... Estiquei o pescoço para um lado, depois para o outro, quando vi minha Sofia também escarrapachada sobre uns arbustos. Comecei a rir, porque ela parecia bem pior do que eu...

Levantei devagar, pus as mãos nas ancas e me estirei, como quem se espreguiça... Bati a poeira de mim, dobrei as pernas, baixei-me para pegar os óculos, mais um pouco alcançava minha caramanhola e sorvia um bom gole d'água...

Minha Sofia só observava, aguardando ajuda, vexada na posição, pernas para o ar, galhadas a espetando... Apontei-lhe o dedo em riste, prestes a explodir, mas não consegui...

- Mulher maluca, isso é coisa que se faça?

- Problema seu! Quantas vezes lhe avisei para trocar minhas tamancas? Mão de vaca!

Não respondi. Segurei-a pela traseira com a mão direita, com a esquerda a peguei pelo pescoço. Quando consegui içá-la, raivosa girou o guidão, acertando-me com o bar end; fomos os dois ao chão...

Eu estava cansado, muito cansado para discutir, afinal a emoção havia sido muito forte, e nem estávamos num globo da morte...

Levantei-a com suavidade, e mesmo cheia de poeira, continuava linda...

Um pouco arranhada, eu também um pouquinho aqui, um pouquinho ali, mas sobreviveríamos. Procurei uma sombra e para ela nos dirigimos. Encostei-a com delicadeza e me sentei, tirando o capacete, as luvas, a balaclava e a bandana. Sofia só observava...

Apontei-lhe a ladeira e ela deu de ombros; já estava acostumada...

- Você precisava ficar sem freio justo no meio? - perguntei...

Novamente deu de ombros...

- Qual é!? Queria me matar!?

Soltou uma sonora gargalhada...

Franzi os olhos, pois bem conhecia aqueles ares. Virei para a ladeira, virei para ela e perguntei:

- Não me diga que tudo isso foi ciúme?

Ouvi outra gostosa gargalhada; riu tanto, que caiu de lado...

- Temperamentais, azoadas, todas vocês não giram bem..! - ia resmungando enquanto a erguia... - e continuei:

- Aquilo lá atrás foi só uma voltinha..! Não viu o amigo pedindo para que eu testasse a bicicleta dele?

- E precisava daquela alegria toda? - perguntou-me com desdém...

Sorri para ela, alisei-lhe a sela, e enquanto lhe passava minha bandana a retirar-lhe o pó, pedi perdão por aqueles sorrisos, explicando que sorria porque estava a imaginar o amigo andando naquele troço...

Sofia virou-se para mim, perdoou, mas exigiu:

- Quero minhas tamancas de volta..!

Fiz que sim e comecei a escalada, vez ou outra dando uma espiada, parecendo-me vê-la sorrindo com meu castigo. Encontrei a primeira um pouco acima, examinei-a e não me pareceu assim tão gasta; encontrei a segunda pouco depois da metade da ladeira, onde um risco profundo informava que ali havia sido a freada mais forte. A borracha também estava boa...

Desci, cheguei-me até ela e mostrei as tamancas com mais de meia vida...

- Mão de vaca, né!?

Agarrei-a com força, virei sua traseira com determinação e montei seu freio, apertando-lhe a manete algumas vezes. A cada vez que a apertava, ela parecia lançar-me um beijo. Peguei o óleo da corrente e pinguei um pouco em cada mola; ficou faceira...

Aproveitando que agora o ofendido era eu, avisei-lhe em bom tom:

- Ainda tem muita descida pela frente, e se você me derrubar de novo, juro que lhe jogo no rio...

Soltando leve sorriso, Sofia estremeceu avisando que estava pronta. Montei e saímos feitos as pazes, mas mulheres, quando querem, são indomáveis...

Vez ou outra um solavanco; olhava para trás e não via buraco algum.

Era ela, mangando de mim...

- Sofiiia...

* * *

Tristezas...

Positivo e negativo se atraem,

assim informa a Natureza...

Da briga que os dois travam,

você é a diferença...


Tristezas...

(Paulo R. Boblitz - maio/2014)

A tristeza é algo de que devemos nos afastar, mas é ela quem nos faz criar as mais belas criações, pois não somos nós, mas sim nossas almas, nosso interior em expressões...

Tristezas assim não são previsíveis, nem tampouco as aguardamos; elas vêm, se acomodam, produzem das suas até um dia em que as suplantamos, pois que a vida nos cobra vida, trabalho e suores...

Mas existem outras tristezas, essas não interligadas com nossos sentimentos, mas com nossos azares, que apenas produzem ânsias e impaciências... É duma dessas, que fui acometido...

Meu último passeio de bicicleta, aquele do Plano B, quando fui parar às portas de Pernambuco, antes mesmo de começar já dava sinais de que me cobraria juros. Com o pulso esquerdo dolorido, parti para um primeiro dia quase completo de costelas de vaca, aquelas ondinhas umas atrás das outras que o vento faz, em estradas de chão. Foi muita trepidação, quase 70 quilômetros com minha amiga gaguejando insistente, praguejando contra todos os meus botões, justo eles que naquele dia não andavam comigo...

De Lagoa Redonda até Brejo Grande, no dia primeiro de 2014, muito sol, muito calor, muita sede, muito sacolejo... Isso iria me cobrar indagações ao longo do meu terceiro dia, e irritações ao longo do meu quarto e último dia, pois quase já não sentia meus dedos, que teimavam em me obedecer...

