A bicicleta, uma integração...

Ela é solitária,

cada um na sua...

Quando juntas, porém,

em conversa, não se sua...


A bicicleta, uma integração...
(Paulo R. Boblitz - jul/2011)

Ontem me encontrei com o Ricardo Hsu. Fazia tempo que não pedalávamos juntos, em torno de 1 ano e meio atrás, quando trilhamos sobre Bonito e Serra Negra, em Pernambuco.

Estava ele com um grupo novo de ciclistas, o Vida de Bike.

Em se tratando do Hsu, cheguei perto dele e, preocupado e discreto, perguntei:

- E aí? É tudo fera?

- Não, não... A gente só anda a 23 ou 25 quilômetros por hora...

- Mas isso não é treino para você..! - exclamei.

Ele me sorriu e disse que já havia treinado à tarde. Aquilo ali era só para relaxar...

Olhei em volta e a turma continuava crescendo, bonita porque saudável, porque bicicleta tem dessas coisas: fortalece os ânimos, tonifica os músculos, produz saúde e mais vida. Uma chuva fina começava a nos intimidar, mas o otimismo nos dizia que logo passaria. Nos escondemos debaixo das árvores e ela logo foi embora.

Alguém deu um apito longo e partimos. Em pouco tempo a chuva retornava e nos atacava com vigor e vento forte a produzir um gostoso frio. Debandou um bocado de gente, mas mesmo assim o grupo continuou grande.

Pegamos a avenida Beira Mar até encontrarmos a ciclovia, onde verificamos mais algumas baixas, gente iniciante que não conseguia nos acompanhar. Esperamos um pouco e continuamos, ainda o grupo com muita gente. Entramos pela avenida João Bebe Água e seguimos até o bairro Eduardo Gomes, onde paramos num mercadinho, para os que quisessem água ou algum alimento.

Enquanto não chegávamos no mercadinho, numa bonita ladeira empinada, seguida de mais outra, alguém mais acima numa escadaria, talvez mais alegre pelo efeito etílico, nos começou a gritar:

- Viva a cultura..! Viva a cultura..! Viva a cultura..!

Quase que colocava os pés no chão, pois subir ladeira e rir ao mesmo tempo, só para quem tem bastante gás...

Já no mercadinho, um pouco afastado, fiquei observando a turma jovem a rodear o Ricardo Hsu, quarentão vencedor, campeão de muitas provas, disciplinado ciclista a motivar muita meninada. Estava ele a explicar algumas coisas aos tantos ouvidos atentos, que de onde eu estava, não conseguia ouvir.

Há cerca de 6 anos atrás, sofreu um acidente no Tendão de Aquiles, recuperando-se com uma bicicleta. Passou a pedalar onde todos os iniciantes começam, no Aracaju Pedal Livre, e desde esse dia, a bicicleta lhe modificou a vida; hoje é exemplo para muita gente...

Já de folga da garotada, me viu e se aproximou com o Roberto, o Márcio e a Darlene, os organizadores do Vida de Bike; nos apresentou e conversamos sobre muitos projetos, um deles em conjunto com o grupo Turma da Bike Lagarto, da cidade de Lagarto, que já chegou à marca dos 400 ciclistas num só passeio, gente alegre, entusiasmada, também com muitos planos pela frente, e logo me convidaram para uma trilha noturna, da cidade de Lagarto até a Fazenda Bonfim, onde existe uma estátua de Cristo no pico do morro.

Topei, já imaginando tanta gente piscando no meio da noite, como vaga-lumes vermelhos...

Quinta-feira passada, 21 de julho, a Turma da Bike Lagarto veio até Aracaju, cerca de 50 deles, abrilhantar o passeio do Vida de Bike, todos fazendo uma bonita festa. Foi um pagamento à visita que o Vida de Bike fez lá na cidade de Lagarto, dívida boa de se pagar...

Hoje pedalei com o Vovô, um sujeito sensacional que pedala e conversa, pelo meio dando carão...

