Pelas terras de Santa Catarina (dia 9)

Não subestime; tenha humildade...

Proteja-se; não dê chance ao azar...

Também não confie na sorte...


Pelas terras de Santa Catarina (dia 9 – quarta-feira)
(Paulo R. Boblitz - 12/set/2012)

(Bom Jardim da Serra (Pousada Santa Vitória) - Urubici)

Cansado da subida da Serra do Rio do Rastro, acordei tarde mas não dei muita bola, afinal seriam apenas 62 km até Urubici. Isso me seria cobrado ao longo do dia, mas não me arrependo; apenas não o faria sozinho novamente, pois agora já conheço os perigos daquele caminho. Faltavam 15 minutos para as dez, quando montei e comecei a pedalar. Até esqueci das bolachas que Dona Cleomar mandou pegar, mas eu estava com boa reserva de água: as duas caramanholas cheias, mais 2 garrafinhas nos alforjes.

O plano era seguir por dentro do Parque Nacional de São Joaquim, área protegida. A entrada ficava logo a 20 metros da pousada de Dona Cleomar, estrada de chão, pedras socadas, terra úmida e um sol brilhante. À minha direita, um riacho corria alegre despejando seus ruídos por entre as araucárias.

As cercas de arame não existiam, dando lugar aos muros de pedra, bem trabalhados pois que não eram pedras amontoadas, mas sim como se costuradas, uma segurando a outra, sem nenhuma argamassa. Devem ser centenários... Faz tempo, li que não existem hoje em dia, pessoas que saibam fazer tais muros, e apesar de acharmos que é só ir juntando as pedras, não é bem assim. Existe um trabalho todo de encaixe, e as pedras, por causa disso, devem ser o tempo inteiro escolhidas, colocadas, retiradas até que se encontre a pedra correta para aquele lugar. A dificuldade reside em juntar pedras grandes com pequenas, médias e até minúsculas.

Estão ali há bastante tempo para quem quiser ver... As Barbas de Velho também...

Se os muros eram de pedra, era porque pedras não deveriam faltar ao longo do caminho, e isso eu descobriria logo cedo, pedras, milhões delas a infernizarem minha vida.

No começo tudo foi bem, mas à medida em que eu ia avançando, o terreno ia ficando cada vez mais difícil.

Pedras, pedras, pedras, pontiagudas, chatas, amoladas, redondas, lascadas, soltas, presas, quadradas, pequenas, grandes, todas prontas atrás de uma boa mordida, todas querendo me derrubar, todas elas querendo me segurar...

Cada uma delas a servir de calço para minhas rodas, às vezes para as duas ao mesmo tempo. Pedras que rolam deixando o vazio debaixo de si, isso a cada centímetro que se vai ganhando.

Não havia progresso, porque a tração estava por demais comprometida. Não havia estabilidade, pois não havia chão firme debaixo de nós. Não adiantava eu desviar de uma, porque à frente encontrava outra.

Isso só tem uma resposta: desperdício de energia, porque acabamos, muitas vezes, pedalando no vazio, fazendo às vezes, uma força desproporcional, não necessária, e até chegava a ser engraçado, porque o aclive não era acentuado. Eu só não tinha rendimento...

Subi, subi até dizer chega, piorando as coisas porque parava para fotografar paisagens simplesmente foras do comum. Seria um crime, com tanto sol, eu deixar aquilo tudo passar. O Carlos Beppler já havia me anunciado, das tantas belezas que eu encontraria.

Impressionante a quantidade de barulhos d'água, que correm sempre ao nosso lado, mais acima ou mais abaixo, que o vento em burburinhos e fofocas, nos traz com bom gosto e prazer.

Assim que atravessei o rio Pelotas, enveredei por uma porteira e comecei a desviar das poças. Meu pneu dianteiro passou a 3 centímetros da cabeça de uma bela cobra. Levei um susto danado, levantei as duas pernas bem alto e deixei a bicicleta andando por si mesma. Parei 2 metros adiante e a cobra estava lá, apenas com a cabeça levantada, talvez mais assustada do que eu. Quando mostrei as fotos para seu Walter, lá no Vale do Rio Canoas, onde andando a pé junto ao rio Canoas, faltou pouco menos de um metro para que eu pisasse noutra cobra, ele me disse que era uma rateira. Rateira ou sapeira, cobra é cobra, e delas quero distância.