Túnel do Carpo, esse é o nome do sujeito que não me encurtou caminho algum, pelo contrário, prolongou-o esse tempo todo com exames e fisioterapia, choques e medicações, e já se vão 4 meses inteiros olhando para minha amiga que sempre pronta, lança-me convites, empoeirada, queixosa também por um longo tempo sem ver novidades, sem as pedrinhas que vai lançando pneus acima, sem a poeira que como rastro, sublima o ar até novamente estender-se ao solo agora cheio de marcas...

Outro dia lhe enchi os pneus, untei a corrente, pedalei com as mãos até ouvir-lhe a canção das rodas, que, uivando alegres tiquetaqueiam quando os cachorros das catracas começam a deslizar...

O espelho estava embaçado, a poeira a começar a fazê-la espirrar, e o guidão, este eu via, a cada dia, virado para um lado, virado para o outro lado, como se ela também impaciente, estivesse se mexendo em busca de melhores posições...

Banquinho debaixo a deixar-me confortável, a alisei com meu pequeno trapo manchado de longas graxas, que ela bem conhece por novamente ficar pronta para outras peripécias. Enquanto o esfregava, ela tremia e ameaçava sair do cavalete, como o puro sangue que bufa e chuta o chão, antes da corrida...

Como o crepúsculo nos enfraquece a luz, lentamente fui enfraquecendo a força do pequeno pano, e ela entendendo, foi adormecendo e mais um dia passamos distantes, e mais outro, e tantos mais até que o punho volte a ser normal, desconfiado estou que já nos próximos dias, devagar a testá-lo, a informá-lo de que ainda dispõe de bom tempo para sua recuperação total, ou o mandarei para o inferno, como um dia mandei o joelho enquanto caminhava pelo Caminho de Santiago de Compostela, e no dia seguinte ele amanhecer bom...

A tristeza é tudo aquilo que nos inibe, até mesmo impede nossas felicidades, que vamos contornando sem deixar dos sorrisos, pois são estes que no final, nunca terão nos abandonado, nunca terão fraquejado, porque são eles os precursores de qualquer alegria, de quaisquer outros maiores sorrisos, conquistas d'alma que nos fortalecem, nos enchem de vida, nos fazem brilhar nossas meninas dos olhos, quando voltamos no Tempo, esse velho sempre rabugento e enferrujado, oxidado por ele mesmo...

Trate sua dor, dê a ela o que ela necessita para ir embora, e se mesmo assim ela insistir em permanecer, não canse, mande-a para os ares, para outros quintos longe de você, novamente assumindo o timão que só pertence a nós, e a felicidade encarregar-se-á de tudo novamente.

É só uma questão de vigília...

* * *

Plano B

Não é fácil, não é difícil...

Sua vontade é quem determina,

sua fibra é quem examina,

sua alma é quem define...

Não é fácil, não é difícil...



Plano B
(Paulo R. Boblitz - jan/2014)

Se você tem um, não tem nenhum..., esse é o ditado mais velho que o homem já descobriu...

Se você traçou um plano A, é bom traçar o plano B, na hipótese do plano A falhar.

Se o plano B também falhar, bem..., aí é melhor você se benzer...

A tudo isso chamamos de planejamento, programar alguma coisa para o futuro, cercar-se dos cuidados para que tudo possa dar certo, mas mesmo assim, alguma coisa imprevisível, ou até mesmo previsível, pode acontecer, e você descobrir que ficou sem opções.

Comecei provocando pelos passeios gostosos, e logo me responderam pelo mais bonito; estava fácil demais...

Lancei aquilo que chamamos de provisório, ou básico, e ponderações começaram a aparecer; valentias também...

A coisa alastrou-se, para meu espanto, e logo tratei de pôr os pingos nos "is"...; foi uma santa providência...

Parti então para o projeto final, quase 90 por cento por estradas de chão, e os que ainda não tinham desistido, bem..., deixaram-me sozinho a lamber sabão. A esposa, sabendo, logo deu um veredito: sozinho você não vai..!

Faz tempo aprendi com o mar, que quando as coisas não se encaixam, não convém no insistir... O roteiro nos levaria de Aracaju, capital de Sergipe, até Cabaceiras, interior brabo da Paraíba, cerca de 505 quilômetros cruzando os estados de Alagoas e Pernambuco, muitas serras totalizando 7.540 metros em subidas acumuladas, em apenas 5 dias. Não bastasse isso, além do calor infernal, teria também que passar por região perigosa em Alagoas, que a própria Polícia Rodoviária não recomenda que trafeguemos à noite, e isso estando de carro.

Restou o plano B, mais ameno, acho até que mais gostoso... Quanto ao A, ele está pronto, engavetado...

1/jan/2014 - Aracaju - Brejo Grande

O despertador tocou bem cedo mas me atrasei, saindo de casa faltando 20 minutos para as seis da manhã, ensolarada já com o sol alto e quente... O primeiro dia é sempre cheio de tensão, não sei explicar, quando a bicicleta mostra alguns barulhos que não ouvíamos, o selim parece fora da posição normal, o espelho retrovisor não tem visão boa, enfim, nossos medos que afloram em percepções que não estamos acostumados, pois até a ideia de alguma coisa esquecida, nos persegue...

Mas a coisa começa a fluir, e com o vento, tudo também vai se distanciando de nós, agora experimentando brisas, sabores, cheiros, ruídos, solavancos, até o ranger do solado sobre o pedal, pois a corrente corre macia abrilhantada pelo óleo da véspera...

A tensão cede lugar para a boa posição, pois que já oramos pedindo proteção e saúde.

Estava a pedalar justo no dia da ressaca, aquele que acolhe todos os sonhos em sono, de um ano novo a começar, findado o velho há algumas horas com rojões coloridos, como se na fumaça da pólvora queimada, a tudo novo começasse, um ano inteiro pela frente, futuro que todos esperamos vencer e conseguir...

No meio do rio Sergipe, largo e tranquilo, porém forte a enfrentar as contras da barra, observei a cidade que dormia, que cansada de festejar, demoraria mais do que o comum para acordar...

Desejei a todos eles a boa sorte, à minha família a proteção, voltei-me para o caminho e finalmente iniciei a minha viagem. Até Pirambu tudo foi macio, providenciado pelo liso e novo asfalto, vento contra a refrescar, velocidade de cruzeiro em torno dos 18 quilômetros por hora, num plano que mal subia, mal descia... O parque eólico a lembrar os grandes moinhos, também parecia ter a calma do ano novo que se iniciava, em elegantes revoluções gerando energia...

A ponte que anunciava a entrada de Pirambu, ainda nos trazia os sons de festa atravessando a manhã daqueles mais afoitos que, apesar do dia já brilhante e quente de verão, mesmo assim ainda enxergavam noite... Parei por instantes a mirar os belos barcos coloridos, todos de folga, bebi uns goles d'água e segui, afinal havia vencido apenas um quarto da jornada daquele dia.

Montei e dei leve impulso na minha amiga, que agora descia a outra metade do arco que a ponte apresentava, suave a cantar a música dos biscoitos dos pneus, que conversam com nossos espíritos, inflam nossas imaginações, apertam-nos os corações em rebeldes aventuras que somente poucos conseguem entender, pois que enquanto muitos dormiam, eu suava e fazia força, apenas para sentir os ventos, os cheiros das terras, o sal que vez ou outra teima em adentrar pelos lábios...

Embriagado pelas sensações, senti a bici também embriagada a dançar sob minha bunda; pneu furado... Como piloto de aeronaves, sejam elas quais forem, nossas sensibilidades situam-se em nossas bundas; são elas quem dão os primeiros sinais, seja lá do que for insustentável...

Parei, xinguei um pequeno nome feio, daqueles quando damos uma topada, olhei para um lado, olhei para o outro, nenhuma sombra... Que vá no sol mesmo, afinal já estamos nele há um bom tempo. Apenas troquei a câmara furada, pois estava num local feioso e apertado, carros passando próximos demais de mim, a pesar a dúvida se todos eles estavam sãos ou alcoólicos...

Montei tudo, passei varredura a ver se não havia esquecido nada pelo chão, e dei início novamente ao meu caminho, Solo, mas bem acompanhado por Deus; renovei minhas preces, agradecendo por ter dado conta do pequeno problema...

Em pouco tempo chegava na entrada para a Lagoa Redonda, onde parei sob a sombra da palma do coqueiro, bebi água e fui interpelado pelo casal que, de motocicleta, tentava chegar à Lagoa Redonda. Confesso que cheguei a sentir inveja dos dois, pois que se minha esposa pedalasse, estaríamos agora, os dois, a festejar o que aquele casal pretendia. Sorriram-me e se foram. Bebi um pouco de água e comecei minha gostosa ladeira, a primeira do dia, lá em cima, o divisor das coisas, fáceis, das difíceis...
Povoado Santa Isabel

Embrenhei pelo caminho de terra, já cheio de costelas de vaca, quando nossas almas acordam e nos xingam pela trepidação. A partir dali, até quase Brejo Grande, seriam aquelas ondas contínuas como pedras lançadas n'água, areia frouxa e seixo rolado, aquela areia lavada de fundo de rio, que não tem liga...

O dia estava muito quente, e a pesar, a tentativa em nos dobrar as têmperas, nada pelo caminho a nos aplacar a sede e a fome; é um caminho, de certa forma deserto... A água, no início congelada, agora estava morna... No povoado Santa Isabel, já meio tonto e enxergando as coisas cinzentas, parei e sentei num alpendre cheio de boa sombra, quando banhei com água dum balde, cabeça e nuca, lavei balaclava e bandana... Seu Manoel Constantino havia me fornecido bom balde d'água fresca, e por quase uma hora e meia, pequei pelo sono, exausto, sentado ali enquanto lá fora o tempo passava e cobrava de todos, simpatias e empatias, lutas e derrotas. Cá eu dava um tempo e descobria que cerca de 35 quilômetros me separavam do destino programado, deles, cerca de 15 por asfalto...

Acordei com uma bonita moça a pedir ao Seu Manoel Constantino, 3 Reais de pinga, um litro que abasteceria os cantares e sorrisos dos tantos já ébrios, estendendo a festa. Arrumei-me, apertei as mãos de meu anfitrião, desejei-lhe um bom ano e parti, cheio de novas energias para chegar em Brejo Grande como se fosse um alienígena, todo vermelho queimado do sol, todo avermelhado pintado pela argila que colou em minhas roupas, não sem antes ter passado por pedaços do Paraíso, inalcançáveis naquele dia...

Juro!, havia sido o meu pior dia, embora existissem mais três dias pela frente...

* * *


2/jan/2014 - Brejo Grande - Pontal do Coruripe

Acordei com a claridade que se intrometia frestas adentro, em provocação, alfinetando-me para levantar. Não há preguiça mais gostosa, falta de coragem mais vantajosa, quando acordamos meio quebrados, ainda cansados para uma nova batalha, ainda bem que mais leves conforme o planejado, pois por não haver encontrado vagas em Barra de São Miguel, obriguei-me a fazer escala em Pontal do Coruripe, cerca de 40 quilômetros a menos.

