Trilhas de Paulo Afonso - parte ii de iii (Tacaratu - Paulo Afonso)

Quem cansado, tem disposição?

Quem a pedalar, com amigos em comunhão...

Quem valente, não consegue a vitória?

Quem sem crença, se desfaz da emoção...

Eu consigo, vocês conseguem, todos nós conseguimos.

Porque é essa, a conjugação...


Trilhas de Paulo Afonso - parte ii de iii (Tacaratu - Paulo Afonso)
(Paulo R. Boblitz - jul/2011)

Tacaratu (serra de muitas pontas ou cabeças), amanhecia por entre o nevoeiro; naquele dia não choveria...

Daquele tempo ainda em que as terras brigavam com as águas, a névoa sentinela ainda se posta à noite para verificar os movimentos das montanhas, que podem crescer escondidas, mais água querendo conter...

Gostei do tempo nublado, água a nos proteger dos raios tórridos que nos ferem a pele. Gostei da brisa fria que soprava, carinho da Natureza aos que por ela gostam de percorrer. Gostei dos sorrisos das pessoas, que nos brindavam um belo dia como bendição.

A imponente igreja de Nossa Senhora da Saúde nos aguardava, com sua ocre cor diferente. Enquanto a admirava, escondendo Lampião dos nossos olhares, acampado na furna da serra do Cruzeiro, lugar difícil de se chegar, a senhora, adivinhando meus pensamentos, se aproximou e me informou:

- Foi pintada com leite...

Como a cor, também era a primeira vez que ouvia ser o leite, ingrediente na caiação.

Passei bom momento pedalando com aquele leite na cabeça, e acho que a velha senhora não exagerou. Leite contém gordura e muita água, e a cal há muito tempo é conhecida do homem, que já a utilizou com sebo de carneiro. Assim, o leite bem poderia ter participado na impermeabilização, substituindo a linhaça na mistura de cal e argila. Claro, eles devem ter adicionado argila, por isso, aquela cor...

Faltavam 20 minutos para as nove. Partimos, pois era preciso acabar de vencer a serra, uma subida de 160 metros em apenas 4,7 km, até alcançarmos a marca dos 671, já que havíamos partido da altitude 511. A serra do Cruzeiro, à nossa esquerda, nos espreitava, como deve ter vigiado as Volantes que buscaram um dia por Lampião.

Suas rochas, há muito fustigadas pelas águas, pareciam nos querer engolir com suas bocarras escancaradas, mas naquele dia estaríamos invencíveis. Logo descobriríamos o vento contra, a nos querer segurar.

- Como é o nome dele? - perguntei.

- Jegue... - respondeu o velho homem.

- Não, não! Quero saber qual o nome que o senhor o chama? - perguntei sorrindo.

- Roxinho... - novamente foram poucas as palavras.

- E o seu..?

- Pedro...

Pedi licença para fotografá-lo, demos-lhe um bom dia, e ele desejou que Deus nos acompanhasse. Partimos novamente agradecidos, mas logo as baforadas de nossas ventas, se fariam prevalecer.

São momentos mágicos, quando volteamos e ameaçamos a tudo aquilo descer, e nos pomos, os dois pés plantados no solo, as duas mãos nos punhos refreando a fera, a olhar aquilo tudo que já vencemos.

Não há espírito que resista, debaixo de uma pulsação que troa, ver todo aquele mundão ao longe, reconhecer que a vitória, quando sempre de si próprio, tem sabor e cheiro...

São bons momentos em que colocamos a respiração em dia, amainamos o sangue que nos esquenta o quengo, limpamos o suor que nos goteja em lágrimas...

Olhamos para cima e a curva esconde o cume. Adoro qualquer curva a me esconder o futuro, pois no tempo ali eu sou senhor, reconhecendo a cada metro, um porvir melhor, mais belo e magnífico.

Os cimos sempre nos apresentam mais desafios, mais futuros para conquistarmos...

Por isso, que chegar é triste...

Estávamos prestes a começar a descer, a despencar por 424 metros ladeira abaixo, tudo aquilo que no ano passado subimos, 11,6 km penosos. Seria uma descida de muitos recordes quebrados, loucuras mansas ao vermos a paisagem nos cortando, o vento nos cantarolando em uivos, o amor de todos nós em exalação, como meteoros riscando a montanha, que risonha, se estendia elegante.
Nove e meia da manhã, avistávamos o que o homem conseguiu fazer, aquilo que a Terra tanto tentou e não conseguiu: o lago de Itaparica. Em linha reta, Petrolândia submersa, onde os sinos dobram em certas noites, diz a lenda dos mais crédulos.

Um a um partiu em boa carreira, cada um com o seu boi na vaquejada, agarrá-lo pelo rabo e derrubá-lo, berros alvissareiros de euforia, adrenalina galopante, e me veio à mente um cubo preso, um jegue a nos amparar de lado, um bode com seus cornos a nos enfrentar - o asfalto era daqueles com muitas rugas, lixa aborrecida doida para ralar...

Nos reunimos lá em baixo e partimos piçarra adentro até às margens do majestoso lago. Ao longe, o telhado da velha igreja, lá onde os muitos pecados foram largados, os amores prometidos, as crianças salvas do Limbo...

Como guardião das crenças, aquele amontoado de barro cozido a proteger a água, da água que cai quando chove. Seus vitrais hoje filtram, a luz que colorida brinca, a encandear o peixe, a espalhar a boa nova, de que o dilúvio vai começar...

Nossa descida não foi espetacular. O vento forte nos freava, tentando nos plantar.

