Plano B

Não é fácil, não é difícil...

Sua vontade é quem determina,

sua fibra é quem examina,

sua alma é quem define...

Não é fácil, não é difícil...



Plano B
(Paulo R. Boblitz - jan/2014)

Se você tem um, não tem nenhum..., esse é o ditado mais velho que o homem já descobriu...

Se você traçou um plano A, é bom traçar o plano B, na hipótese do plano A falhar.

Se o plano B também falhar, bem..., aí é melhor você se benzer...

A tudo isso chamamos de planejamento, programar alguma coisa para o futuro, cercar-se dos cuidados para que tudo possa dar certo, mas mesmo assim, alguma coisa imprevisível, ou até mesmo previsível, pode acontecer, e você descobrir que ficou sem opções.

Comecei provocando pelos passeios gostosos, e logo me responderam pelo mais bonito; estava fácil demais...

Lancei aquilo que chamamos de provisório, ou básico, e ponderações começaram a aparecer; valentias também...

A coisa alastrou-se, para meu espanto, e logo tratei de pôr os pingos nos "is"...; foi uma santa providência...

Parti então para o projeto final, quase 90 por cento por estradas de chão, e os que ainda não tinham desistido, bem..., deixaram-me sozinho a lamber sabão. A esposa, sabendo, logo deu um veredito: sozinho você não vai..!

Faz tempo aprendi com o mar, que quando as coisas não se encaixam, não convém no insistir... O roteiro nos levaria de Aracaju, capital de Sergipe, até Cabaceiras, interior brabo da Paraíba, cerca de 505 quilômetros cruzando os estados de Alagoas e Pernambuco, muitas serras totalizando 7.540 metros em subidas acumuladas, em apenas 5 dias. Não bastasse isso, além do calor infernal, teria também que passar por região perigosa em Alagoas, que a própria Polícia Rodoviária não recomenda que trafeguemos à noite, e isso estando de carro.

Restou o plano B, mais ameno, acho até que mais gostoso... Quanto ao A, ele está pronto, engavetado...

1/jan/2014 - Aracaju - Brejo Grande

O despertador tocou bem cedo mas me atrasei, saindo de casa faltando 20 minutos para as seis da manhã, ensolarada já com o sol alto e quente... O primeiro dia é sempre cheio de tensão, não sei explicar, quando a bicicleta mostra alguns barulhos que não ouvíamos, o selim parece fora da posição normal, o espelho retrovisor não tem visão boa, enfim, nossos medos que afloram em percepções que não estamos acostumados, pois até a ideia de alguma coisa esquecida, nos persegue...

Mas a coisa começa a fluir, e com o vento, tudo também vai se distanciando de nós, agora experimentando brisas, sabores, cheiros, ruídos, solavancos, até o ranger do solado sobre o pedal, pois a corrente corre macia abrilhantada pelo óleo da véspera...

A tensão cede lugar para a boa posição, pois que já oramos pedindo proteção e saúde.

Estava a pedalar justo no dia da ressaca, aquele que acolhe todos os sonhos em sono, de um ano novo a começar, findado o velho há algumas horas com rojões coloridos, como se na fumaça da pólvora queimada, a tudo novo começasse, um ano inteiro pela frente, futuro que todos esperamos vencer e conseguir...

No meio do rio Sergipe, largo e tranquilo, porém forte a enfrentar as contras da barra, observei a cidade que dormia, que cansada de festejar, demoraria mais do que o comum para acordar...

Desejei a todos eles a boa sorte, à minha família a proteção, voltei-me para o caminho e finalmente iniciei a minha viagem. Até Pirambu tudo foi macio, providenciado pelo liso e novo asfalto, vento contra a refrescar, velocidade de cruzeiro em torno dos 18 quilômetros por hora, num plano que mal subia, mal descia... O parque eólico a lembrar os grandes moinhos, também parecia ter a calma do ano novo que se iniciava, em elegantes revoluções gerando energia...

A ponte que anunciava a entrada de Pirambu, ainda nos trazia os sons de festa atravessando a manhã daqueles mais afoitos que, apesar do dia já brilhante e quente de verão, mesmo assim ainda enxergavam noite... Parei por instantes a mirar os belos barcos coloridos, todos de folga, bebi uns goles d'água e segui, afinal havia vencido apenas um quarto da jornada daquele dia.

Montei e dei leve impulso na minha amiga, que agora descia a outra metade do arco que a ponte apresentava, suave a cantar a música dos biscoitos dos pneus, que conversam com nossos espíritos, inflam nossas imaginações, apertam-nos os corações em rebeldes aventuras que somente poucos conseguem entender, pois que enquanto muitos dormiam, eu suava e fazia força, apenas para sentir os ventos, os cheiros das terras, o sal que vez ou outra teima em adentrar pelos lábios...