Querem saber o segredo da boa disposição? Um bom banho quente terminado gelado, que como toda boa eletricidade, nos dá choques pelo corpo inteiro. Abri a porta e encarei um verde brilhante do gramado bem vivo e sorridente, recém molhado pelo Edmilson, quem nos dá a dica do restaurante, do barco para a travessia, até do barco grande se você o quiser alugar para conhecer a foz. Tomei um café da manhã caprichado e cheguei a conversar com o dono de um desses barcos que transportam 25 a 30 pessoas; o dia certo ficaria para depois de minha volta, pois estava iniciando dali um pouquinho, meu segundo dia de pedal. Acordamos o preço e concordamos que conheceríamos a foz do rio São Francisco, o Farol inclinado na antiga cidade Cabeço, o almoço em Piaçabuçu, enfim, o tempo que fosse necessário para minha família curtir um bom domingo diferente.
Foto tirada no domingo seguinte ao
 da minha volta para casa

Informei a ele que já conhecia aquela foz, perguntando-lhe se o farol ainda estava lá.

- Está, e agora mais endireitado, pois voltou a ficar em terra firme novamente - respondeu-me...

Contou-me a história de que depois da construção da usina hidrelétrica de Xingó, o mar ganhou forças e invadiu a terra; primeiro reclamou os defuntos, depois, lentamente foi destruindo a cidade, assenhoreando-se de tudo. Foi dessa forma que o Farol foi parar no meio da água, mas, não há nada que Tempo não resolva, pois hoje o Farol, depois de inúmeras negociações, volta a reinar imponente, porém apagado, na antiga Cabeço que jamais voltará a brilhar...

Acertei as contas e fui para o atracadouro vizinho ao restaurante que por muito pouco, não me servia o jantar na noite anterior, quando pedi para conversar com a proprietária, explicando-lhe que havia pedalado naquele dia, mais de 100 quilômetros, e que se ela me preparasse apenas ovos com arroz, eu ficaria contente. Eram 7 horas de uma noite bem estrelada, ainda quente da terra que esfriava, meio desconfiada pelos meus cabelos brancos e com os tais dos 100 quilômetros, enfim abriu o cadeado do portão e deixou-me entrar, preparando-me 4 filés de frango grelhados, arroz, feijão tropeiro, farofa, vinagrete e batatas sauté; que a lição se fizesse entendida, pois dali em diante estaria por cidades pequenas, onde a vida costuma anoitecer mais cedo.

O sol estava firme e já alto, comum aqui pelo Nordeste, e centenas de sacas de arroz com casca eram derramadas para secar, em plena praça pública, pelo meio da rua, sinal de que o progresso pode chegar na velocidade que quiser, mas os costumes são enraizados...

Embarquei no pequeno barco de rabeta, motor de popa, hélice em ângulo pelo pronunciamento longo do tubo propulsor, porque os bancos de areia lá estão, visíveis e rasos...

Ao som do tó-tó-tó cadenciado, enfrentamos as marolas que vez ou outra nos lançavam suas águas bentas em gotas tímidas, encorajadas pelo vento, numa brincadeira de convidar. Enveredamos pelo meio de um canal, ilhas verdes pelo meio do grande rio, um corta-caminho a evitar uma longa volta até Piaçabuçu, 3 Reais e cinquenta centavos por cabeça. Em Piaçabuçu, já Alagoas, visitei a Igreja de São Francisco de Bórgia, singela e arejada, aberta em pleno dia de feira, afinal o ano já havia começado, o calendário também...

Desastrado verifiquei que não havia ligado o GPS durante a travessia, mas não fazia mal, pois depois eu colocaria um alfinete mostrando onde ele ficava, o canal...

A travessia havia me consumido bastante tempo, afinal o rio é largo, a rabeta é lenta, a sensação maravilhosa... Dez e dez da manhã partia em direção ao Pontal do Coruripe, certo de que não devemos forçar a barra quando estamos a lidar com a Natureza, afinal, abreviar aqueles quilômetros naquele dia, seria de divina providência, coisas que o meu Anjo da Guarda sempre oferece, e eu não recuso... Cerca das 11 e meia da manhã quente, chegava no trevo para o Pontal do Peba, exatos 15,5 quilômetros, onde eu deveria decidir entrar ou não, para conhecer e pedalar pela areia. Sabia que apenas 2 quilômetros me separavam do mar, e para lá enveredei; se a maré estivesse cheia, pelo menos almoçaria um saboroso peixe, um Dourado enorme que foi, embora eu me amarre na farofa, sempre deliciosa, ainda mais se molhadinha com o vinagrete...

Meio preguiçoso me despedi do Garçom, que fez questão de dar uma volta em minha bicicleta, aprovando e entusiasmando-se com a minha amiga macia cheia de carga. Todos vocês parecem muito bobos quando se preocupam com o peso que elas podem significar, embarcando na onda dos que lhes querem sempre vender o mais caro, o nome "leveza", esquecendo que são as pernas que fazem a grande diferença. Assim, marcas são para quem se acha granfino, para quem se acha "o cara", porém, pernas, são somente para quem as possuem, não importa quanto pese o conjunto, aliás, marcas esnobes só utilizam aqueles que não conseguem pedalar sozinhos...

A maré havia vazado e já começava a encher; eu tinha tempo, afinal o trecho seria pequeno até o ponto em que eu teria que retornar para o asfalto, por ironia, para Feliz Deserto. Areia linda cheia de rastros, mar em bigodes a quebrar insultando a terra, espumas transformando-se em maresia, vento salgado a nos brindar, sol às costas a dar um descanso, tudo à frente a nos convidar, mas por pouco tempo, como se pequena prova nos fosse dado a degustar, do que seria pedalar pela praia inteira do Carro Quebrado...

