Não é treino, talvez nem cicloturismo,
porque durante, ficamos abestados...
Não que seja por culpa nossa,
mas da força de vontade que,
sem desistir, nos faz, às vezes, esquecer.
Sol do Nordeste não queima; torra...
Trilhas de Paulo Afonso - parte i de iii (cruzamento de Paulo Afonso - Tacaratu)
(Paulo R. Boblitz - jul/2011)
Um dia o Brasil entrou em convulsão - romperam-se artérias, e o rio São Francisco foi uma delas...
Eu ainda não havia nascido...
Naquele tempo foi decidido que a vida seria irrigada aqui pelo lado de fora, pelo lado de cima, fazendo-a brotar e proliferar.
A serra da Canastra, lá em Minas Gerais, subiu bem alto até 1.200 metros, para lá de cima o velho Chico jorrar novinho, envelhecer ao longo do caminho, e morrer ao adentrar o mar...
O velho Chico então liberto, começou a correr alegre, a se espraiar a tudo xeretando. A Terra, rabugenta, irritou-se com tanta aguação, levantando lados, paredes, tentando aquela água toda reter...
Foi tudo em vão... O velho Chico a tudo rompeu, cavou, explodiu, desviou, até que monumentais paredões em Pernambuco, o obrigaram a dobrar, lançando-o nos finais caminhos, entre Sergipe e Alagoas...
Foi uma noite mal dormida, balançando pela estrada até chegarmos no meio de um nada, cruzamento entre duas rodovias. Descemos preguiçosos, nos espreguiçamos, aguardamos o nosso café da manhã ser chegado, e partimos todos com o vigor renovado; era o rio a correr mais abaixo, e todos nós pedalando mais em cima...
Faltavam 10 minutos para as oito - o Sol já ia alto...
Alguém deu a idéia e a BR-423 abandonamos, apenas para enfrentarmos mandacarus e xiquexiques, como vaqueiros atrás do boi fujão. Logo alguém caía e um pneu furava, porque a areia era frouxa escondendo espinhos... Pegamos a BR-110, atravessamos, já passando 5 minutos das nove, a divisa de Alagoas com Pernambuco, no rio Moxotó. Seguindo mais um pouco, entramos na estrada de chão para o povoado Volta do Moxotó.
O dia seria muito quente, descobriríamos logo cedo. No pequeno povoado, conhecemos a ponte metálica por onde passava o trem, segundo os mais antigos, construída a mando de Dom Pedro II, ainda hoje forte e imponente, aço grosso pontilhado de rebites. Há muito que o trem ali não passa a caminho de Petrolândia, hoje debaixo d'água no imenso lago de Itaparica, que só visitaríamos no dia seguinte, a caminho de Paulo Afonso. Visitamos a antiga Estação, onde a simpática responsável pelo museu nos informou ter sido o presidente Castelo Branco a desativar aquela rede.
Os males sempre andam com as coisas boas, e o que foi bom para todo o Nordeste, foi também o sacrifício da antiga Petrolândia com suas pinturas de milhares de anos, e a estagnação da Volta do Moxotó, hoje sobrevivente pela garra de sua gente, teimosa em fazer aquele rincão progredir. À sombra, a fotografar os amigos no vaivém sobre a ponte, escutava discreto som a reproduzir gostoso rock, do tipo progressivo, porque no sertão não têm apenas as famosas cabras Moxotós, paisagens secas, miséria e música sertaneja.
Doeu ver a moça a tentar fazer andar o pequenino trem de brinquedo, já gasto como tudo já era passado, pois que por ali, a interessar-se pela pequena História que sempre sorrindo conta, há muito também que ninguém passava - éramos um público de 28 pessoas, quem sabe um difícil recorde a ser quebrado...
Com humildade, característica dos povos que sofrem, desculpou-se pelo pequeno entrave, falou bem da própria gente, nos mostrou orgulhosa seus artefatos, palha e barro cozido, delicados bordados, mistura do índio com o homem branco, coisa que também o passado, tratou de fazer esquecer... Quanto tempo durará, até que outro forasteiro por ali circule..?
O caminho como o rio, também serpenteava a desviar os obstáculos, que um dia a Terra os levantou. Areia frouxa, vento parado, um sol destemido, um calor de fritar os ânimos - cada sombra tinha o seu valor...
Sons de chocalhos, caprinos saltando para os esconderijos, terra de gente de coragem, persistência e resistência - terra de bicho macho que enfrenta a Terra, ainda hoje revoltada contra as águas...
Caraibeiras ainda estava bastante longe, e o suor nem aparecia, pois secava antes do pingar, tamanha avidez do vento quente, seco a esturricar a nossa mente, amigo do sol a descamar a nossa pele, parentes do cansaço que nos tentava tirar a força, mas em pedal só desistimos quando não tem jeito, porque nossas delgadas jumentas que não zurram e nem empacam, teimosas como nós, onde o capacete vira chapéu de couro, a malha apertada em gibão, o guidão nas rédeas, e os pedais como as esporas, nos suportam sem reclamação - o calor que se esfole...
Pouco mais de duas horas depois, ouvíamos o Caldas preocupado nos sugerindo entrar no ônibus, nos apontando a triste subida para chegar em Tacaratu - 13 horas em ponto. Nos refrescamos um pouco, soltamos algumas pilhérias e partimos, afinal a marca dos 551 nos aguardava - tínhamos ainda, 184 metros em 4 quilômetros, uma bela rampa a quase 5 por cento...
Dali em diante era só descida, algumas subidinhas estragando a festa, e uma fome danada de arretada. Quando começamos a descer, descobrimos o Rei do Bode, com uma carcaça salgada secando à sombra. Seria o nosso jantar, acompanhado de macaxeira, arroz e farofa de cuscuz com feijão verde, frutos que só o sertão oferece... Também cantaríamos os Parabéns para a Estela, que fazia naquela trilha, mais um aniversário.
Tacaratu nos recebia... Duas e meia da tarde, 6 horas e meia de pedal, 54,2 quilômetros percorridos, 1.118 metros de subidas acumuladas.
Nem bem vi o que almocei. Só sei que eu estava como um rei - conversa pouca, comida farta e gostosa, muito saborosa...
Como um bando de cangaceiros, tomávamos posse da cidade...
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário