Pelas terras de Santa Catarina (dia 15)

Quão distante, um dia sonharam,

nova vida, para mais distante ainda...

Largaram tudo, bens, amigos e famílias,

e começaram do zero, em terras estranhas...


Pelas terras de Santa Catarina (dia 15 – terça-feira)
(Paulo R. Boblitz - 18/set/2012)

(Rancho Queimado (Pousada Bauer) - São Pedro de Alcântara)

Acordei com o barulho de Dona Olga pela casa, logo bem cedo, lá pelas 6 e dez, com o dia calmo e claro. Com aquela força toda de ontem, o vento havia empurrado tudo para bem longe. Tomei meu banho e descobri um cheirinho de café que me ia buscar onde estivesse. O pão caseiro, o fui comendo com geléia de Physalis, uma frutinha que já vem embalada pela própria Natureza, azedinha, muito rica em vitamina C, experimentando também as de mamão e amora, mas o que mais gostei foram os dois ovos mal passados, das gemas bem vermelhas.

Dona Olga me contou que tinha ido "pescar" o varal que havia voado com todas as roupas, lá na lagoa, onde muitos peixes as estavam abocanhando pensando que seria alguma comida diferente. Felizmente as minhas roupas haviam sido estendidas no lado protegido, pois do contrário, eu as estaria agora também pescando, com cheiro de peixe pelo meio.

Montei às 8 e meia da manhã, clara e bastante iluminada, de um dia que eu achava que seria fácil. Não foi, pela quantidade de poeira que cheirei e engoli, mas o pedaço é muito lindo e cheio de tradição.

Peguei o rumo de Rancho Queimado, mas antes de chegar na Praça, enveredei pelo caminho de terra, contra a vontade de uma senhora alemã, que teimava e insistia que eu deveria ir pelo caminho mais adiante, asfaltado e mais fácil. Angelina seria meu próximo destino, ali onde Hila havia me falado tão bem de uma pousada das freiras, mas que eu deixaria para conhecer em outra ocasião.

À minha direita, um rio muito conversador, tal qual meu bagageiro que nem lata velha, a cada pedra ou buraco, reclamando. Acompanharam-me, não apenas ele o bagageiro, mas os vários rios que se foram revezando hora à esquerda, hora à direita, numa prosa incansável de águas e pedras que nunca chegam a lugar algum.

No início uma descida, controlada, fotos e mais fotos, pois que até chegarmos em Angelina, tudo é muito bonito. Como não existem facilidades que não dêem lugar às dificuldades, logo uma subida longa começa, e com ela a poeira, que me acompanharia até São Pedro de Alcântara. A subida termina e logo inicio uma boa descida, também controlada, porque tudo está ali há muito tempo: casas bem cuidadas, cheias de flores, o passado não muito distante, preservado...

Uma linda casa parece em ruínas e desabitada, mas as cortinas desmentem o pensamento. O trabalho e requinte na decoração daquilo que quase já não tem cor, remonta aos tempos áureos em que ela foi levantada, resistindo até hoje aos tantos insultos que cada caçamba deve lhe lançar... Tudo nela é bem desenhado, bem talhado; apenas aprendeu a conviver com a poeira, essa que se aproveita dos grandes pneus e tenta deixá-la feia.

Na torre da igreja, o João de Barro sai e me cumprimenta, e lhe devolvo um sorriso; ele entra em sua casa novamente, pois tem coisas mais importantes a cuidar, e eu estou somente a passear... Dou-lhe razão e vou embora, afinal outras belas casas estão a me aguardar, todas frutos do empenho, do prazer em tornar o lugar onde se vive, bonito com flores e decorações, pois cada reino é dirigido por uma rainha diferente, aquela do lar...

Foi um dia em que muitos amigos me cumprimentaram, como as ovelhas que ocupadas apenas gritaram Bééé´!, continuando a comer, como a vaca magra que me veio ver, chamando depois a amiga para não perder...

Foi um dia de muitas vistas bonitas, porque no campo não existem grandes formatos, porque o formato é simples e ao mesmo tempo grandioso, onde as vidas se entrelaçam e vivem o drama do dia-a-dia, quando o galo anuncia o trabalho, e o pôr do sol o descanso...

Angelina estava a apenas 11 quilômetros, os 11 quilômetros mais demorados que já percorri, não propriamente pela dificuldade da subida, mas por conta das tantas belezas que me obrigaram a parar para registrar em minha boa máquina...

Lembro que lá pelo meio da subida, íngreme e cheia de pedras soltas, eu estava a andar pelo trilho de alguma roda dos carros grandes. Nisso me vem descendo um pequeno caminhão, acho que da marca Ford, azul, seguindo os trilhos porque ele não era bobo, mas ele descia, enquanto eu subia bufando, a minha ladeira. Não arredei pé do meu caminho, pois havia muito espaço para ele, e quando estávamos próximos, algo em torno dos dez metros, olhei para ele com a cara mais feia que pude fazer, fazendo-lhe sinais que me saísse da frente. Ele pisou no freio, abriu para a direita dele, deixando-me o caminho livre, logo ele com quatro rodas, descendo numa boa, não podia trafegar dois ou três metros pelas pedras soltas?

Se desceu me xingando, eu não sei; só sei que não deixaria que me matasse a subida, pois existem pontos que se colocamos os pés no chão, perdemos tudo, desde a concentração, até o próprio apoio que o terreno vem precariamente nos fornecendo. Subi a ladeira inteira, não sem antes enfrentar uma parelha de cães que veio furiosamente sobre mim, o que até achei engraçado, pois correram pelo menos uns 300 metros desde lá de baixo da propriedade, subindo até se aproximarem de mim, com os caninos mais pavorosos que podemos encontrar.

Eu tomava conta deles enquanto corriam pela propriedade, e no momento em que pisaram na estrada, os vi pelo retrovisor; eles sempre vêm pela retaguarda. Deixei que se aproximassem até uns 20 metros e então parei bruscamente, sentindo-lhes também uma parada brusca, pois algo não estava a sair conforme os planos daqueles dois filhos de uma égua, ou de duas éguas... Voltei-me para eles com a bicicleta empinada e lhes lancei o latido mais horrível que pude encontrar, que sinceramente até eu fiquei surpreso com tamanho eco que produziu, pois que minha raiva desceu, creio pela montanha abaixo, e satisfeito, morrendo de rir, observei os dois abestados correndo ladeira afora.

Livrarmo-nos dos cães é de certa forma fácil; o problema é que eles nos matam as subidas... O esforço que despendemos para a retomada, não seria necessário se esses cães estivessem em suas propriedades, mas eles teimam em achar que as estradas são também seus territórios, e quem acaba pagando pela energia extra, somos nós. Lembre-se: todo cão se sente em desvantagem quando você coloca os pés no chão, quando ele vê que você não está a fugir dele, pois que essa é a estratégia dele. Pior ainda é quando você empina a bicicleta, e o conjunto todo se transforma em verdadeiro monstro de pés e rodas, grande e desajeitado o suficiente para colocá-los em pânico. Se o cão for determinado, aí sim mostre a ele que acabará se metendo numa grande confusão, pois a bicicleta estará entre ele e você...

Lá no topo enxerguei talvez o mais belo par de torres; lá estava Angelina, e agora era só descida. Almocei num gostoso e confortável restaurante, onde comi muito bem, peguei a sobremesa de pudim, e chupei dois sorvetes de chocolate branco. Dali parti para conhecer a gruta de Nossa Sra. de Angelina, subindo o morro por trás da igreja, onde um pequenino cão encrenqueiro latia para mim, corria à minha frente para novamente me insultar, assim fazendo até chegar lá em cima, onde parou e finalmente veio me cheirar. Antes de entrar no caminho da gruta, um senhor do alto de seu alpendre, me vendo parar para fotografar a igreja, aproveitou e me perguntou de onde eu era, de onde eu vinha...

- A gruta..! Visite a gruta...

Lancei-lhe um sorriso e fiz que sim, e ele satisfeito continuou a se balançar na cadeira que ia e vinha, sem sair do lugar, pois lugares ele deveria ter conhecido pela vida inteira, hoje orgulhoso da Santa que devia venerar...

Depois de uma boa subida, passando pelas 14 Estações do Martírio de Jesus, culminando com a décima quinta estação, quando ressuscitou, finalmente cheguei até a gruta onde jorra a água de uma fonte, que muitos a bebem pedindo graças, mas as graças que eu havia por Lhe pedir, não tinham nada a ver comigo, e assim deixei a água de lado, apenas orando. Nas paredes, centenas de placas em agradecimento às tantas graças alcançadas. O pequeno cãozinho encrenqueiro lá estava agora quieto, talvez entendendo que o momento seria solene e de prece...

Angelina foi um breve descanso, porém faltavam ainda dois bons topetes a serem subidos, e depois somente a descida até São Pedro de Alcântara, uma longa e gostosa descida, não fosse a constante poeira a nos engasgar. Passo por uma linda igreja, que nos mostra suas mensagens em alemão e português.

Até chegar em São Pedro, o passado foi de novo se apresentando, às vezes bem cuidado, às vezes descuidado, mas estava tudo lá, de pé. Já perto de São Pedro, os bairros com seus nomes foram aparecendo nas placas sobre nossas cabeças; só não entendi o que seria, nem o porquê do nome do bairro ser Campo de Demonstração, mas eles deviam ter suas razões.

Chegar em São Pedro foi muito gostoso, pois que vi a cidade toda enfeitada com o preto, vermelho e amarelo da bandeira alemã, pois estavam comemorando a Oktobertanz, que aconteceria nos próximos dias 22 e 23 de setembro. Estranhei o oktober, pois ainda estávamos em setembro. Depois fiquei sabendo que o oktober referia-se à abertura da temporada dos festejos de outubro, por isso a festa era realizada no final de setembro, que traz muita gente dos municípios vizinhos, inclusive de Florianópolis. Foi uma pena não ter participado daqueles dois dias onde acontecem jantares-dançantes, comidas típicas, desfiles oficiais, danças típicas, competições, muito chopp e diversas bandas apresentando-se.

Permitam-me apresentar um linque que bem descreve toda a alegria: http://www.youtube.com/watch?v=4fNe6QcF7Yw

Logo na entrada, a Árvore da Primavera, um poste de madeira gigante, e pendentes em galhos de aço, cada brasão de cada família que ali chegou em 1829, para uma nova vida de muito trabalho e suor, pois tudo ainda necessitava ser desbravado, ser limpo e plantado com as sementes que haviam trazido de sua terra natal. Com certeza, não foi nada fácil levar 5 meses atravessando o Atlântico, para depois enfrentar a selva da Mata Atlântica, suas chuvas e seus frios, pois que tiveram que começar do zero... Por certo, tiveram muitas razões para amar nossa terra, pois que a cuidaram, a cultivaram, a construíram, e hoje seus descendentes perpetuam esse amor...

A Colônia Alemã, como assim foi chamada no início, teve tudo para ser um desastre, por falta de estrutura do próprio governo que os recebera sem estar pronto para isso. Para quem tiver um interesse maior, vale uma visita ao endereço: http://www.tonijochem.com.br/col_saopedro.htm

Próximo da Árvore da Primavera, uma homenagem aos primeiros imigrantes, estátuas representando o pai com a enxada, o filho menino que já o ajudava, a mãe que está a segurar uma menina no colo; no plano inferior, uma criança que ainda devia engatinhar, dentro de um cesto de vime, e aos pés do pai e do menino, um cão que deve ter sido a alegria da meninada. Contaram apenas com seus braços, suas tradições, enfrentando um mundo novo...

No centro da pracinha, uma bela árvore a também contar muitas histórias que viu passar. De frente para a igreja, a casa de Dona Dalva, que tão bem me recebeu, improvisando um jantar que ficou muito gostoso. Nos postes de eletricidade, circundaram-nos com as cores da Alemanha, integradas com as do Brasil, ou seja, o preto, o vermelho, o amarelo e o verde...

Falando em cores, eu estava marrom de tanta poeira. Conversei com Dona Dalva e ela jogou tudo dentro da máquina. Eu chegaria em Florianópolis com tudo limpinho e cheiroso.

A igreja de São Pedro de Alcântara é muito bonita e domina a cidade inteira. Ela já foi cor de rosa, e hoje é cinzenta. Seu interior é bem cuidado e a porta estava apenas encostada. Mexi na maçaneta e aquela prancha enorme começou a deslizar sobre um rodízio; olhei para o chão e não vi marcas...

Seu interior é simples, mas nem por isso deixa de ser belo e elegante, sóbrio com farta iluminação natural e excelente ventilação. Sua abóbada é em azul celeste, culminada por oito vitrais. A madeira nobre dá o tom marcante com muita personalidade, ao altar, ao púlpito, aos santuários menores, ao piso que se intercala em cores claras e escuras.

Ali agradeci tudo de bom que me acontecera durante meus dias pelas terras de Santa Catarina, e fui dormir pensando no meu amanhã, que enfim chegaria ao fim...

Quando saí e fechei a porta, notei a mariposa que não estava lá quando entrei; tinha a mesma cor da rosácea que enfeitava a madeira, duas manifestações simples, uma da Natureza, outra de homens artesãos...