Uma e quinze da tarde abandonava o paraíso e retornava ao inferno do asfalto, mais quente, mais barulhento, mais perigoso, sem acostamento, mais estressante sem graça, onde os pneus parecem concordar em ficar silenciosos, até eles mesmos não aprovando, mas o progresso chega e a ele não podemos evitar, pois ele vem em benefício de muita gente que ali não passeia, mas vive e labuta, sua ganhando a vida...

Dali em diante seria a mesmice da longa tripa acinzentada, cortada o tempo inteiro pelas pressas de pneus que nos gritam seus ultrajes, arrogantes plantados forçando os chãos, senhores dos asfaltos e dos roncos... Vez ou outra, como a acalentar, o paraíso se mostrava dizendo que não estava longe; ficaria para outra vez...

Carrão, carreco, fulerage, tudo me ultrapassava, e me xingava por eu andar tão lento... Pressa tem quem não tem tempo, mas o que o tempo para mim significava, afinal não estava a fazer o que gostava? Ranger, minha gente, escutar cada elo da corrente a transmitir sua força, sua canção de avançar à frente, sempre, não importando os metros que por baixo dela passem, esse é o Espírito da Bicicleta que nos habita, e que nos empurra para as grandes subidas, para as grandes vencidas, onde a conversa é sempre nossa...

Vencer os outros é muito fácil, porém vencer a nós mesmos é bem diferente... Olhando meu traçado pelo GPS, consigo ver minhas fraquezas, momentos em que paro procurando paz, procurando descanso, procurando bom batimento cardíaco, procurando aplacar a sede que não passa, que a água morna apenas incha na barriga, a primeira urina não aparece... Olho meu traçado e vejo desconexos, pontos separados dos pontos que o satélite marca, momentos em que buscamos o real, o saber onde estamos, para onde vamos, o porquê fomos...

Dizem que a informação é poder, e por certo ela é importante, pois por ela nos baseamos e decidimos. Perguntei antes de Barreiras; não dava para atravessar de barco, então dei uma grande volta para chegar em Pontal do Coruripe, e cheguei, não sem antes pedalar junto com um novo amigo, um senhor que carregava enorme tralha na garupa de sua bicicleta, sacos enormes cheios de material reciclável, que o vento, por vezes, o tirava do bom equilíbrio.

Ultrapassando-o, senti que ele mais apertou e o deixei ultrapassar-me. Acompanhei-o de perto por um longo e interminável tempo, mas não poderia ultrapassá-lo, matando um dia em que ele venceu um sujeito vestido diferente numa bicicleta bacana. Entabulamos conversa e seguimos juntos por vários quilômetros, até que ele pareceu entrar numa estrada de chão e segui então livre e cheio de pressa por chegar, mas o que eu não sabia, era que ele havia pegado um corta-caminho pelo canavial, esperando-me cheio de moral mais à frente, olhando a bicicleta dele como se ela estivesse com algum defeito, no que parei, perguntei sobre o problema, ele respondendo que ela fazia sempre aquilo com ele, mas que daquele ponto em diante, seria só descida até Pontal do Coruripe.

Era ele a me liberar de sua companhia, a ficar com sua vida atribulada, enquanto que na minha eu apenas passeava... Apertei-lhe a mão e lhe desejei um feliz ano novo, lembrando agora que nem sabemos os nomes um do outro, mas que demorará bastante tempo até que nos esqueçamos um do outro...

Dia ainda claro e ensolarado, cheguei em Pontal do Coruripe, onde a maré batia nos muros da cidade, de leve, macia, arrecifes amortecendo a força da maré ao longe, tornando a cidade num recanto privilegiado dos mares, como se um pirata eu fosse, aportando numa bela baía cheia de prendas...

Tomei um banho, lavei minha roupa, saí para jantar, e bombas e rojões ecoaram por muito tempo pela cidade, pois acercava-se a festa de Nosso Senhor Jesus dos Navegantes, momento em que os vários carros de som amainaram suas potências, permitindo que a Fé, somente ela, aconchegasse a todos que na Fé acreditassem

Jantei gostoso ao som de grandes bombas que explodiam, céu acima daquele que almejamos, porque somos apenas pedintes, de coisas boas, de boas proteções, de bons sucessos...

Dormi, pois que o cansaço falava mais alto, não importa quais sonhos nos persigam, se bem ou mal amados, porque quando o corpo reclama, a mente recua, e quando ela dá o passo atrás, apenas a mecânica, ou a reflexão, costumam atuar...

O galo não cantou, mas acordei... Verão, tempo em que o sol reina, logo cortando a madrugada...

Novamente o banho me separava dum belo dia, não tão belo, mas inesquecível...

* * *

3/jan/2014 - Pontal do Coruripe - Praia da Sereia em Riacho Doce

Sol forte novamente, sem nuvens, vento contra, 8 e vinte da manhã pegava meu caminho, que dessa vez seria por terra até a Lagoa do Pau, onde não existe nenhuma lagoa...

Caminho arenoso com argila, durinho me conduziu paralelo à praia azul, por entre as sombras do coqueiral. Numa encruzilhada perguntei onde ficava Lagoa do Pau, no que me informaram que eu deveria entrar pelo portal do condomínio murado, apenas para dar uma volta e sair no mesmo lugar onde havia feito a pergunta, mas são as descobertas que nos fazem rir, os micos que pagamos com bom prazer. Seguindo mais um pouco, saía no asfalto da rodovia, nos barulhos que nos estragam as ouças, sempre os mesmos, apressados...

Uma entrada me fez psiu e atendi ao seu chamado, como sempre faço quando algo me parece dizer o que fazer... Seguindo minha intuição, em 200 metros cheguei numa linda praia do paraíso, triste maré cheia a mostrar-me apenas areias frouxas para pedalar, mas ali eu sabia que teria que seguir pelo asfalto, pois dois belos rios me impediriam de passar.

Respirei a brisa gostosa e dei meia volta, avistando a primeira subida do dia por volta de meu décimo quilômetro, parecendo avisar-me que a moleza acabaria tão logo chegasse no meu quilômetro 16, quase Poxim. Até o Mirante do Gunga, seriam todas parecidas, até piores...

Dali até o Mirante do Gunga, 32 quilômetros para ser exato, segui por um tobogã horizontal, uma onda senoidal interminável, descendo, subindo, subindo, descendo, quando raros foram os 100 ou 200 metros pelo topo em que pedalava pelo plano, para novamente começar a descer, para novamente começar a subir, até que a paciência transbordasse em fúria pela aviltante e medíocre velocidade média, pela água que já avisava estar acabando, pelo infeliz deserto onde você não encontra nada, a não ser canavial de um lado, canavial do outro, canavial nos ambos lados. Se pedalar contra o vento já é uma grande ladeira, subir a ladeira com vento contra, é desanimador, a ponto de me fazer odiar todas aquelas descidas...

Se eu achava que o meu primeiro dia havia sido difícil, aquele dia provaria que as coisas sempre podem piorar. Faltavam 5 minutos para a uma da tarde, quando finalmente cheguei no Mirante do Gunga, belíssima visão de todas as pazes, dos azuis do mar e céu que se unem, da turquesa ímpar em que se espraia a Barra de São Miguel, como se miragem fosse a acalmar meus fogos íntimos, sedento e faminto...

Maceió já se via como bom oásis, e dela, mais 15 quilômetros, seria o descanso da Praia da Sereia...

Bebi três cocos gelados, quase um atrás do outro, meu único isotônico a produzir milagres, meu soro ingerido pela garganta ávida e já ressecada. Pedi uma porção de isca de peixe, porque na barriga já não cabia mais nada, descansei, recuperei a valentia, o otimismo, lavei bandana, testeira, balaclava, luvas, quase que tomo banho na pia... Recomposto, apreciei uma gostosa descida, agora já dolorido a experimentar posições sobre a sela, até que a própria dita também novamente esquentasse.

Não foi difícil arrumar desculpas para parar na ponte sobre a Lagoa do Roteiro, fotografando praias incríveis, porém reparando na longa subida que além dela já começava. Pensei que todo aquele inferno iria recomeçar, e que não havia jeito dele fugir, mas lá no topo descobri que seria a última; não havia sido abandonado...

Maceió foi fácil de chegar, cocadas e suspiros a nos encherem a boca, proibidos agora, mas na volta eu iria à forra; o sol já começava a deitar...

Fotografei uma placa interessante, porém elitista, pois que referia-se somente aos ciclistas em treinamento; e quanto a nós cicloturistas?, quanto aos tantos que devem suas mobilidades à magricela..?

Enveredei por uma ciclovia, tranquila no início, infernal quando cheguei no quente da orla, quando senti-me como intruso naquilo que havia sido construído para as bicicletas, a abandonando e pedalando por entre os carros. O sol já havia deitado e agora meus piscas todos piscavam, quando cheguei na AL-101, já noitinha, trânsito de fazer inveja à avenida Brasil, e quase não havia acostamento, mas fui respeitado; apenas um, talvez um coitado atrás de sua arma predileta, deu-me um tranca, de leve mas não necessário.

Anotem bem! Não só das preces me vali, mas também do meu espelho retrovisor, que avisava quando podia abrir, que avisava quando devia espremer-me. A rua é de todos, principalmente dos mais fortes, principalmente dos que não se machucam.

Não tentem morrer com a razão; ela de nada adiantará para vocês, com sete palmos de terra suja por cima...

Já não conseguia ver o hodômetro, a quilometragem, apenas esperava pela tão sonhada ponte que poucos metros depois me apresentaria a seta para a Praia da Sereia; juro que nunca passei por tantas pontes... A cada uma, vencida, uma decepção em seguida, até que a cabrunca se me apresentou, muito alegre deparei com a placa mais bonita do dia, à direita, descendo por uma pequena estradinha de chão. Estava em casa, graças a Deus, são e salvo, faltando 15 minutos para as 7 da noite; até o GPS indicava Bateria Fraca...

Pedalar é muito gostoso, chegar nem sempre é bom, mas vez ou outra compensa... Minhas coxas estavam tensas e quentes, panturrilhas doloridas, unha do dedão escurecida, avisando que vai cair, brotoejas pelo corpo inteiro, temperatura do corpo acima do normal.

Nesse dia nada lavei; nesse dia só lavaria o corpo e a alma, e suando saí do chuveiro. O Luca, italiano dono da pousada, logo descobriu que eu gostava de um bom vinho seco, apresentando-me um bem saboroso, que sorvi como se aquele fosse o último copo. Brincando, desafiou-me a descobrir sua procedência. Argentino não era, uruguaio tampouco, da serra gaúcha menos ainda, então sobrava apenas o Chile, mas o nome era Botticelli, italiano; estava difícil... Virou então as costas da garrafa e mostrou-me ser do Vale do São Francisco, esse nosso grande rio que ultrajado, continua vencendo e apresentando vida ao nosso Nordeste.

Bebemos, conversamos nossas histórias enquanto sua esposa preparava um delicioso jantar, pronto quase às dez horas da noite, cheiro de alho refogado a nos enfeitiçar...

* * *

4/jan/2014 - Praia da Sereia em Riacho Doce - Praia de Peroba (1,5 km da divisa de Alagoas com Pernambuco)

Acordei com os barulhos do dia, nem seis horas da manhã e o sol já bem levantado a reinar. Virei para o outro lado mas os barulhos não davam trégua; já acordado, o jeito era levantar... Espreguicei-me, olhei para a unha roxa, pensei na porcaria que seria lidar com ela, enfim levantei dolorido, abri o chuveiro e a água forte me ajuizou...