Embriagado pelas sensações, senti a bici também embriagada a dançar sob minha bunda; pneu furado... Como piloto de aeronaves, sejam elas quais forem, nossas sensibilidades situam-se em nossas bundas; são elas quem dão os primeiros sinais, seja lá do que for insustentável...

Parei, xinguei um pequeno nome feio, daqueles quando damos uma topada, olhei para um lado, olhei para o outro, nenhuma sombra... Que vá no sol mesmo, afinal já estamos nele há um bom tempo. Apenas troquei a câmara furada, pois estava num local feioso e apertado, carros passando próximos demais de mim, a pesar a dúvida se todos eles estavam sãos ou alcoólicos...

Montei tudo, passei varredura a ver se não havia esquecido nada pelo chão, e dei início novamente ao meu caminho, Solo, mas bem acompanhado por Deus; renovei minhas preces, agradecendo por ter dado conta do pequeno problema...

Em pouco tempo chegava na entrada para a Lagoa Redonda, onde parei sob a sombra da palma do coqueiro, bebi água e fui interpelado pelo casal que, de motocicleta, tentava chegar à Lagoa Redonda. Confesso que cheguei a sentir inveja dos dois, pois que se minha esposa pedalasse, estaríamos agora, os dois, a festejar o que aquele casal pretendia. Sorriram-me e se foram. Bebi um pouco de água e comecei minha gostosa ladeira, a primeira do dia, lá em cima, o divisor das coisas, fáceis, das difíceis...
Povoado Santa Isabel

Embrenhei pelo caminho de terra, já cheio de costelas de vaca, quando nossas almas acordam e nos xingam pela trepidação. A partir dali, até quase Brejo Grande, seriam aquelas ondas contínuas como pedras lançadas n'água, areia frouxa e seixo rolado, aquela areia lavada de fundo de rio, que não tem liga...

O dia estava muito quente, e a pesar, a tentativa em nos dobrar as têmperas, nada pelo caminho a nos aplacar a sede e a fome; é um caminho, de certa forma deserto... A água, no início congelada, agora estava morna... No povoado Santa Isabel, já meio tonto e enxergando as coisas cinzentas, parei e sentei num alpendre cheio de boa sombra, quando banhei com água dum balde, cabeça e nuca, lavei balaclava e bandana... Seu Manoel Constantino havia me fornecido bom balde d'água fresca, e por quase uma hora e meia, pequei pelo sono, exausto, sentado ali enquanto lá fora o tempo passava e cobrava de todos, simpatias e empatias, lutas e derrotas. Cá eu dava um tempo e descobria que cerca de 35 quilômetros me separavam do destino programado, deles, cerca de 15 por asfalto...

Acordei com uma bonita moça a pedir ao Seu Manoel Constantino, 3 Reais de pinga, um litro que abasteceria os cantares e sorrisos dos tantos já ébrios, estendendo a festa. Arrumei-me, apertei as mãos de meu anfitrião, desejei-lhe um bom ano e parti, cheio de novas energias para chegar em Brejo Grande como se fosse um alienígena, todo vermelho queimado do sol, todo avermelhado pintado pela argila que colou em minhas roupas, não sem antes ter passado por pedaços do Paraíso, inalcançáveis naquele dia...

Juro!, havia sido o meu pior dia, embora existissem mais três dias pela frente...

* * *


2/jan/2014 - Brejo Grande - Pontal do Coruripe

Acordei com a claridade que se intrometia frestas adentro, em provocação, alfinetando-me para levantar. Não há preguiça mais gostosa, falta de coragem mais vantajosa, quando acordamos meio quebrados, ainda cansados para uma nova batalha, ainda bem que mais leves conforme o planejado, pois por não haver encontrado vagas em Barra de São Miguel, obriguei-me a fazer escala em Pontal do Coruripe, cerca de 40 quilômetros a menos.

Querem saber o segredo da boa disposição? Um bom banho quente terminado gelado, que como toda boa eletricidade, nos dá choques pelo corpo inteiro. Abri a porta e encarei um verde brilhante do gramado bem vivo e sorridente, recém molhado pelo Edmilson, quem nos dá a dica do restaurante, do barco para a travessia, até do barco grande se você o quiser alugar para conhecer a foz. Tomei um café da manhã caprichado e cheguei a conversar com o dono de um desses barcos que transportam 25 a 30 pessoas; o dia certo ficaria para depois de minha volta, pois estava iniciando dali um pouquinho, meu segundo dia de pedal. Acordamos o preço e concordamos que conheceríamos a foz do rio São Francisco, o Farol inclinado na antiga cidade Cabeço, o almoço em Piaçabuçu, enfim, o tempo que fosse necessário para minha família curtir um bom domingo diferente.
Foto tirada no domingo seguinte ao
 da minha volta para casa

Informei a ele que já conhecia aquela foz, perguntando-lhe se o farol ainda estava lá.

