Pelas terras de Santa Catarina (dia 3)

A fraqueza é um estado de espírito,

nossa Fé é Senhora e se impõe...

Podemos!

Compete a nós, essa pronúncia...


Pelas terras de Santa Catarina (dia 3 - quinta-feira)
(Paulo R. Boblitz - 6/set/2012)

(Santo Amaro da Imperatriz (Hotel Santo Amaro) - São Bonifácio)

Eu havia programado os dois primeiros dias apenas para aclimatação, de propósito, porque meu terceiro dia já começaria a apertar, e eu estava sozinho... Num planejamento, e o meu já durava quase um ano, não devemos contar com a sorte, embora ela nos persiga em constantes conflitos com o azar. Pedalar por Santa Catarina significa longos trechos sem viva alma, disso eu já sabia quando ali percorri o Costa Verde & Mar, onde as casas estão por lá, mas todos estão pelo trabalho, ocupados.

Meu peso não estava leve: 15 kg da bicicleta, cerca de 20 kg entre alforjes, mala-bike, bolsa de guidão, ferramentas, kits de reparos, duas câmaras de ar reservas, um pneu reserva, uma bomba extra que serviu apenas para encher a suspensão, e água, sempre 3 kg dela, bem como meu próprio peso, quase 95 kg de otimismo. Eu deslocava cerca de 130 kg com minhas pernas, e isso nas subidas, pesa, pesa muito...

São Bonifácio seria o teste inicial e ele foi bastante satisfatório. Foi esse trecho quem me deu toda a segurança que necessitava. Somente em alguns pontos pouco antes da chegada novamente no asfalto da SC-431, subindo a serra do Cubatão, necessitei pôr os pés no chão para empurrar, porque a subida era bastante empinada, a roubar-me apenas energia a brigar constantemente com a bicicleta, para que ela não bancasse o cavalo chucro a levantar a roda dianteira. Em cicloturismo não competimos, não provamos absolutamente nada, a não ser do maná que nos é despejado constantemente pelas coisas de Deus, toda aquela beleza que por instantes, só a nós pertence...

A subida da serra lembrou-me várias vezes a serra da Luminosa, cheia de pedras soltas e valas. A visão lá de cima também é surpreendente.

Quando montei na minha amiga azul, já eram 8 horas de uma manhã bem ensolarada. Desta vez mantive o rio Cubatão à minha esquerda, mas ele logo passaria para a direita, acompanhando-me com sua conversa até a subida da serra. Fugindo da BR, a cruzei na entrada de Águas Mornas, onde existe o entroncamento para Caldas da Imperatriz. Toda a região tem sua História relacionada com a Imperatriz Teresa Cristina, esposa de D. Pedro II. Ali foi construída a primeira Estância Termal do Brasil.

Até ali só havia pedalado pelo asfalto e paralelepípedos, e adorei quando os peixes começaram a ser fritos em óleo bem quente, o som de pedrinhas sendo espremidas pelos meus pneus, mas o asfalto logo retornaria, dando lugar aos blocos sextavados de concreto. Até ali, a sujar minhas paisagens, os tantos cartazes de futuros descarados e mentirosos, esses todos candidatos que serão eleitos...

Logo abandonava a BR-282 e entrava para Vargem Grande. Logo no início existe o retrato da temporariedade, porque nada é para sempre. Aquilo que um dia já foi belo, um dia ficará feio, mas não necessariamente perderá a classe...

Novamente retorno à BR-282, onde paro pouco antes da entrada para Santa Cruz da Figueira, no Restaurante e Lanchonete Sabores da Terra, um amontoado de frutas, lembrancinhas e Dona Goreti a servir um delicioso caldo de cana, seguido de um café forte e amargo. Saí dali mais forte e descansado, até encontrar um cão que me viu antes mesmo de chegar, insistentemente a latir. Na medida em que me aproximava, ele também se aproximava com ares raivosos e muitos dentes, mas num plano mais elevado que eu, protegido. Parei, tentei fazer festa, chamei-o de amigo, e a cada tentativa, mais ele latia. Chamei-o para uma conversa mas ele não veio, então o mandei à merda e fui embora. Acho que 1 km adiante ainda o podia ouvir em sua indignação; minha família não é tão grande assim...

Ainda bem que de bicicleta, não conseguimos desrespeitar nenhuma lei local; Observem a placa..!