Foram 50,1 km muito bonitos, em 7 horas e 49 minutos, queimando 7.493 calorias, onde subi acumulados, 995 metros.

* * *

Pelas terras de Santa Catarina (dia 14)

A persistência é uma virtude, sim,

porém só a conquistamos quando somos valentes,

desculpem-me a falta de modéstia,

mas tenho meus 60 anos,

de bons motivos para comemorar...


Pelas terras de Santa Catarina (dia 14 – segunda-feira)
(Paulo R. Boblitz - 17/set/2012)

(Anitápolis (Pousada Recanto das Cachoeiras) - Rancho Queimado)

Naquela madrugada, São Pedro rufou os tambores e os trovões brincaram a valer, acordando todo mundo. Meditei sobre o dia a ser molhado, virei para o outro lado e novamente peguei no sono, não sem antes dar vivas a cada estrondo que acontecia...

Segunda-feira era dia de trabalho, e amanheceu bem claro e azul. Acho que São Pedro estava apenas inspirado e alegre, quem sabe nalgum momento de criação, onde a partitura devia ser de somente percussão.

O café da manhã estava caprichado, com queijo curado, manteiga e nata, geléias, doces, pães, leite, café forte e um gostoso suco. De onde eu tomava meu desjejum, avistava a horta bem cuidada do casal, que depois fui conhecer. Plantavam de tudo e até mostraram o que era Azedinha, aquilo meio azedinho que havia reparado na salada verde do jantar.

Fui embora para pegar a estrada novamente, pois já eram 8 e 20 da manhã. Sabem aquela subida toda no concreto? Eu a desci andando, levando minha bicicleta de lado, freando bem leve, pois meus freios não estavam bem. Logo cheguei na ponte sobre o rio da Prata e um garrote ficou me olhando, quem sabe a pensar que tipo de bicho ele estava observando. Mandei-lhe um bom dia e atravessei a pequena ponte de madeira. Na estradinha, ainda lancei um último olhar para meu chalé, que lá de cima me observava por entre as araucárias...

Agora o caminho até Anitápolis estava fácil, pois era praticamente só descida, mas o que eu não sabia, era que quando chegasse em Anitápolis e fizesse meia volta, um vento forte me massacraria bem de frente, e ele estava realmente forte. Conseqüências da brincadeira de São Pedro durante a madrugada? Seria o tal Vento Sul? Não sei, só sei que eu estava subindo e ele me atrapalhando, muito!

Esse vento me acompanharia até quase Rancho Queimado, salvo quando deixei o asfalto da SC-407 e entrei numa estrada de chão, protegida em seus flancos por grandes árvores.

Esse dia provaria depois ter sido bastante difícil, porque teria que subir as duas belas corcovas daquele grande camelo ali parado, por sinal, olhando e de frente para o vento, a primeira, com cerca de 300 metros para cima, e a segunda, algo em torno de 520 metros, ambas com subidas dentro das próprias subidas, pois que foi um perde-ganha bem demorado...

Foi um dia também de poucas fotos; eu devia estar cansado, não o corpo, mas a mente, essa que, se não estivermos vigilantes, nos rouba o ânimo, a vontade, a inspiração... O asfalto também não ajudava muito, pois que é muito prático, feito para isso mesmo, todos correrem para um logo chegar...

Em Rio Pinheiros, uma igrejinha simpática pouco antes da ponte que cruzava o rio Braço do Norte. Juntando-se ao vento, a fome já começava a apertar. Olhei o relógio e já eram 11 e meia; urgia cuidar, pois estava na metade do caminho...

Encontrei um bar logo depois de Rio Branco, que não tinha almoço, mas serviu-me dois sanduíches reforçados com queijo e ovo. Enquanto comia, ia ouvindo uma turma da empresa que está trabalhando naquela rodovia; jogavam sinuca na varanda ao lado. No balcão, um morador dali perto, já bem triscado com a voz embolada, mexia com todos eles, numa bela inteligência desconcertante... Daqui do meu lado, sorria com as coisas que ele dizia sem maldades, e que todos pareciam também estar gostando, e lembrei que não é a Natureza que desperdiça, mas o próprio homem que joga fora...

Paguei a conta, aprontei as tralhas e despedi-me de todos. Eu já estava montado, pronto para empurrar o pedal, quando ele se voltou para mim e desejou que eu fosse com Deus, pois eu era o único certo dali entre todos eles...

Sorri, fiz-lhe um sinal de positivo, e ele pediu mais outra; estávamos a navegar de formas diferentes...

Pelo roteiro, faltavam apenas 11 quilômetros para sair do asfalto, mas não sabia o que tinha havido, pois minhas marcas não batiam com a realidade da estrada; coisas da vista que, já cansada, enxergaram algum número trocado quando eu ainda construía o roteiro, e dele a seqüência seguiu toda errada... Assim, há muito que havia abandonado as marcas, guiando-me apenas pelas descrições, o que me fez prestar mais atenção à paisagem, do que ao hodômetro. Fiquei atento a todas as placas e quase passo batido pela entrada onde deveria largar o asfalto. Ela só existia para quem vinha em sentido contrário...

Agora a estrada era de chão e a paisagem mudara da água para o vinho. As propriedades, os animais, os condomínios de luxo; passei por um deles onde alguns moradores chegam de helicóptero... Próximo de meus 30 quilômetros, cruzava a BR-282, verificando que havia um erro de 18 km em meu roteiro. Olhei o relógio e já eram 3 e 20 da tarde, e pelas contas, ainda faltavam cerca de 20 quilômetros, mas a altimetria informava que agora era só descida, e me deixei levar, e comecei a escutar um trec-trec-trec, sempre que passava por alguns buracos. Na pousada, descobri que meu bagageiro estava quebrado numa das pernas do lado direito. Dali em diante, teria que maneirar, para que a outra não quebrasse também; era o mesmo lado em que a bicicleta ficou deitada, quando de minha queda lá no Parque Nacional de São Joaquim. Fosse como fosse, esse bagageiro já durava 4 belas viagens; talvez já estivesse na hora certa de se aposentar.

Faltava pouco para as 4 horas, quando cheguei na Pousada Bauer, encontrando a Dona Laura que me bem recebeu, tendo reservado uma gostosa cama para mim. A pousada distava da cidade, da Praça, como eles se referiam ao centro, cerca de 4 quilômetros, e eu teria que dar um pulo até lá, pois Dona Laura não servia o jantar, ainda mais quando verifiquei que não tinha sinais de celular, e na cidade existia uma rede de computadores onde eu poderia alugar alguns minutos para pôr a vida em dia.
Ligar para casa eu consegui, mas utilizar a internet, de jeito nenhum, pois que eu havia esquecido os óculos na pousada. Restava-me então um bom jantar, mas todos os restaurantes da cidade fechavam na segunda-feira, e alguém me ensinou que um hotel logo no fim da praça, servia alimentações. Fui até ele, mas só depois da 18 horas. Comecei a esperar, e aquele vento que tanto me importunou durante o dia, transformou-se em ventania, carregando toldos, apressando as pessoas, fazendo subir um caminhão de poeira e areia que insistia em querer entrar em nossos olhos. Olhei o relógio e ainda faltava meia hora para que eu pudesse fazer o meu pedido.

Levantei e cheguei até a porta do hotel-bar-restaurante, e não me agradei do vento e das nuvens grossas que se enroscavam nelas próprias, todas cinzentas bem escuras. Por sorte eu estava com o agasalho, pois quando saíra da pousada, fazia um sol com bastante mormaço, mas já havia aprendido que em Santa Catarina, o tempo esforça-se para não ter lógica. Agradeci ao meu bom Anjo da Guarda e tomei uma decisão: voltei para dentro e perguntei o que se tinha para comer naquela hora. Resultado: meu jantar foram dois pastéis e uma coxinha. Precavido também levara meu farol dianteiro e meus dois piscas vermelhos no bagageiro. Liguei todos eles a piscarem, puxei bem o zíper do agasalho e fui embora, já de noite com óculos escuros, recebendo verdadeiras pancadas pelo peito, e se eu tivesse alguma área aerodinâmica pelo conjunto, garanto que teria levantado vôo.

O vento entrava por baixo e tentava levantar camiseta e agasalho por insuflação. Parei e coloquei tudo por dentro das bermudas, e devagar, porque simplesmente não enxergava nada com os óculos escuros e com os pequenos grãos de terra entrando em meus olhos, fui seguindo, hora descansando porque protegido por algum paredão, hora enfrentando aquele mar de vento brabo que me queria voltar atrás. Seguia pelo rastro das cores desiguais entre estrada e vegetação, olhos espremidos pior do que chinês, e finalmente cheguei na pousada, porto seguro onde o vento não mais me faria mal.

Dona Laura ainda estava lá, tomando um café quentinho com fatias de pão com geléia. Ofereceu-me uma cadeira e também a pequena refeição, mas aceitei apenas o café que cheirava gostoso de tão forte. Estendeu-me o açúcar, mas o recusei, porque café só é gostoso se tiver gosto de café. Conversamos um bom tempo e fiquei sabendo que no dia seguinte, estava partindo para São Paulo com o esposo, que estaria fazendo exames para uma operação. Mostrou-me onde colocaria a chave da porta da rua, caso eu necessitasse sair, e me disse que de manhã bem cedo sua Colaboradora viria para fazer o café. Aproveitei e acertei nossas contas, restando apenas acertar com a Dona Olga, a lavagem de boa parte de minhas roupas.

Dona Laura ainda ensinou-me a comer kiwis maduros, que lembrei ser da mesma forma com que comemos sapoti lá no Ceará, partindo-o no meio, e retirando-lhes a polpa com uma pequena colher, sobrando apenas a casca, que por semelhança, também tem pelos. Despedimo-nos, desejei-lhe boa sorte lá em São Paulo, e quando ela já estava saindo, lembrou-se de alguma coisa, voltou e foi lá dentro, retornando com uma garrafinha de licor de amoras, que me presenteou.

Deitado em minha cama, escutava o vento a tentar arrancar as telhas, acabando por pegar no sono com aquela estranha cantilena de estalos e uivos. Quando cheguei em Florianópolis, dois dias depois, fiquei sabendo que a ventania havia atingido 80 - 85 km por hora. Não sei se esses foram os valores por mim enfrentado, mas confesso que aquele vento em tamanha intensidade, foi o primeiro em minha vida. Dia seguinte, novamente passando por onde eu havia passado no dia anterior, galhos, folhas e muitos pinhões pela estrada...

Naquele dia pedalei com bom custo, 54,8 quilômetros, em 8 horas e 20 minutos (contando com a ida e volta até Rancho Queimado), queimando 9.211 calorias, meu novo recorde, subindo acumulados, 1.969 metros, creio que também um novo recorde para mim. As descidas acumuladas totalizaram 1.648 metros, e minha velocidade máxima foi de 46,3 km por hora, a descer livre pelo asfalto...

* * *

Pelas terras de Santa Catarina (dia 13)

Um lugar não é totalmente bonito,

se não tiver as pessoas bonitas também,

nesse caso referindo-me à hospitalidade,

à educação e cultura, o trabalho e o empenho,

porque são essas pessoas que modificam o meio,

para melhor...

Pelas terras de Santa Catarina (dia 13 – domingo)
(Paulo R. Boblitz - 16/set/2012)

(Santa Rosa de Lima (Pousada Doce Encanto) - Anitápolis)

O dia havia amanhecido muito bonito, e os passarinhos faziam sua festa. Abri minha janela e os cantos amplificaram. Não muito distante, o que achei parecido com um pé de figo, mas não tinha certeza. Tomei um bom banho e me arrumei, deixando pouca coisa fora dos alforjes para quando subisse, aquilo que sempre guardamos por último.

A mesa do café já estava posta e muito rica com produtos dali mesmo da propriedade, como melado de cana, geléia de tangerina com pimenta, queijo curado, pão integral, pão de milho, café forte, leite gordo, iogurte de morango e muitas frutas variadas. Eles ainda fabricam doces e licores.

Hila havia vindo pela SC-407, mas Seu Valnério havia me ensinado um caminho mais bonito, mais "interior" como ele bem frisou, passando por uma ponte coberta e pela igreja de Santa Catarina, e por ele enveredamos.

Anitápolis é a segunda cidade catarinense a homenagear Anita Garibaldi, e pela estradinha que margeou o rio do Meio, quase que o caminho inteiro, seguimos a ouvi-lo de vez em quando a discutir com as pedras. O caminho é lindo, mas havia um problema: metade dele eu havia construído no tato, farejando as imagens borradas do Google Earth, quando deveríamos nos utilizar bastante do verbo. Era um domingo e as pessoas costumam parar em casa, o que facilitaria, caso tivéssemos alguma dificuldade com bifurcações inesperadas.

Logo no início, uma bela subida para nos aquecermos da forma mais dolorida, curta, porém empinada. A seguir, uma descida longa de quase 3 quilômetros, e daí em frente foi só subindo, e subindo, e subindo até quando alcançamos os 795 metros, para começarmos a descer a ribanceira forte até Anitápolis, mas antes disso, passamos pelo povoado Rio do Meio, paramos na ponte coberta que havia sido reformada, cheia de charmosas jardineiras em suas duas laterais, retrato do bom gosto e boa vontade de quem mora ali por perto, pois que flores necessitam ser cuidadas. Na marca dos quase 9 km, chegamos no povoado e igreja de Santa Catarina, simples e bem cuidada, com a conjugação do verbo ainda como antigamente.

A estradinha sinuosa e sempre com o rio do Meio nos acompanhando, hora subia, hora descia, e fomos assim até a marca dos 16 km, ali onde o meu roteiro avisava a mim mesmo das imagens borradas do Google Earth, portanto, onde a atenção deveria ser redobrada, e foi exatamente aí quando iniciamos a subida forte que nos levaria até o topo com quase 800 metros. Foi uma subida lenta para mim, que não tinha como acompanhar as pernas fortes da Hila, e lá estava ela, sempre num ponto bonito a me aguardar. A preocupação tornou-se maior, pois eu ficaria em Anitápolis e ela seguiria viagem até Florianópolis. Até sugeri nos despedirmos ali mesmo naquela subida, exatamente para que ela ganhasse tempo e não se atrasasse, mas ela sorriu e não aceitou, afinal ela havia planejado pedalar comigo de Santa Rosa de Lima até Anitápolis, e era isso o que aconteceria; que eu ficasse descansado, pois que se algo desse errado, ela pernoitaria em Angelina ou Rancho Queimado.

Para piorar as coisas, o céu estava mudando e trovões começaram a soar sobre nossas cabeças, mas felizmente estavam de passagem; ainda chegamos a pegar um chuvisco fino, mas bem curto que não chegou a nos molhar. Quase no topo, pelo meio de um pequeno povoado, Hila debaixo de uma laranjeira, comia, creio que já a segunda. Parei, estiquei o braço para cima e também roubei uma, dulcíssima. Apareceu uma senhora ali moradora e nos ofereceu algumas de sua própria propriedade, pois as que estávamos chupando, a dona não gostava que tirassem. Agradecemos e Hila ainda arrumou um limão galego para espremer na água que carregava, e dali partimos com a orientação de quem conhecia o caminho, mandando-nos pegar à direita só na segunda bifurcação.

Restava uma bela e deliciosa subida comprida, deliciosa porque sua inclinação era convidativa, solo compacto e arenoso, sem valetas, pedras ou buracos. Alguns cães latiram para a Hila que já ia lá na frente, e depois vieram latir para mim. Eram os primeiros do dia, e depois verifiquei que foram os únicos, ao contrário do dia anterior, que a todo instante recebia uma parelha deles atrás dos meus calcanhares, quando parava e os encarava, e eles desistiam e voltavam por eu não deixá-los na brincadeira que é perseguir gente assustada. Enquanto os cães sempre me hostilizavam, o gado sempre vinha em minha direção, curioso...

Fiz um roteiro por onde devem passar poucos cicloturistas, caso contrário, os cães já estariam acostumados...

Lá em cima, Hila já me aguardava novamente, a olhar e me mostrar a pequena igrejinha que havíamos cruzado há pouco tempo; lá embaixo, parecia de brinquedo... Suspirei fundo e me alegrei, sempre me alegro quando olho para trás e verifico os verdes que cruzei, as montanhas que circundei, os "esses" poeirentos que percorri, os ventos que deixei, meu passado logo ali ao alcance da vista...

- Vamos embora Hila, que você já está atrasada...

E partimos e chegamos enfim ao tão sonhado topo, que vinha se escondendo e correndo mais para longe, a cada curva que fazíamos. Foram cerca de 430 metros para cima numa ladeira só, em quase 7 quilômetros. Dali em diante, por cerca de 5,5 quilômetros, enfrentaríamos uma descida um tanto salgada, e meus freios não estavam me ajudando muito, pois havia esquecido de tentar esticar-lhes novamente os cabos. O freio traseiro deveria estar com muita sujeira no conduíte, porque parecia ter dois estágios...

Hila me guiou até um restaurante que ela já conhecia, mas ele estava fechado para visitantes, pois havia um evento de aniversário acontecendo. Fomos até o outro lado da praça e encontramos um aberto, e conseguimos raspar suas panelas, porém almoçando bem. Terminamos o almoço às duas da tarde e partimos debaixo de uma leve garoa que logo passou, e 200 metros adiante nos despedimos, pois eu seguiria pela esquerda pela estrada do Maracujá, e a Hila pela direita, pela SC-407, em direção à cidade de Rancho Queimado, e de lá para São Pedro de Alcântara, e depois para Florianópolis, onde descobri depois, havia chegado por volta das 10 da noite.

Hila conhece tudo aquilo muito bem, pois pedala sempre por tudo quanto é recanto, e até acampa por onde passa. Tem pernas fortes, é valente e tem um bom equipamento. Recentemente concluiu um Audax 300. Sorrindo, ela me contou que tinha sido parecido com o Audax. Vale uma visita aos vários endereços que ela tem. Recomendo:





Quando cheguei em casa, uma grata surpresa quando fui visitá-la em seu endereço no Picasa. Hila havia me fotografado lá do asfalto, que corre paralelo ao rio e à própria estrada do Maracujá, e até berrado meu nome, mas não consegui ouvi-la.

Continuei pela estrada subindo, mas errei a entrada e continuei a subir para Alfredo Wagner, achando estranho, pois que havia esquecido de ligar meu GPS depois do almoço e perdido a quilometragem, mas com certeza os 6 quilômetros já haviam passado. Aproveitei um carro que descia e a senhora que o dirigia, informou que eu deveria voltar até uma casa de madeira na cor lilás, e ali dobrar à esquerda. Em pouco, cheguei à entrada da Pousada Recanto das Cachoeiras. Olhei em frente e dois caminhos em concreto, na largura dos pneus de um carro, levavam-me para cima, mas bem para cima...

- Chiii..! se é de concreto, até carro sofre... - pensei com meus botões.

Sofri um bocado, pois que tive que parar 3 vezes a minha subida para descansar, e eu estava empurrando... Foram 600 metros de caminho, para vencer os 70 metros de desnível, mais de 11 % de inclinação. Lá em cima, já precisando almoçar novamente, lembrei que a Hila havia me recomendado escolher os chalés do alto, e quando vi o primeiro, mais 30 metros para cima, desisti.

Seu Gabriel apareceu para me receber e lhe perguntei:

- O Sr. tem algum chalé aqui por baixo mesmo?

Ele sorriu e disse que sim, mas que antes eu entrasse para tomar um café, fazer um lanche. Lá dentro Dona Marilda, sua esposa, atendia outros hóspedes que já estavam indo embora. Nos apresentamos, os hóspedes me olharam divertidos e com interesse, conversamos um pouco, de onde eu era, de onde eu vinha, para onde ia, e mais algumas perguntas, enquanto eu mastigava uma fatia de bolo gostoso junto com uma bela xícara de café. Já descansado, repeti a xícara de café e fui com ela para fora, pois necessitava descarregar a minha amiga, no que Seu Gabriel, acercando-se, me ajudou, segurando pelo guidão.

Dona Marilda até sugeriu que eu ficasse num daqueles chalés lá por cima, no que lhe agradeci sorrindo, informando que naquele dia, eu já havia subido o bastante.

Fiquei no Chalé das Araucárias, com uma gostosa varandinha que dava para ver de onde eu tinha vindo, e as várias montanhas que vão se amontoando umas sobre as outras, onde as nuvens já se aninhavam para dormir e esfriar...

Tomei meu banho, lavei minha roupa e fui agasalhado para o meu jantar, iluminando meu caminho com meu farol. A minha amiga descansava dentro de um velho paiol, junto de uma sacaria, madeira estocada, e acho que um velho trator, além de ferramentas e outras coisas mais. Ela estava bem acompanhada...

Meu jantar, olhando para as montanhas escuras lá fora, foi muito apetitoso: torta de legumes, salada verde, batata com maionese caseira, vagem e pepino em conserva, arroz, filé de peito de frango, farofa, e dois ovos caipiras fritos mal passados, cujas gemas eram quase vermelhas. De sobremesa, doce de leite e sorvete de chocolate. Depois, um cafezinho bem quentinho. Jogamos conversa fora por um tempo e fui me recolher, escrever minhas experiências boas pelo dia. Quis ligar para saber da Hila, mas não tinha sinal. Agora o manto da noite a tudo cobria, e seus sons ganhavam vida... Lá embaixo, o rio da Prata corria manso, embora sempre discutindo com alguns matacões. Sua canção de ninar me chegava confortável, e em pouco tempo, pegava no sono.
Foram 36 km em 6 horas e 20 minutos, 7.305 calorias jogadas fora, e 1.236 metros em subidas acumuladas.

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