- Está, e agora mais endireitado, pois voltou a ficar em terra firme novamente - respondeu-me...

Contou-me a história de que depois da construção da usina hidrelétrica de Xingó, o mar ganhou forças e invadiu a terra; primeiro reclamou os defuntos, depois, lentamente foi destruindo a cidade, assenhoreando-se de tudo. Foi dessa forma que o Farol foi parar no meio da água, mas, não há nada que Tempo não resolva, pois hoje o Farol, depois de inúmeras negociações, volta a reinar imponente, porém apagado, na antiga Cabeço que jamais voltará a brilhar...

Acertei as contas e fui para o atracadouro vizinho ao restaurante que por muito pouco, não me servia o jantar na noite anterior, quando pedi para conversar com a proprietária, explicando-lhe que havia pedalado naquele dia, mais de 100 quilômetros, e que se ela me preparasse apenas ovos com arroz, eu ficaria contente. Eram 7 horas de uma noite bem estrelada, ainda quente da terra que esfriava, meio desconfiada pelos meus cabelos brancos e com os tais dos 100 quilômetros, enfim abriu o cadeado do portão e deixou-me entrar, preparando-me 4 filés de frango grelhados, arroz, feijão tropeiro, farofa, vinagrete e batatas sauté; que a lição se fizesse entendida, pois dali em diante estaria por cidades pequenas, onde a vida costuma anoitecer mais cedo.

O sol estava firme e já alto, comum aqui pelo Nordeste, e centenas de sacas de arroz com casca eram derramadas para secar, em plena praça pública, pelo meio da rua, sinal de que o progresso pode chegar na velocidade que quiser, mas os costumes são enraizados...

Embarquei no pequeno barco de rabeta, motor de popa, hélice em ângulo pelo pronunciamento longo do tubo propulsor, porque os bancos de areia lá estão, visíveis e rasos...

Ao som do tó-tó-tó cadenciado, enfrentamos as marolas que vez ou outra nos lançavam suas águas bentas em gotas tímidas, encorajadas pelo vento, numa brincadeira de convidar. Enveredamos pelo meio de um canal, ilhas verdes pelo meio do grande rio, um corta-caminho a evitar uma longa volta até Piaçabuçu, 3 Reais e cinquenta centavos por cabeça. Em Piaçabuçu, já Alagoas, visitei a Igreja de São Francisco de Bórgia, singela e arejada, aberta em pleno dia de feira, afinal o ano já havia começado, o calendário também...

Desastrado verifiquei que não havia ligado o GPS durante a travessia, mas não fazia mal, pois depois eu colocaria um alfinete mostrando onde ele ficava, o canal...

A travessia havia me consumido bastante tempo, afinal o rio é largo, a rabeta é lenta, a sensação maravilhosa... Dez e dez da manhã partia em direção ao Pontal do Coruripe, certo de que não devemos forçar a barra quando estamos a lidar com a Natureza, afinal, abreviar aqueles quilômetros naquele dia, seria de divina providência, coisas que o meu Anjo da Guarda sempre oferece, e eu não recuso... Cerca das 11 e meia da manhã quente, chegava no trevo para o Pontal do Peba, exatos 15,5 quilômetros, onde eu deveria decidir entrar ou não, para conhecer e pedalar pela areia. Sabia que apenas 2 quilômetros me separavam do mar, e para lá enveredei; se a maré estivesse cheia, pelo menos almoçaria um saboroso peixe, um Dourado enorme que foi, embora eu me amarre na farofa, sempre deliciosa, ainda mais se molhadinha com o vinagrete...

Meio preguiçoso me despedi do Garçom, que fez questão de dar uma volta em minha bicicleta, aprovando e entusiasmando-se com a minha amiga macia cheia de carga. Todos vocês parecem muito bobos quando se preocupam com o peso que elas podem significar, embarcando na onda dos que lhes querem sempre vender o mais caro, o nome "leveza", esquecendo que são as pernas que fazem a grande diferença. Assim, marcas são para quem se acha granfino, para quem se acha "o cara", porém, pernas, são somente para quem as possuem, não importa quanto pese o conjunto, aliás, marcas esnobes só utilizam aqueles que não conseguem pedalar sozinhos...