Amanhã é quinta-feira e vou me encontrar com outro sujeito, também com quem não pedalo há bastante tempo, o Araujo, aquele que nos toca a subir ladeiras até a gente cansar ou pedir penico...

Já estou ouvindo ele me cobrando:

- Vamo Blitz! Vamo Blitz!

* * *

Trilhas de Paulo Afonso - parte iii de iii (Passeio em Paulo Afonso)

Água mole em pedra dura,

mais parece uma tortura,

vai, volteia,

esperneia,

vem, mergulha, até que fura...


Trilhas de Paulo Afonso - parte iii de iii (Passeio em Paulo Afonso)
(Paulo R. Boblitz - jul/2011)

Paulo Afonso amanheceu chovendo, num domingo bastante preguiçoso, como todo domingo, com chuva ou sem chuva, parece ser.

Oito da manhã e eu ainda estava na cama. Pelo corredor me chegavam os barulhos do dia que começava. Tomei meu banho e fui para o meu café, sempre complicado pelas tantas coisas que os hotéis nos oferecem. Não abusei...

Já estavam arrumando as bicicletas no reboque. Fui até lá e conferi a minha, bem presa entre mais algumas, sendo lavada no andar de cima, das poeiras que conquistou.

Pedalamos nos dias 8 e 9 de julho, na sexta feriado e no sábado, por 138,5 km, em 13 horas e meia. Conquistamos 2.035 metros em subidas, nada heróico, mas muito prazeroso, divertido, instrutivo, principalmente saudável, e isso só posso falar por mim, que por conta apenas do meu equipamento, queimei 6.923 calorias.

Com a fome que eu estava, com a sede que eu sentia, devo tê-las colocado todas para dentro, e mais um pouco, sem culpa, sem remorsos, pois que a cabeça é a que sempre leva a vantagem, a alma também, porque todos viramos poetas, mais amantes, mais solidários. Não há quem não descubra algo que nunca percebeu. Não há quem não se deixe levar pela emoção, ao ver uma vida em meio às pedras, e eu vi muitas, sorrisos em meio a fome, solidariedades em meio a tantas misérias.

Passeamos, nos divertimos andando pelos caminhos de nosso Pai, e nos comovemos a cada metro, porque não estamos com o espírito competitivo, onde só o ego se faz presente.

Passeamos, nos divertimos andando pelos caminhos do Criador, e vamos nos livrando de nossas maldades, nossos egoísmos, nossos poderes e pedestais.

Passeamos, nos divertimos, pedalando e fazendo força, em nenhum momento sofrendo, pois que quem quer sofrer arranja outras atividades, solitárias.

Passeamos, nos divertimos, somos bem acolhidos, pois em todos se vêem os exemplos, principalmente das vontades, das virtudes que acabam transparecendo, pois que nenhum espelho gosta de cicloturista.

Passeamos, nos divertimos, voltamos para casa mais leves, não das gorduras e suores, mas dos humores que escorrem para a terra.

Esse é o segredo que pouca gente enxerga, às vezes até montados em bicicletas bacanas, tecnologias de ponta, leveza em equipamentos e acessórios, mas extremamente pesados em vaidades, em hipocrisias e conchavos.

Passeamos, nos divertimos...

Desatrelamos o reboque do ônibus e embarcamos; já passava das 10 e meia. Paramos para pegar o Guia, antigo empregado da CHESF, hoje aposentado, Seu Antônio, que com orgulho nos foi contando como tudo aquilo aconteceu, embargando a voz sempre que utilizava o pronome "nós", porque foram eles que fizeram...

O complexo de Paulo Afonso é enorme, porque tudo ali é gigantesco, a começar pela força descomunal do velho rio, que espuma, farfalha, assobia, explode, ronca, estremece, vaporiza, corrói, martela e dorme calmo sabendo esperar.

Já de longe ouvíamos as trombetas, água martelando a rocha, criando asas e voando como leve fumaça, formando o arco-íris, mostrando como o Sol pode ser belo.

Aquilo tudo um dia já foi livre. O homem chegou e conteve, aliou-se à Terra que há muito já não mais resistia, construiu paredões, instalou comportas, fez zunir turbinas, e acendeu as lâmpadas do Nordeste, roubando os brilhos que as estrelas nos lançavam, como chuvas especiais de prata. Hoje elas só piscam em lugares ermos.

De início as águas ficaram confusas, pois o homem veio com brocas, explodiu rochas, cavou túneis, gastou cimento adoidado, pintou tudo bonito, e elas pararam de correr. Mal sabiam que era temporário, apenas enquanto enchiam-se os reservatórios.

Quando enfim voltaram a deslizar, soaram as fanfarras, todas as matracas estalaram, as engrenagens se encaixaram, e o homem apertou o botão. Alegres brincando de escorregador, ao som de um grande baião, as águas partiram branquinhas no xaxado das espumas, pois o mar já estava com saudades, e tudo aquilo que em silêncio havia ficado, nas entranhas desnudadas sem mistérios, voltou a encher...

Até hoje é folguedo e de vez em quando o velho Chico toma os gorós em farra, época que enche e transborda, faz da roça um belo quadro, pinta tudo de verde, dá o bom bocado. Vem água de cima, de mais acima, vem água até do outro mundo...

E homem nenhum, nem terra nenhuma, consegue segurar, tanta água que dança, que rodopia e sai cabriolando pelos rochedos mais arrancando, lascas e pedras, porque água brilha, e por onde passa, deixa tudo lustroso...

Abrem-se as comportas, os trovões ecoam, soltam o capeta que sai em disparada para queimar nos cafundós, porque a hora é da piracema, da pororoca, do milho que no São João vai virar canjica e pipoca...

Velho Chico, que de velho não tem nada, tão jovem e já tão santo, São Francisco de todos, o rio mais amado, mais maltratado, mais cheio de vida do Brasil...

Velho Chico, você é o doce, você é o leite, o sal e o mel, o viço e o oásis.

São Francisco, o recheio do vale, o sonho molhado, do matuto e da terra seca...

* * *

Trilhas de Paulo Afonso - parte ii de iii (Tacaratu - Paulo Afonso)

Quem cansado, tem disposição?

Quem a pedalar, com amigos em comunhão...

Quem valente, não consegue a vitória?

Quem sem crença, se desfaz da emoção...

Eu consigo, vocês conseguem, todos nós conseguimos.

Porque é essa, a conjugação...


Trilhas de Paulo Afonso - parte ii de iii (Tacaratu - Paulo Afonso)
(Paulo R. Boblitz - jul/2011)

Tacaratu (serra de muitas pontas ou cabeças), amanhecia por entre o nevoeiro; naquele dia não choveria...

Daquele tempo ainda em que as terras brigavam com as águas, a névoa sentinela ainda se posta à noite para verificar os movimentos das montanhas, que podem crescer escondidas, mais água querendo conter...

Gostei do tempo nublado, água a nos proteger dos raios tórridos que nos ferem a pele. Gostei da brisa fria que soprava, carinho da Natureza aos que por ela gostam de percorrer. Gostei dos sorrisos das pessoas, que nos brindavam um belo dia como bendição.

A imponente igreja de Nossa Senhora da Saúde nos aguardava, com sua ocre cor diferente. Enquanto a admirava, escondendo Lampião dos nossos olhares, acampado na furna da serra do Cruzeiro, lugar difícil de se chegar, a senhora, adivinhando meus pensamentos, se aproximou e me informou:

- Foi pintada com leite...

Como a cor, também era a primeira vez que ouvia ser o leite, ingrediente na caiação.

Passei bom momento pedalando com aquele leite na cabeça, e acho que a velha senhora não exagerou. Leite contém gordura e muita água, e a cal há muito tempo é conhecida do homem, que já a utilizou com sebo de carneiro. Assim, o leite bem poderia ter participado na impermeabilização, substituindo a linhaça na mistura de cal e argila. Claro, eles devem ter adicionado argila, por isso, aquela cor...