Sabia que o café da manhã seria somente a partir das 7 e meia, então fui adiantando nos alforjes, verificando corrente, pneus, novamente a unha, dedos anelares e mindinhos prometendo dormência. Terminando o que podia terminar, fui tentar uma xícara de café forte amargo. As sombras convidavam para uma rede a balançar, o vento soprando suas varandas trabalhadas, passarinhos por ali em algum lugar...

Consegui meu café amargo e sentei à mesa, bebericando-o com calma, boa meditação a observar as danças das tantas folhas quase negras, das verdes que lá em cima iam e vinham em leve balanço ao som da brisa...

Os cheiros da cozinha vieram perturbar, o barulho do liquidificador a se intrometer, copos e xícaras em conversas estranhas sobre a mesma bandeja metálica, talheres tilintando, pratos um por cima dos outros, enfim, tudo o que dali a pouco utilizaria em meu desjejum. Perguntado se gostaria de alguma coisa especial, respondi que sim: dois ovos mexidos...

Tomei meu café, fui para o quarto e reparei no espelho: estava vermelho, lábios rachados descascando, barbado, olhos preguiçosos mas muito vivo e leve da noite bem dormida e descansada; só a casca estava grossa...

Parti para o que seria o meu dia mais bonito, nem tanto assim pelo final, também já noite, mas isso ficará para eu contar lá no final.

Tomando a direção da praia, descobri que a maré estava alta, mas as piscinas naturais ainda estavam visíveis; a Sereia dominando a tudo e a todos.

Ainda tentei pedalar, mas levei uma queda boba quando o pneu dianteiro enterrou na areia molhada frouxa. Não brigando com os Elementos, que sabem sempre o que estão fazendo, peguei a direção do asfalto e por ele segui até a entrada da praia de Paripueira.

Praia do Carro Quebrado
Mulher Pescadora puxando Arrastão
Estava cansado de tanta mesmice de andar por onde não acontece nada, onde tudo se repete, novamente obedecendo minha voz interior; parei num pequeno trevo pouco antes de Paripueira, segui por aquela entrada e pedalei diferente, agora com a maré baixando, a praia inteira para mim e para tantos que dela saboreavam, porém meu próprio Roteiro avisava que deveria retornar ao asfalto, por conta dos rios que não conseguiria atravessar, e aquilo que estava gostoso logo terminou com a realidade de ter que voltar para rodovia novamente, por ela seguindo até a Barra de Santo Antonio, não sem antes passar por Santa Luzia.

Praia do Carro Quebrado
Crianças puxando o Arrastão
Lembro que parei numa sombra pouco antes de atravessar a ponte para a Ilha da Croa, quando um Senhor bem idoso sentado num daqueles bancos, perguntou de onde eu vinha. Pareceu sonhar quando informei que de Aracaju, ou não entender por não determinar a posição de minha partida, no entanto desejando-me um bom dia e uma boa viagem. Agradeci e reparei naquilo que talvez vocês ainda não tenham reparado: fazemos parte da paisagem, as pessoas, não importa qual cidade seja, importam-se conosco, preocupam-se conosco, gostam à primeira vista de todos nós, querem nos ajudar, querem conosco participar...

Seria a bicicleta?, seríamos nós a eles, pacatos malucos?, seríamos o sonho que cada um já terá sonhado?

Se você é um Cicloturista, você tem essa responsabilidade; você é exemplo, você é especial, portanto comporte-se à altura, não estrague a imagem que bem fazem de você...

Atravessei a ponte e novos amigos me chamaram; pareciam adivinhar minha dúvida...

- Pode seguir direto por essa rua e pedalar na praia inteira, porque a maré tá baixa...

Meus olhos brilharam, porque eu estava na Praia do Carro Quebrado, com suas rochas e falésias, penhascos coloridos contrastando com o azul do mar que nem onda fazia, pois os arrecifes assim providenciavam a tranquilidade da praia.

Agradeci aos novos amigos espontâneos e segui confiante, na curta ruela que me desembocaria diretamente na praia, um mundo imenso à minha esquerda a ser vencido, a ser pedalado e fotografado.

Confiante em minha boa estrela, não titubeei, logo me vendo pedalando a vencer a areia dura e molhada.

Desculpem por ser repetitivo, mas chamamos a atenção...; crianças saíam da água, pais nos mostravam a elas, a imagem da própria aventura sendo apontada por quem nos vê paramentados com nossa própria casa à garupa, viajando livres por meio dos músculos, conhecendo lindos lugares, Natureza somente nossa...

Por certo chegamos a despertar invejas, mas pouco sabem que é tão fácil, tão simples pegarmos nossas amigas e sairmos, suando conquistando sonhos, paisagens, sentimentos, coisas que só nós entendemos a encherem nossas almas de felicidades...

Praia do Carro Quebrado, nome sugestivo... Particularmente, creio que algum casal aventurou-se a namorar num local remoto... Aí a maré encheu e o carro encalhou..., deixando uma grande história nos bastidores de quem a viveu...

O carro quebrou, enferrujou e hoje tentam lhe copiar a saga, instalando sobre cavaletes, velhos fuscas enferrujados...

Praia do Carro Quebrado, ou qual nome vocês preferirem, é linda e imensa, conflitos da Natureza a se derreterem à nossa frente, cores pujantes a nos tirarem ares, rochas esculpidas a cinzel pelo mar que todos os dias vem reclamar sua posse, vida a se agarrar no áspero sal inimigo do verde...

Meu passeio estava completo, mas eu precisava chegar, afinal chegar significa o fim, e o fim ainda estava longe, bem longe...

Praia de rocha, o mar escultor...
Chamem do que vocês quiserem chamar, aventura ou passeio, mas lembrem-se de que nossos Anjos confabulam... Chegava eu na entrada da pequena trilha que me levaria por entre coqueiros, ao rio Camaragibe. Ao mesmo tempo em que eu a adentrava, um casal, Julie e David, ambos de São Paulo, preparava-se para seguir pela areia por onde eu tinha vindo.
Curral de peixes

Apertamo-nos as mãos, conversamos um pouco e nos despedimos; havia muito chão ainda para todos nós...

Logo chegava às margens do belo rio, calmo e convidativo onde duas pequenas balsas embarcavam quadriciclos e um pequeno bugue. Perguntei se havia vaga para mais um e embarquei; a travessia foi suave, sem ondas, sem balanços, apenas o vento curtindo nosso breve descanso.

Paguei os R$ 3,50 e outra pequena trilha já me aguardava também por entre o coqueiral, levando-me até o início do povoado Barra de Camaragibe, onde uma senhora gentil e simpática, de avental, me prometeu um peixe frito, pirão, arroz e uma salada vinagrete em tempo rápido, mas antes de me dar as costas para cuidar do meu pedido, confortou-me que a divisa com Pernambuco estava logo ali, que eu não me preocupasse...

Por certo, por me falar daquele jeito, ela não pedalava, mas cozinhava com muita arte...

Quase duas da tarde quando segui meu rumo, agora pedalando pela Rota Ecológica, e, em pouco mais de meia hora passava por São Miguel dos Milagres, onde comi dois sorvetes de limão. Protegido, agora o vento me dava uma trégua... Passei por Porto da Rua, Tatuamunha, Lajes, finalmente chegando em Porto de Pedras para atravessar o rio Manguaba de balsa; olhei o relógio e marcava 15 e quarenta, mais um dia em que chegaria em meu destino já de noite...

Estava próximo de Barreira do Boqueirão, quando abandonamos os paralelepípedos e passamos a pedalar em estrada de chão arenosa, onde fica a Praia das Barreiras, o Restaurante Bicas, por conta de duas bicas que jorram água doce morro abaixo, uma para as mulheres, a outra para os homens, tudo separado. Chegar em Barreira do Boqueirão e em Japaratinga, saímos do caminho plano e começamos a subir pequenos morros. Em Japaratinga, uma hora depois de sair da balsa, fiz breve parada e bebi dois cocos verdes num quiosque no alto do morro; a sede apertava, mas a vista era linda...

Olhei o relógio e ele marcava 16 e quarenta; urgia...

Montei e mandei ver, agora aditivado com água de coco. Pouquinho antes da ponte sobre o rio Maragogi, meu filho buzinava para mim e parava protegido bem na entrada do Salinas de Maragogi Resort. Igual como havia acontecido em meu último dia nessa mesma época, em janeiro de 2013, quando próximo de Lençóis na Chapada Diamantina, novamente ele me encontrava próximo do fim. Desembaracei-me dos alforjes, de uma das caramanholas já vazia, dos óculos escuros, da balaclava e fiquei mais leve

Agora, despido dos alforjes, bem mais leve, não ao ponto de começar a voar, mas de, mais livre, andar mais depressa... Olhei o relógio e ele me gritava 17 e vinte e um.

Entreguei também a máquina fotográfica; não havia mais tempo para fotografias...

Enquanto ele arrumava minha tralha na Saveiro, pus as pernas em movimento, atravessando a ponte e enfrentando uma longa subida que me fez perder preciosos minutos de dia claro; faltavam ainda 15 longos quilômetros, mais uma hora de pedal...

Exatamente às 18 e trinta, já noite, depois de ter pedalado 98,2 quilômetros, sujo, suado e cansado, descobria que o dono da Pousada Praia de Peroba, havia alugado o quarto para mim reservado... Guardem bem esse nome, pois amanhã poderá ser com vocês...

Sem teto, com um baita problema a resolver, o de arranjar vaga num lugar movimentadíssimo, arrumei bom lugar para a minha amiga, tão cansada quanto eu, na caçamba larga do veículo, partindo dali derrotado pela falta de palavra, pela falta de compromisso, pela falta de profissionalismo, mas nossos Anjos da Guarda nos protegem. Ali, quando me confundi com o nome, no Peroba Ville Hotel, alagoanos nos bem receberam, nos bem deram acolhida num hotel cheio que, por muito pouco mesmo, não conseguíamos vaga...

Jantamos uma bela Pescada, comprei um bom vinho e descansei...

Haviam sido 4 dias, sozinho, 373,7 quilômetros, quase todos contra o vento...

Haviam sido 4 dias de muitas experiências, algumas não muito boas pelo caminho, mas que ajudaram a temperar, assim como a boa pimenta também faz, não ao ponto de fazer arder, mas de fazer ver que problemas são reais e possíveis de solução, de coragens e otimismos que só nós conseguimos entender, sem heroísmos, sem sofrimentos, mas numa picante aceleração do tempo em que tudo acaba por acontecer...

Não, isso não é competição... Tampouco é alguma prova, embora você possa sentir o Tempo a conversar consigo, sua mente a experimentar a liberdade, nada de regras onde a regra número um, é deixar-se levar onde a intuição assim remeter; esse é o espírito da coisa, sem rigidez na hora da saída, sem reclamações na hora da chegada, mas uma vida inteira entre um e outro, a cada dia que durar tal farra...

Se você não tem bagageiro nem alforjes, está na hora de providenciar...

* * *