A maré havia vazado e já começava a encher; eu tinha tempo, afinal o trecho seria pequeno até o ponto em que eu teria que retornar para o asfalto, por ironia, para Feliz Deserto. Areia linda cheia de rastros, mar em bigodes a quebrar insultando a terra, espumas transformando-se em maresia, vento salgado a nos brindar, sol às costas a dar um descanso, tudo à frente a nos convidar, mas por pouco tempo, como se pequena prova nos fosse dado a degustar, do que seria pedalar pela praia inteira do Carro Quebrado...

Uma e quinze da tarde abandonava o paraíso e retornava ao inferno do asfalto, mais quente, mais barulhento, mais perigoso, sem acostamento, mais estressante sem graça, onde os pneus parecem concordar em ficar silenciosos, até eles mesmos não aprovando, mas o progresso chega e a ele não podemos evitar, pois ele vem em benefício de muita gente que ali não passeia, mas vive e labuta, sua ganhando a vida...

Dali em diante seria a mesmice da longa tripa acinzentada, cortada o tempo inteiro pelas pressas de pneus que nos gritam seus ultrajes, arrogantes plantados forçando os chãos, senhores dos asfaltos e dos roncos... Vez ou outra, como a acalentar, o paraíso se mostrava dizendo que não estava longe; ficaria para outra vez...

Carrão, carreco, fulerage, tudo me ultrapassava, e me xingava por eu andar tão lento... Pressa tem quem não tem tempo, mas o que o tempo para mim significava, afinal não estava a fazer o que gostava? Ranger, minha gente, escutar cada elo da corrente a transmitir sua força, sua canção de avançar à frente, sempre, não importando os metros que por baixo dela passem, esse é o Espírito da Bicicleta que nos habita, e que nos empurra para as grandes subidas, para as grandes vencidas, onde a conversa é sempre nossa...

Vencer os outros é muito fácil, porém vencer a nós mesmos é bem diferente... Olhando meu traçado pelo GPS, consigo ver minhas fraquezas, momentos em que paro procurando paz, procurando descanso, procurando bom batimento cardíaco, procurando aplacar a sede que não passa, que a água morna apenas incha na barriga, a primeira urina não aparece... Olho meu traçado e vejo desconexos, pontos separados dos pontos que o satélite marca, momentos em que buscamos o real, o saber onde estamos, para onde vamos, o porquê fomos...

Dizem que a informação é poder, e por certo ela é importante, pois por ela nos baseamos e decidimos. Perguntei antes de Barreiras; não dava para atravessar de barco, então dei uma grande volta para chegar em Pontal do Coruripe, e cheguei, não sem antes pedalar junto com um novo amigo, um senhor que carregava enorme tralha na garupa de sua bicicleta, sacos enormes cheios de material reciclável, que o vento, por vezes, o tirava do bom equilíbrio.

Ultrapassando-o, senti que ele mais apertou e o deixei ultrapassar-me. Acompanhei-o de perto por um longo e interminável tempo, mas não poderia ultrapassá-lo, matando um dia em que ele venceu um sujeito vestido diferente numa bicicleta bacana. Entabulamos conversa e seguimos juntos por vários quilômetros, até que ele pareceu entrar numa estrada de chão e segui então livre e cheio de pressa por chegar, mas o que eu não sabia, era que ele havia pegado um corta-caminho pelo canavial, esperando-me cheio de moral mais à frente, olhando a bicicleta dele como se ela estivesse com algum defeito, no que parei, perguntei sobre o problema, ele respondendo que ela fazia sempre aquilo com ele, mas que daquele ponto em diante, seria só descida até Pontal do Coruripe.

Era ele a me liberar de sua companhia, a ficar com sua vida atribulada, enquanto que na minha eu apenas passeava... Apertei-lhe a mão e lhe desejei um feliz ano novo, lembrando agora que nem sabemos os nomes um do outro, mas que demorará bastante tempo até que nos esqueçamos um do outro...

Dia ainda claro e ensolarado, cheguei em Pontal do Coruripe, onde a maré batia nos muros da cidade, de leve, macia, arrecifes amortecendo a força da maré ao longe, tornando a cidade num recanto privilegiado dos mares, como se um pirata eu fosse, aportando numa bela baía cheia de prendas...

Tomei um banho, lavei minha roupa, saí para jantar, e bombas e rojões ecoaram por muito tempo pela cidade, pois acercava-se a festa de Nosso Senhor Jesus dos Navegantes, momento em que os vários carros de som amainaram suas potências, permitindo que a Fé, somente ela, aconchegasse a todos que na Fé acreditassem

Jantei gostoso ao som de grandes bombas que explodiam, céu acima daquele que almejamos, porque somos apenas pedintes, de coisas boas, de boas proteções, de bons sucessos...

