Sofia azul...

Não somos loucos,

não somos solitários,

apenas pensamos, sonhamos,

sorrimos para a vida...


Sofia azul...
(Paulo R. Boblitz - set/2014)

- Sofia, você não está com frio...

- Tô sim! Não vê minha cor?

- Você sempre foi azul...

- Mas eu queria ser cor de rosa...

- É..? E eu, como ficaria?

- Tô com frio...

- Tá mudando de assunto...

Ela tremeu... Olhei para a outra cama, vazia, peguei a colcha grossa e a cobri...

Ocupado estava com meu diário, quando ouvi nova reclamação:

- Agora tô com calor...

Sorri, levantei e fui lá descobrir seu guidão. Agradecida, estremeceu a garupa...

Alisei sua sela, o quadro forte, limpei o espelho, agarrei seus bar-ends e a soquei no chão, coisa que sempre gosta, como se uma égua a empinar garbosa, afundando meio mundo de suspensão... Pingos d'água caíram, molhando o chão; ela estava gelada...

Até ali haviam sido dias de muito frio, especialmente o anterior, inteirinho debaixo de chuva a levantar a lama espessa, aumentando o nosso peso. Meus alforjes não haviam suportado, permitindo que a água entrasse molhando tudo; eu ainda sentia o tempo gelado, roupas úmidas, calores da subida que tinham ido embora, pulso voltando ao normal, a calma por fim se achegando, o corpo entregando-se ao cansaço, coxas de vez em quando fibrilando...

Estávamos nós dois no fim de um grande dia, orgulhosos por um grande feito: havíamos vencido a Serra do Rio do Rastro, cerca de 22 lindos quilômetros para cima, por entre as nuvens...

A cada maior cansaço, uma parada, um gole d'água, mentes aguçadas pelos mundos de barulhos à volta, envoltos nos mistérios em nevoeiros que teimavam em nos acompanhar.

Sofia recebia em pingos, meus suores, meu sal a se misturar com seu doce molhado, seus óleos e estalos; não tínhamos pressa...

Gememos sim, do mesmo jeito que gemiam os motores dos forças brutas que se nos chegavam por trás, do mesmo jeito que estrugiam os freios dos que à nossa frente se continham a descer, da mesma forma como as águas em alegrias se batiam e respingavam em liberdades. A única a não fazer barulho era a névoa, a nos ouvir os pensamentos, nos abraçando e envolvendo amorosa, como a nos brindar respeitosa, descortinando-se a cada metro, desenrolando-se aos poucos à nossa frente. Ela fez questão de nos seguir até bem depois de vencida a batalha, quando o líquido tomou o seu lugar, alfinetando-nos em cócegas, informando que o sol não estava longe...

Olhei para Sofia, agora brilhando à fraca luz do quarto; notou que a admirava, virou-se e piscou o led. Balancei a cabeça com um sorriso, pisquei um olho e mandei um beijo; lá fora o vento cantava, molhando tudo...

Estávamos em Bom Jesus da Serra. Levantei, apaguei metade daquela luz, o quarto entrou em ritmo de calmaria, Sofia bocejou, ajeitou-se amolecendo suas partes duras, fechou os olhos e adormeceu...

Tal como pingente, um pingo a parecer cristal, teimava em abandonar Sofia, brilhando no meio escuro como precioso a enfeitar minha princesa, diamante joia em seu corpinho lindo... Sorri também para ele, pois seria muito difícil nos acompanhar pelo pedregal do Parque Nacional de São Joaquim, pelos Campos de Santa Bárbara, atravessar o Rio Pelotas, chegar em Vacas Gordas, depois seguir até Urubici, num dia longo e penoso...

Levantei, ajeitei sua colcha felpuda, e Sofia estremeceu; já sonhava com os caminhos, já conversava com as pedrinhas, já cantarolava com o vento...

Meus olhos pesavam, os ruídos se misturavam, os sonhos também se aproximavam; apaguei a luz, convidei a noite, encerrei o dia.

Puxei o cobertor, ajeitei o travesseiro, encolhi-me e baixinho desejei:

- Boa noite, Sofia...

* * *