Visitada a Petrolândia debaixo d'água, de novo partimos, pois ainda nos faltavam 67 km. Até ali, havíamos pedalado apenas 17. O dia já marcava as 10 horas, com o sol impaciente a nos esquentar.

À nossa direita, aquele mundo d'água a nos querer reter. Talvez fosse a Petrolândia velha, disposta a conversar, mas daquelas conversas não entendíamos. O vento se aliou a elas e nos fustigou, nos tentou evaporar as forças como se estivéssemos num varal, mas tremeluzimos um a um, por meio da paisagem como miragens, até que paramos para o nosso banho, não no lugar combinado, mas pelas mulheres encontrado, logo depois da nova Petrolândia.

Cada um que foi chegando foi despojando, toda a tralha a incomodar, lançando-se às águas tépidas que há tanto nos aguardavam, sôfregas nos acolhendo com seus carinhos, porque água é vida, e vida é Deus.

Vento forte produzia ondas, oxigenava a todos, nos roubava os calores, nos produzia o frio, que à sombra nos protestava, de volta às águas nos mandando. Eram 11 e quinze...

Tempo calmo a calma chama, do pensar nos reclama, dos olhares nos incita à volta, do curioso nos faz lembrar, e começamos nas cores a reparar, lilás para lá, violeta para cá, rosa choque mais acolá, um casal ali, outro casal mais reservado, e perguntamos... - tínhamos ido parar num recanto gay, e começamos a nos olhar em nossas malhas apertadas, que o sujeito rude do sertão, creio que agora não tão bruto assim, diz ser coisa de boiola. E começamos a sorrir, nos mangando a nós, e pedimos, antes do cardápio, todas as cervejas bem geladas.

Almoçamos bode assado, e tilápia crestada bem crocante no fogão. Também não há nada igual à fome, que nos faz apreciar qualquer arroz, por mais insosso que ele seja. Na hora de pagar a conta um belo susto, que a barulhenta negociação tornou real, porque quando se pedala, a cerveja alimenta, não embebeda.

Novamente partimos, agora sob um sol mais forte, um vento raivoso. Eles descobriram que estávamos indo embora. Já eram 2 e dez da tarde...

Preguiçosos, começamos a pedalar num sobe e desce por entre as calhas, franjas do terreno que se elevava para longe das inundações. A cada descida o vento nos apertava os freios; a cada subida, o vento nos massacrava, mas era olhar de lado e as águas nos encorajavam, as cristas de cada subida nos prometiam, mais paisagens belas merecidas...

Serpenteamos junto com o rio, passamos pela represa da hidroelétrica Luiz Gonzaga, cruzamos com a entrada de Jatobá, atravessamos novamente o rio Moxotó, passamos pela estradinha que chegava na hidroelétrica Apolônio Sales, finalmente chegando naquele cruzamento onde tudo havia começado, no dia anterior.

Anoitecia. O sol já quase se escondia...

Dobramos à direita para Paulo Afonso, pedalamos mais um pouco e paramos para instalar lanternas e faróis, sinalizadores intermitentes a nos produzirem segurança. Passava um minuto das 17 e trinta...

Paulo Afonso ao longe já se acendia, iluminando-se para mais bonita varar a noite. O emaranhado de cabos de alta tensão sobre nossas cabeças nos avisava, que por ali o progresso fluía, vidas nasciam, mais amor se desenvolvia pelo trabalho que se conquistava com a energia.

O cansaço foi embora, pois o sabor da cidade se achegava com todos os seus cheiros. A noite se instalava...

Eram 17 horas e trinta e sete minutos, quando parei no meio da ponte metálica que atravessa o grande e profundo cânion do São Francisco, à minha direita a Usina número 4 da geração de Paulo Afonso. Tomei uns goles d'água enquanto apreciava aquele rio que vem distribuindo vida e alegria, História e histórias desde lá de baixo, ainda com muito chão a lavar pelo meio do sertão, até juntar-se às suas irmãs salgadas no paraíso do oceano Atlântico, que hora recua, hora avança, na valsa que dançam desde que o homem nem era nascido...

Por ironia, teríamos que ainda percorrer 12,7 km, numa longa volta, até chegarmos no ponto onde ficaríamos alojados, distante ali da ponte em linha reta, apenas 3 km.

Partimos outra vez, pois que lugar de descanso é na cama, não sobre uma bicicleta. Passava das 18 e vinte quando terminamos de cruzar a ponte em arco, adentrando pela ilha de Paulo Afonso, porque ela é cercada pelo velho Chico por todos os lados.

Finalmente, às 18 e trinta nossa trilha era terminada, à porta do nosso maravilhoso e espetacular hotel, pois que significava um delicioso banho, ar condicionado a nos roubar o fogo, a cama sempre macia nos convidando, lençóis brancos a combinarem com nossas almas, livres de qualquer pecado àquelas horas...

Foram 84,2 quilômetros num dia maravilhoso, porque vento e sol não nos incomodam, apenas apimentam no tempero. Gastamos 7 horas e dois minutos, alguns mais jovens e afoitos, menos disso. Subimos 917 metros no acumulado, um simples degrau nas conquistas da vida, daqueles tantos que vivemos subindo e descendo, sorrindo e chorando, amando e odiando...

Agora, do sono justo, nos separava a reconfortante pizza com alguns chopes pelo meio, mistura de ervas, massas e fornos, sorrisos e causos, algumas mentiras de ciclistas, e mais o andar de 5 quilômetros entre o ir e o voltar, encerrando o dia.

Um a um foi se recolhendo; era a hora do cansaço passear, quando ele aproveita e foge, para nunca mais voltar...

* * *

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