Faltavam 20 minutos para as nove. Partimos, pois era preciso acabar de vencer a serra, uma subida de 160 metros em apenas 4,7 km, até alcançarmos a marca dos 671, já que havíamos partido da altitude 511. A serra do Cruzeiro, à nossa esquerda, nos espreitava, como deve ter vigiado as Volantes que buscaram um dia por Lampião.

Suas rochas, há muito fustigadas pelas águas, pareciam nos querer engolir com suas bocarras escancaradas, mas naquele dia estaríamos invencíveis. Logo descobriríamos o vento contra, a nos querer segurar.

- Como é o nome dele? - perguntei.

- Jegue... - respondeu o velho homem.

- Não, não! Quero saber qual o nome que o senhor o chama? - perguntei sorrindo.

- Roxinho... - novamente foram poucas as palavras.

- E o seu..?

- Pedro...

Pedi licença para fotografá-lo, demos-lhe um bom dia, e ele desejou que Deus nos acompanhasse. Partimos novamente agradecidos, mas logo as baforadas de nossas ventas, se fariam prevalecer.

São momentos mágicos, quando volteamos e ameaçamos a tudo aquilo descer, e nos pomos, os dois pés plantados no solo, as duas mãos nos punhos refreando a fera, a olhar aquilo tudo que já vencemos.

Não há espírito que resista, debaixo de uma pulsação que troa, ver todo aquele mundão ao longe, reconhecer que a vitória, quando sempre de si próprio, tem sabor e cheiro...

São bons momentos em que colocamos a respiração em dia, amainamos o sangue que nos esquenta o quengo, limpamos o suor que nos goteja em lágrimas...

Olhamos para cima e a curva esconde o cume. Adoro qualquer curva a me esconder o futuro, pois no tempo ali eu sou senhor, reconhecendo a cada metro, um porvir melhor, mais belo e magnífico.

Os cimos sempre nos apresentam mais desafios, mais futuros para conquistarmos...

Por isso, que chegar é triste...

Estávamos prestes a começar a descer, a despencar por 424 metros ladeira abaixo, tudo aquilo que no ano passado subimos, 11,6 km penosos. Seria uma descida de muitos recordes quebrados, loucuras mansas ao vermos a paisagem nos cortando, o vento nos cantarolando em uivos, o amor de todos nós em exalação, como meteoros riscando a montanha, que risonha, se estendia elegante.
Nove e meia da manhã, avistávamos o que o homem conseguiu fazer, aquilo que a Terra tanto tentou e não conseguiu: o lago de Itaparica. Em linha reta, Petrolândia submersa, onde os sinos dobram em certas noites, diz a lenda dos mais crédulos.

Um a um partiu em boa carreira, cada um com o seu boi na vaquejada, agarrá-lo pelo rabo e derrubá-lo, berros alvissareiros de euforia, adrenalina galopante, e me veio à mente um cubo preso, um jegue a nos amparar de lado, um bode com seus cornos a nos enfrentar - o asfalto era daqueles com muitas rugas, lixa aborrecida doida para ralar...

Nos reunimos lá em baixo e partimos piçarra adentro até às margens do majestoso lago. Ao longe, o telhado da velha igreja, lá onde os muitos pecados foram largados, os amores prometidos, as crianças salvas do Limbo...

Como guardião das crenças, aquele amontoado de barro cozido a proteger a água, da água que cai quando chove. Seus vitrais hoje filtram, a luz que colorida brinca, a encandear o peixe, a espalhar a boa nova, de que o dilúvio vai começar...

Nossa descida não foi espetacular. O vento forte nos freava, tentando nos plantar.

Visitada a Petrolândia debaixo d'água, de novo partimos, pois ainda nos faltavam 67 km. Até ali, havíamos pedalado apenas 17. O dia já marcava as 10 horas, com o sol impaciente a nos esquentar.