Os mansos dominarão a Terra... Parei e o aguardei, conversamos um pouco, ele me cheirou, mas mesmo parecendo meio abandonado, o lugar dele era ali. Nos despedimos e levei uma boa lembrança dele comigo; foi o único cão que não me hostilizou durante a viagem inteira... Cara triste, fez-me pedalar com muitas reflexões à frente, porque nessa vida, até para nascermos cães, temos que contar com a sorte... Aprendi isso pelo meio da selva amazônica, num fim de tarde de um domingo muito chuvoso que não passava, já próximo do desembarque, saudoso de casa, cansado do único divertimento, que era trabalhar...

Minha programação era almoçar no Restaurante Recanto da Ilha, onde existe uma bela cachoeira, mas este só abre aos domingos. Tentei visitar a cachoeira mas um cão atravessou-se em minha frente disposto a não deixar. Chamei, chamei e não apareceu viva alma. Então fui embora dali. Minha idéia era pernoitar na Pousada das Hortênsias, mas quando lhes telefonei, ninguém atendia. Descobri então, com a Secretaria de Turismo de São Bonifácio, o Hotel Shirley, que me aprontou dois sanduíches triplos reforçados, com ovo, queijo e presunto, pois não havia nenhum restaurante aberto na cidade àquela hora. Dona Shirley ensinou-me um caminho por onde eu deveria atravessar uma ponte de arame, a cruzar um rio bonito. Contou-me a história dos Heróis da Guerra da Garganta, heróis esquecidos que foram lembrados pelo pároco da cidade, que morreram durante a Revolução de 1930. Por que os heróis sempre morrem..?

Lavei minha roupa e desci, conversando bastante com Dona Shirley, enquanto vez ou outra ela levantava para atender alguém. Todos que passavam ali em frente, eram cumprimentados e cumprimentavam, pois em São Bonifácio todos se conhecem, e a cadeia faz mais de 20 anos que não prende ninguém, aliás, ela me disse que o único preso nesse tempo todo de existência, teria sido alguém de fora da cidade. O sol se foi e ela ensinou-me uma pizzaria, único lugar aberto onde eu poderia comer alguma coisa no jantar, o Chopperia Nacional, onde a Senhora entre um pedido e outro, foi ensinando como fazer uma maionese caseira, deliciosa, a cada vez que passava pela minha mesa ditando um item; às vezes se perdia e perguntava: onde foi que parei.!? Enquanto mastigava minha pizza de frango, bacon e queijo, saboreava também o delicioso Chopp Alemão Klaus Bier, de Foz do Iguaçu, no Paraná.
Quando chegava perto de São Bonifácio, cruzou por mim uma caminhonete da Renault com três bicicletas penduradas na traseira; buzinaram e fizeram festa quando me viram, e lhes respondi com a mesma efusão. Quando cheguei em São Bonifácio, lá estavam eles estacionados a conversar com alguém da cidade. Nos cumprimentamos novamente e segui em frente. Dia seguinte os encontraria em São Martinho, quase uns 20 ciclistas, apressados para voltar por onde eu tinha vindo; nem deu tempo para informar que a descida que eu havia feito, pouco antes de chegar em São Martinho, teriam que subir empurrando, extremamente íngreme e cheia de brita solta, um crime contra qualquer ciclista. Se tive meus medos nessa viagem, essa descida foi um deles, porque simplesmente a bicicleta descia rolando, vez ou outra atritando contra o chão que parcamente me segurava...

São Bonifácio é uma cidade madeireira, e caminhões e caminhões passavam constantemente carregados de toras. Descobri que no dia seguinte, comeria bastante poeira; dei de ombros... Que o dia seguinte chegasse para eu descobrir o gosto que a poeira tinha...

Foram 47,5 km, 7 horas e 23 minutos de pedal, 5.682 calorias consumidas, 1.756 metros em subidas acumuladas. Começava a esquentar...

Dia seguinte logo cedo, todas as portas de Dona Shirley fechadas, pois a pousada é no andar de cima. O vento uivava gelado... Chamei pelo seu nome e ela apareceu; a porta estava fechada por causa do vento, que não era vento, e sim ventania...

* * *

2 comentários:

  1. olá, amigo
    como é bom viajar em teus relatos. e reviver estes caminhos....
    São Bonifácio é tranquilo mesmo: acampei umas vezes sozinha no campo de futebol.

    abraços

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