Dormi, pois que o cansaço falava mais alto, não importa quais sonhos nos persigam, se bem ou mal amados, porque quando o corpo reclama, a mente recua, e quando ela dá o passo atrás, apenas a mecânica, ou a reflexão, costumam atuar...

O galo não cantou, mas acordei... Verão, tempo em que o sol reina, logo cortando a madrugada...

Novamente o banho me separava dum belo dia, não tão belo, mas inesquecível...

* * *

3/jan/2014 - Pontal do Coruripe - Praia da Sereia em Riacho Doce

Sol forte novamente, sem nuvens, vento contra, 8 e vinte da manhã pegava meu caminho, que dessa vez seria por terra até a Lagoa do Pau, onde não existe nenhuma lagoa...

Caminho arenoso com argila, durinho me conduziu paralelo à praia azul, por entre as sombras do coqueiral. Numa encruzilhada perguntei onde ficava Lagoa do Pau, no que me informaram que eu deveria entrar pelo portal do condomínio murado, apenas para dar uma volta e sair no mesmo lugar onde havia feito a pergunta, mas são as descobertas que nos fazem rir, os micos que pagamos com bom prazer. Seguindo mais um pouco, saía no asfalto da rodovia, nos barulhos que nos estragam as ouças, sempre os mesmos, apressados...

Uma entrada me fez psiu e atendi ao seu chamado, como sempre faço quando algo me parece dizer o que fazer... Seguindo minha intuição, em 200 metros cheguei numa linda praia do paraíso, triste maré cheia a mostrar-me apenas areias frouxas para pedalar, mas ali eu sabia que teria que seguir pelo asfalto, pois dois belos rios me impediriam de passar.

Respirei a brisa gostosa e dei meia volta, avistando a primeira subida do dia por volta de meu décimo quilômetro, parecendo avisar-me que a moleza acabaria tão logo chegasse no meu quilômetro 16, quase Poxim. Até o Mirante do Gunga, seriam todas parecidas, até piores...

Dali até o Mirante do Gunga, 32 quilômetros para ser exato, segui por um tobogã horizontal, uma onda senoidal interminável, descendo, subindo, subindo, descendo, quando raros foram os 100 ou 200 metros pelo topo em que pedalava pelo plano, para novamente começar a descer, para novamente começar a subir, até que a paciência transbordasse em fúria pela aviltante e medíocre velocidade média, pela água que já avisava estar acabando, pelo infeliz deserto onde você não encontra nada, a não ser canavial de um lado, canavial do outro, canavial nos ambos lados. Se pedalar contra o vento já é uma grande ladeira, subir a ladeira com vento contra, é desanimador, a ponto de me fazer odiar todas aquelas descidas...

Se eu achava que o meu primeiro dia havia sido difícil, aquele dia provaria que as coisas sempre podem piorar. Faltavam 5 minutos para a uma da tarde, quando finalmente cheguei no Mirante do Gunga, belíssima visão de todas as pazes, dos azuis do mar e céu que se unem, da turquesa ímpar em que se espraia a Barra de São Miguel, como se miragem fosse a acalmar meus fogos íntimos, sedento e faminto...

Maceió já se via como bom oásis, e dela, mais 15 quilômetros, seria o descanso da Praia da Sereia...

Bebi três cocos gelados, quase um atrás do outro, meu único isotônico a produzir milagres, meu soro ingerido pela garganta ávida e já ressecada. Pedi uma porção de isca de peixe, porque na barriga já não cabia mais nada, descansei, recuperei a valentia, o otimismo, lavei bandana, testeira, balaclava, luvas, quase que tomo banho na pia... Recomposto, apreciei uma gostosa descida, agora já dolorido a experimentar posições sobre a sela, até que a própria dita também novamente esquentasse.

Não foi difícil arrumar desculpas para parar na ponte sobre a Lagoa do Roteiro, fotografando praias incríveis, porém reparando na longa subida que além dela já começava. Pensei que todo aquele inferno iria recomeçar, e que não havia jeito dele fugir, mas lá no topo descobri que seria a última; não havia sido abandonado...

Maceió foi fácil de chegar, cocadas e suspiros a nos encherem a boca, proibidos agora, mas na volta eu iria à forra; o sol já começava a deitar...

Fotografei uma placa interessante, porém elitista, pois que referia-se somente aos ciclistas em treinamento; e quanto a nós cicloturistas?, quanto aos tantos que devem suas mobilidades à magricela..?

Enveredei por uma ciclovia, tranquila no início, infernal quando cheguei no quente da orla, quando senti-me como intruso naquilo que havia sido construído para as bicicletas, a abandonando e pedalando por entre os carros. O sol já havia deitado e agora meus piscas todos piscavam, quando cheguei na AL-101, já noitinha, trânsito de fazer inveja à avenida Brasil, e quase não havia acostamento, mas fui respeitado; apenas um, talvez um coitado atrás de sua arma predileta, deu-me um tranca, de leve mas não necessário.

Anotem bem! Não só das preces me vali, mas também do meu espelho retrovisor, que avisava quando podia abrir, que avisava quando devia espremer-me. A rua é de todos, principalmente dos mais fortes, principalmente dos que não se machucam.

Não tentem morrer com a razão; ela de nada adiantará para vocês, com sete palmos de terra suja por cima...

Já não conseguia ver o hodômetro, a quilometragem, apenas esperava pela tão sonhada ponte que poucos metros depois me apresentaria a seta para a Praia da Sereia; juro que nunca passei por tantas pontes... A cada uma, vencida, uma decepção em seguida, até que a cabrunca se me apresentou, muito alegre deparei com a placa mais bonita do dia, à direita, descendo por uma pequena estradinha de chão. Estava em casa, graças a Deus, são e salvo, faltando 15 minutos para as 7 da noite; até o GPS indicava Bateria Fraca...

Pedalar é muito gostoso, chegar nem sempre é bom, mas vez ou outra compensa... Minhas coxas estavam tensas e quentes, panturrilhas doloridas, unha do dedão escurecida, avisando que vai cair, brotoejas pelo corpo inteiro, temperatura do corpo acima do normal.

Nesse dia nada lavei; nesse dia só lavaria o corpo e a alma, e suando saí do chuveiro. O Luca, italiano dono da pousada, logo descobriu que eu gostava de um bom vinho seco, apresentando-me um bem saboroso, que sorvi como se aquele fosse o último copo. Brincando, desafiou-me a descobrir sua procedência. Argentino não era, uruguaio tampouco, da serra gaúcha menos ainda, então sobrava apenas o Chile, mas o nome era Botticelli, italiano; estava difícil... Virou então as costas da garrafa e mostrou-me ser do Vale do São Francisco, esse nosso grande rio que ultrajado, continua vencendo e apresentando vida ao nosso Nordeste.

Bebemos, conversamos nossas histórias enquanto sua esposa preparava um delicioso jantar, pronto quase às dez horas da noite, cheiro de alho refogado a nos enfeitiçar...

* * *

4/jan/2014 - Praia da Sereia em Riacho Doce - Praia de Peroba (1,5 km da divisa de Alagoas com Pernambuco)

Acordei com os barulhos do dia, nem seis horas da manhã e o sol já bem levantado a reinar. Virei para o outro lado mas os barulhos não davam trégua; já acordado, o jeito era levantar... Espreguicei-me, olhei para a unha roxa, pensei na porcaria que seria lidar com ela, enfim levantei dolorido, abri o chuveiro e a água forte me ajuizou...

Sabia que o café da manhã seria somente a partir das 7 e meia, então fui adiantando nos alforjes, verificando corrente, pneus, novamente a unha, dedos anelares e mindinhos prometendo dormência. Terminando o que podia terminar, fui tentar uma xícara de café forte amargo. As sombras convidavam para uma rede a balançar, o vento soprando suas varandas trabalhadas, passarinhos por ali em algum lugar...

Consegui meu café amargo e sentei à mesa, bebericando-o com calma, boa meditação a observar as danças das tantas folhas quase negras, das verdes que lá em cima iam e vinham em leve balanço ao som da brisa...

Os cheiros da cozinha vieram perturbar, o barulho do liquidificador a se intrometer, copos e xícaras em conversas estranhas sobre a mesma bandeja metálica, talheres tilintando, pratos um por cima dos outros, enfim, tudo o que dali a pouco utilizaria em meu desjejum. Perguntado se gostaria de alguma coisa especial, respondi que sim: dois ovos mexidos...

Tomei meu café, fui para o quarto e reparei no espelho: estava vermelho, lábios rachados descascando, barbado, olhos preguiçosos mas muito vivo e leve da noite bem dormida e descansada; só a casca estava grossa...

Parti para o que seria o meu dia mais bonito, nem tanto assim pelo final, também já noite, mas isso ficará para eu contar lá no final.

Tomando a direção da praia, descobri que a maré estava alta, mas as piscinas naturais ainda estavam visíveis; a Sereia dominando a tudo e a todos.

Ainda tentei pedalar, mas levei uma queda boba quando o pneu dianteiro enterrou na areia molhada frouxa. Não brigando com os Elementos, que sabem sempre o que estão fazendo, peguei a direção do asfalto e por ele segui até a entrada da praia de Paripueira.

Praia do Carro Quebrado
Mulher Pescadora puxando Arrastão
Estava cansado de tanta mesmice de andar por onde não acontece nada, onde tudo se repete, novamente obedecendo minha voz interior; parei num pequeno trevo pouco antes de Paripueira, segui por aquela entrada e pedalei diferente, agora com a maré baixando, a praia inteira para mim e para tantos que dela saboreavam, porém meu próprio Roteiro avisava que deveria retornar ao asfalto, por conta dos rios que não conseguiria atravessar, e aquilo que estava gostoso logo terminou com a realidade de ter que voltar para rodovia novamente, por ela seguindo até a Barra de Santo Antonio, não sem antes passar por Santa Luzia.

Praia do Carro Quebrado
Crianças puxando o Arrastão
Lembro que parei numa sombra pouco antes de atravessar a ponte para a Ilha da Croa, quando um Senhor bem idoso sentado num daqueles bancos, perguntou de onde eu vinha. Pareceu sonhar quando informei que de Aracaju, ou não entender por não determinar a posição de minha partida, no entanto desejando-me um bom dia e uma boa viagem. Agradeci e reparei naquilo que talvez vocês ainda não tenham reparado: fazemos parte da paisagem, as pessoas, não importa qual cidade seja, importam-se conosco, preocupam-se conosco, gostam à primeira vista de todos nós, querem nos ajudar, querem conosco participar...

Seria a bicicleta?, seríamos nós a eles, pacatos malucos?, seríamos o sonho que cada um já terá sonhado?

Se você é um Cicloturista, você tem essa responsabilidade; você é exemplo, você é especial, portanto comporte-se à altura, não estrague a imagem que bem fazem de você...

Atravessei a ponte e novos amigos me chamaram; pareciam adivinhar minha dúvida...

- Pode seguir direto por essa rua e pedalar na praia inteira, porque a maré tá baixa...

Meus olhos brilharam, porque eu estava na Praia do Carro Quebrado, com suas rochas e falésias, penhascos coloridos contrastando com o azul do mar que nem onda fazia, pois os arrecifes assim providenciavam a tranquilidade da praia.

Agradeci aos novos amigos espontâneos e segui confiante, na curta ruela que me desembocaria diretamente na praia, um mundo imenso à minha esquerda a ser vencido, a ser pedalado e fotografado.

Confiante em minha boa estrela, não titubeei, logo me vendo pedalando a vencer a areia dura e molhada.

Desculpem por ser repetitivo, mas chamamos a atenção...; crianças saíam da água, pais nos mostravam a elas, a imagem da própria aventura sendo apontada por quem nos vê paramentados com nossa própria casa à garupa, viajando livres por meio dos músculos, conhecendo lindos lugares, Natureza somente nossa...

Por certo chegamos a despertar invejas, mas pouco sabem que é tão fácil, tão simples pegarmos nossas amigas e sairmos, suando conquistando sonhos, paisagens, sentimentos, coisas que só nós entendemos a encherem nossas almas de felicidades...

Praia do Carro Quebrado, nome sugestivo... Particularmente, creio que algum casal aventurou-se a namorar num local remoto... Aí a maré encheu e o carro encalhou..., deixando uma grande história nos bastidores de quem a viveu...

O carro quebrou, enferrujou e hoje tentam lhe copiar a saga, instalando sobre cavaletes, velhos fuscas enferrujados...

Praia do Carro Quebrado, ou qual nome vocês preferirem, é linda e imensa, conflitos da Natureza a se derreterem à nossa frente, cores pujantes a nos tirarem ares, rochas esculpidas a cinzel pelo mar que todos os dias vem reclamar sua posse, vida a se agarrar no áspero sal inimigo do verde...

Meu passeio estava completo, mas eu precisava chegar, afinal chegar significa o fim, e o fim ainda estava longe, bem longe...

Praia de rocha, o mar escultor...
Chamem do que vocês quiserem chamar, aventura ou passeio, mas lembrem-se de que nossos Anjos confabulam... Chegava eu na entrada da pequena trilha que me levaria por entre coqueiros, ao rio Camaragibe. Ao mesmo tempo em que eu a adentrava, um casal, Julie e David, ambos de São Paulo, preparava-se para seguir pela areia por onde eu tinha vindo.
Curral de peixes

Apertamo-nos as mãos, conversamos um pouco e nos despedimos; havia muito chão ainda para todos nós...

Logo chegava às margens do belo rio, calmo e convidativo onde duas pequenas balsas embarcavam quadriciclos e um pequeno bugue. Perguntei se havia vaga para mais um e embarquei; a travessia foi suave, sem ondas, sem balanços, apenas o vento curtindo nosso breve descanso.