À nossa direita, aquele mundo d'água a nos querer reter. Talvez fosse a Petrolândia velha, disposta a conversar, mas daquelas conversas não entendíamos. O vento se aliou a elas e nos fustigou, nos tentou evaporar as forças como se estivéssemos num varal, mas tremeluzimos um a um, por meio da paisagem como miragens, até que paramos para o nosso banho, não no lugar combinado, mas pelas mulheres encontrado, logo depois da nova Petrolândia.

Cada um que foi chegando foi despojando, toda a tralha a incomodar, lançando-se às águas tépidas que há tanto nos aguardavam, sôfregas nos acolhendo com seus carinhos, porque água é vida, e vida é Deus.

Vento forte produzia ondas, oxigenava a todos, nos roubava os calores, nos produzia o frio, que à sombra nos protestava, de volta às águas nos mandando. Eram 11 e quinze...

Tempo calmo a calma chama, do pensar nos reclama, dos olhares nos incita à volta, do curioso nos faz lembrar, e começamos nas cores a reparar, lilás para lá, violeta para cá, rosa choque mais acolá, um casal ali, outro casal mais reservado, e perguntamos... - tínhamos ido parar num recanto gay, e começamos a nos olhar em nossas malhas apertadas, que o sujeito rude do sertão, creio que agora não tão bruto assim, diz ser coisa de boiola. E começamos a sorrir, nos mangando a nós, e pedimos, antes do cardápio, todas as cervejas bem geladas.

Almoçamos bode assado, e tilápia crestada bem crocante no fogão. Também não há nada igual à fome, que nos faz apreciar qualquer arroz, por mais insosso que ele seja. Na hora de pagar a conta um belo susto, que a barulhenta negociação tornou real, porque quando se pedala, a cerveja alimenta, não embebeda.

Novamente partimos, agora sob um sol mais forte, um vento raivoso. Eles descobriram que estávamos indo embora. Já eram 2 e dez da tarde...

Preguiçosos, começamos a pedalar num sobe e desce por entre as calhas, franjas do terreno que se elevava para longe das inundações. A cada descida o vento nos apertava os freios; a cada subida, o vento nos massacrava, mas era olhar de lado e as águas nos encorajavam, as cristas de cada subida nos prometiam, mais paisagens belas merecidas...

Serpenteamos junto com o rio, passamos pela represa da hidroelétrica Luiz Gonzaga, cruzamos com a entrada de Jatobá, atravessamos novamente o rio Moxotó, passamos pela estradinha que chegava na hidroelétrica Apolônio Sales, finalmente chegando naquele cruzamento onde tudo havia começado, no dia anterior.

Anoitecia. O sol já quase se escondia...

Dobramos à direita para Paulo Afonso, pedalamos mais um pouco e paramos para instalar lanternas e faróis, sinalizadores intermitentes a nos produzirem segurança. Passava um minuto das 17 e trinta...

Paulo Afonso ao longe já se acendia, iluminando-se para mais bonita varar a noite. O emaranhado de cabos de alta tensão sobre nossas cabeças nos avisava, que por ali o progresso fluía, vidas nasciam, mais amor se desenvolvia pelo trabalho que se conquistava com a energia.

O cansaço foi embora, pois o sabor da cidade se achegava com todos os seus cheiros. A noite se instalava...

Eram 17 horas e trinta e sete minutos, quando parei no meio da ponte metálica que atravessa o grande e profundo cânion do São Francisco, à minha direita a Usina número 4 da geração de Paulo Afonso. Tomei uns goles d'água enquanto apreciava aquele rio que vem distribuindo vida e alegria, História e histórias desde lá de baixo, ainda com muito chão a lavar pelo meio do sertão, até juntar-se às suas irmãs salgadas no paraíso do oceano Atlântico, que hora recua, hora avança, na valsa que dançam desde que o homem nem era nascido...

Por ironia, teríamos que ainda percorrer 12,7 km, numa longa volta, até chegarmos no ponto onde ficaríamos alojados, distante ali da ponte em linha reta, apenas 3 km.

Partimos outra vez, pois que lugar de descanso é na cama, não sobre uma bicicleta. Passava das 18 e vinte quando terminamos de cruzar a ponte em arco, adentrando pela ilha de Paulo Afonso, porque ela é cercada pelo velho Chico por todos os lados.

Finalmente, às 18 e trinta nossa trilha era terminada, à porta do nosso maravilhoso e espetacular hotel, pois que significava um delicioso banho, ar condicionado a nos roubar o fogo, a cama sempre macia nos convidando, lençóis brancos a combinarem com nossas almas, livres de qualquer pecado àquelas horas...

Foram 84,2 quilômetros num dia maravilhoso, porque vento e sol não nos incomodam, apenas apimentam no tempero. Gastamos 7 horas e dois minutos, alguns mais jovens e afoitos, menos disso. Subimos 917 metros no acumulado, um simples degrau nas conquistas da vida, daqueles tantos que vivemos subindo e descendo, sorrindo e chorando, amando e odiando...

Agora, do sono justo, nos separava a reconfortante pizza com alguns chopes pelo meio, mistura de ervas, massas e fornos, sorrisos e causos, algumas mentiras de ciclistas, e mais o andar de 5 quilômetros entre o ir e o voltar, encerrando o dia.

Um a um foi se recolhendo; era a hora do cansaço passear, quando ele aproveita e foge, para nunca mais voltar...

* * *

Trilhas de Paulo Afonso - parte i de iii (cruzamento de Paulo Afonso - Tacaratu)

Não é treino, talvez nem cicloturismo,

porque durante, ficamos abestados...

Não que seja por culpa nossa,

mas da força de vontade que,

sem desistir, nos faz, às vezes, esquecer.

Sol do Nordeste não queima; torra...


Trilhas de Paulo Afonso - parte i de iii (cruzamento de Paulo Afonso - Tacaratu)
(Paulo R. Boblitz - jul/2011)

Um dia o Brasil entrou em convulsão - romperam-se artérias, e o rio São Francisco foi uma delas...

Eu ainda não havia nascido...

Naquele tempo foi decidido que a vida seria irrigada aqui pelo lado de fora, pelo lado de cima, fazendo-a brotar e proliferar.

A serra da Canastra, lá em Minas Gerais, subiu bem alto até 1.200 metros, para lá de cima o velho Chico jorrar novinho, envelhecer ao longo do caminho, e morrer ao adentrar o mar...

O velho Chico então liberto, começou a correr alegre, a se espraiar a tudo xeretando. A Terra, rabugenta, irritou-se com tanta aguação, levantando lados, paredes, tentando aquela água toda reter...

Foi tudo em vão... O velho Chico a tudo rompeu, cavou, explodiu, desviou, até que monumentais paredões em Pernambuco, o obrigaram a dobrar, lançando-o nos finais caminhos, entre Sergipe e Alagoas...

Foi uma noite mal dormida, balançando pela estrada até chegarmos no meio de um nada, cruzamento entre duas rodovias. Descemos preguiçosos, nos espreguiçamos, aguardamos o nosso café da manhã ser chegado, e partimos todos com o vigor renovado; era o rio a correr mais abaixo, e todos nós pedalando mais em cima...
Faltavam 10 minutos para as oito - o Sol já ia alto...

Alguém deu a idéia e a BR-423 abandonamos, apenas para enfrentarmos mandacarus e xiquexiques, como vaqueiros atrás do boi fujão. Logo alguém caía e um pneu furava, porque a areia era frouxa escondendo espinhos... Pegamos a BR-110, atravessamos, já passando 5 minutos das nove, a divisa de Alagoas com Pernambuco, no rio Moxotó. Seguindo mais um pouco, entramos na estrada de chão para o povoado Volta do Moxotó.
O dia seria muito quente, descobriríamos logo cedo. No pequeno povoado, conhecemos a ponte metálica por onde passava o trem, segundo os mais antigos, construída a mando de Dom Pedro II, ainda hoje forte e imponente, aço grosso pontilhado de rebites. Há muito que o trem ali não passa a caminho de Petrolândia, hoje debaixo d'água no imenso lago de Itaparica, que só visitaríamos no dia seguinte, a caminho de Paulo Afonso. Visitamos a antiga Estação, onde a simpática responsável pelo museu nos informou ter sido o presidente Castelo Branco a desativar aquela rede.

Os males sempre andam com as coisas boas, e o que foi bom para todo o Nordeste, foi também o sacrifício da antiga Petrolândia com suas pinturas de milhares de anos, e a estagnação da Volta do Moxotó, hoje sobrevivente pela garra de sua gente, teimosa em fazer aquele rincão progredir. À sombra, a fotografar os amigos no vaivém sobre a ponte, escutava discreto som a reproduzir gostoso rock, do tipo progressivo, porque no sertão não têm apenas as famosas cabras Moxotós, paisagens secas, miséria e música sertaneja.

Doeu ver a moça a tentar fazer andar o pequenino trem de brinquedo, já gasto como tudo já era passado, pois que por ali, a interessar-se pela pequena História que sempre sorrindo conta, há muito também que ninguém passava - éramos um público de 28 pessoas, quem sabe um difícil recorde a ser quebrado...

Com humildade, característica dos povos que sofrem, desculpou-se pelo pequeno entrave, falou bem da própria gente, nos mostrou orgulhosa seus artefatos, palha e barro cozido, delicados bordados, mistura do índio com o homem branco, coisa que também o passado, tratou de fazer esquecer... Quanto tempo durará, até que outro forasteiro por ali circule..?

Faltavam 15 minutos para as onze - o Sol já estava quase a pino...

O caminho como o rio, também serpenteava a desviar os obstáculos, que um dia a Terra os levantou. Areia frouxa, vento parado, um sol destemido, um calor de fritar os ânimos - cada sombra tinha o seu valor...
Sons de chocalhos, caprinos saltando para os esconderijos, terra de gente de coragem, persistência e resistência - terra de bicho macho que enfrenta a Terra, ainda hoje revoltada contra as águas...

Caraibeiras ainda estava bastante longe, e o suor nem aparecia, pois secava antes do pingar, tamanha avidez do vento quente, seco a esturricar a nossa mente, amigo do sol a descamar a nossa pele, parentes do cansaço que nos tentava tirar a força, mas em pedal só desistimos quando não tem jeito, porque nossas delgadas jumentas que não zurram e nem empacam, teimosas como nós, onde o capacete vira chapéu de couro, a malha apertada em gibão, o guidão nas rédeas, e os pedais como as esporas, nos suportam sem reclamação - o calor que se esfole...

Pouco mais de duas horas depois, ouvíamos o Caldas preocupado nos sugerindo entrar no ônibus, nos apontando a triste subida para chegar em Tacaratu - 13 horas em ponto. Nos refrescamos um pouco, soltamos algumas pilhérias e partimos, afinal a marca dos 551 nos aguardava - tínhamos ainda, 184 metros em 4 quilômetros, uma bela rampa a quase 5 por cento...

Dali em diante era só descida, algumas subidinhas estragando a festa, e uma fome danada de arretada. Quando começamos a descer, descobrimos o Rei do Bode, com uma carcaça salgada secando à sombra. Seria o nosso jantar, acompanhado de macaxeira, arroz e farofa de cuscuz com feijão verde, frutos que só o sertão oferece... Também cantaríamos os Parabéns para a Estela, que fazia naquela trilha, mais um aniversário.

Tacaratu nos recebia... Duas e meia da tarde, 6 horas e meia de pedal, 54,2 quilômetros percorridos, 1.118 metros de subidas acumuladas.

Nem bem vi o que almocei. Só sei que eu estava como um rei - conversa pouca, comida farta e gostosa, muito saborosa...

Como um bando de cangaceiros, tomávamos posse da cidade...

* * *