Paguei os R$ 3,50 e outra pequena trilha já me aguardava também por entre o coqueiral, levando-me até o início do povoado Barra de Camaragibe, onde uma senhora gentil e simpática, de avental, me prometeu um peixe frito, pirão, arroz e uma salada vinagrete em tempo rápido, mas antes de me dar as costas para cuidar do meu pedido, confortou-me que a divisa com Pernambuco estava logo ali, que eu não me preocupasse...

Por certo, por me falar daquele jeito, ela não pedalava, mas cozinhava com muita arte...

Quase duas da tarde quando segui meu rumo, agora pedalando pela Rota Ecológica, e, em pouco mais de meia hora passava por São Miguel dos Milagres, onde comi dois sorvetes de limão. Protegido, agora o vento me dava uma trégua... Passei por Porto da Rua, Tatuamunha, Lajes, finalmente chegando em Porto de Pedras para atravessar o rio Manguaba de balsa; olhei o relógio e marcava 15 e quarenta, mais um dia em que chegaria em meu destino já de noite...

Estava próximo de Barreira do Boqueirão, quando abandonamos os paralelepípedos e passamos a pedalar em estrada de chão arenosa, onde fica a Praia das Barreiras, o Restaurante Bicas, por conta de duas bicas que jorram água doce morro abaixo, uma para as mulheres, a outra para os homens, tudo separado. Chegar em Barreira do Boqueirão e em Japaratinga, saímos do caminho plano e começamos a subir pequenos morros. Em Japaratinga, uma hora depois de sair da balsa, fiz breve parada e bebi dois cocos verdes num quiosque no alto do morro; a sede apertava, mas a vista era linda...

Olhei o relógio e ele marcava 16 e quarenta; urgia...

Montei e mandei ver, agora aditivado com água de coco. Pouquinho antes da ponte sobre o rio Maragogi, meu filho buzinava para mim e parava protegido bem na entrada do Salinas de Maragogi Resort. Igual como havia acontecido em meu último dia nessa mesma época, em janeiro de 2013, quando próximo de Lençóis na Chapada Diamantina, novamente ele me encontrava próximo do fim. Desembaracei-me dos alforjes, de uma das caramanholas já vazia, dos óculos escuros, da balaclava e fiquei mais leve

Agora, despido dos alforjes, bem mais leve, não ao ponto de começar a voar, mas de, mais livre, andar mais depressa... Olhei o relógio e ele me gritava 17 e vinte e um.

Entreguei também a máquina fotográfica; não havia mais tempo para fotografias...

Enquanto ele arrumava minha tralha na Saveiro, pus as pernas em movimento, atravessando a ponte e enfrentando uma longa subida que me fez perder preciosos minutos de dia claro; faltavam ainda 15 longos quilômetros, mais uma hora de pedal...

Exatamente às 18 e trinta, já noite, depois de ter pedalado 98,2 quilômetros, sujo, suado e cansado, descobria que o dono da Pousada Praia de Peroba, havia alugado o quarto para mim reservado... Guardem bem esse nome, pois amanhã poderá ser com vocês...

Sem teto, com um baita problema a resolver, o de arranjar vaga num lugar movimentadíssimo, arrumei bom lugar para a minha amiga, tão cansada quanto eu, na caçamba larga do veículo, partindo dali derrotado pela falta de palavra, pela falta de compromisso, pela falta de profissionalismo, mas nossos Anjos da Guarda nos protegem. Ali, quando me confundi com o nome, no Peroba Ville Hotel, alagoanos nos bem receberam, nos bem deram acolhida num hotel cheio que, por muito pouco mesmo, não conseguíamos vaga...

Jantamos uma bela Pescada, comprei um bom vinho e descansei...

Haviam sido 4 dias, sozinho, 373,7 quilômetros, quase todos contra o vento...

Haviam sido 4 dias de muitas experiências, algumas não muito boas pelo caminho, mas que ajudaram a temperar, assim como a boa pimenta também faz, não ao ponto de fazer arder, mas de fazer ver que problemas são reais e possíveis de solução, de coragens e otimismos que só nós conseguimos entender, sem heroísmos, sem sofrimentos, mas numa picante aceleração do tempo em que tudo acaba por acontecer...

Não, isso não é competição... Tampouco é alguma prova, embora você possa sentir o Tempo a conversar consigo, sua mente a experimentar a liberdade, nada de regras onde a regra número um, é deixar-se levar onde a intuição assim remeter; esse é o espírito da coisa, sem rigidez na hora da saída, sem reclamações na hora da chegada, mas uma vida inteira entre um e outro, a cada dia que durar tal farra...

Se você não tem bagageiro nem alforjes, está na hora de providenciar...

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