O caminho foi todo em sobes e desces, mas cheguei no pior de todas elas, que me fez sair de 1.226 metros, até os 1.644 metros, um verdadeiro inferno de subida distribuída em 15,5 km. Não gosto dos asfaltos, mas nunca desejei tanto chegar até ele, como naquele dia que já começava a virar, tornando-se bem nublado e esfriando. Minha preocupação era a noite que assim viria mais cedo, porque o sol se põe apressado atrás das montanhas.

Todas as descidas que tinha feito até ali, nenhuma delas tinha sido ligeiro, porque é loucura descer carregado por entre pedras soltas, ou seja, eu não tinha rendimento nas subidas, e do mesmo jeito nas descidas.

Bacana foi quando cheguei num córrego que cruzava a estrada. Fui até ele, verifiquei o fundo cheio de pedras e achei que dava para passar; ledo engano, pois quando estava bem no meio dele, uma graciosa achou de rolar, saindo de debaixo de mim, e lá mesmo estaquei, mergulhando os dois pés dentro d'água. Se a coisa estava ruim, havia acabado de piorar...

Praguejar não adianta, e logo tratei de fotografar um recanto quase em frente, que achei lindo, do Paraíso...

Mais um pouco encontrava um pequeno caminhão com uma humilde mudança sobre ele. O dono dele estava injuriado, pois as pedras haviam cortado o pneu dele. Precisava ir buscar uma parelha de bois para terminar o serviço, e esconjurou a turma da prefeitura que não ligava para aquele caminho. Não lhe tirei a razão, pois até eu já estava com a mesma vontade...
Avisou-me que faltavam apenas 500 metros para que aquela endiabrada terminasse, e começasse a descer. Foram os 500 metros mais distantes que percorri até hoje, empurrando num lugar onde creio que até bode acharia ruim.

O tempo se assanhava e já dava para ver o manto branco cobrindo tudo. O sol já se fora e eu ainda não havia chegado no asfalto. Quando nele chegasse, ainda faltariam cerca de 20 km até Urubici.

Quando pensei ter chegado no topo, mais subida e muito mais pedras; eu já começava a ficar preocupado...
Enfim comecei a descida, cerca de 6km até chegar no asfalto. A esperança agora se renovava, mas aí começaram meus novos problemas, conter aquela descida bastante técnica, sem descanso, sem pontos sem pedras, onde as pernas já cansadas, agora começavam a doer, porque minha bunda estava lá atrás da sela, compensando o declive. Não é exagero, mas algumas vezes cheguei a esquiar naquela desgraceira toda, ávida por me morder ou arrancar pedaços.
Das cinco tentativas em me fazer cair, uma resultou satisfatória para o caminho. Livrei-me da primeira grande pedra, mas fui encaixar o pneu dianteiro na segunda, que dobrou o guidão me projetando para a frente.

Como o chão é veloz! Como o chão é ágil e pula em nossa direção! Como ele tem dentes afiados..!

A bicicleta havia ficado lá atrás, ridícula com aquela roda em 90 graus, e eu saí que nem super-homem, voando todo faceiro sem tempo nem para pensar que eu iria me lascar... Como super-homem, projetei minhas duas mãos para a frente, esticando os braços. Quem me visse de lado naquele instante, teria dito: só faltou a capa...

Meu trem de pouso foram as partes anteriores das palmas das mãos, essa parte acolchoada logo após os pulsos. Como num pouso de través, derrapei e rolei sobre mim mesmo, terminando de barriga para cima, também atravessado na estrada; ou seria na pedreira? Se eu não estivesse de luvas, seriam dois bons bifes arrancados...

- Merda!!! - não pude evitar o mau humor...

Sentei, olhei para a bicicleta que não havia se mexido; ela estava bem. Mexi os dedos, mexi as mãos, dobrei os braços, e não fosse pelos ardores no cotovelo direito que já fazia uma boa bola de sangue na camisa branca, e no joelho direito, tudo estava bem.

Ainda sentado meti a mão nos bolsos traseiros; lá estavam o GPS e a máquina fotográfica. Meus óculos escuros jaziam meio metro mais distante, e o recolhi sem nenhum arranhão. Nada quebrado nem amassado, ainda pensei em bater uma foto da minha amiga azul, mas seria covardia; ela não merecia. Levantei, bati a poeira e fui ajudar minha amiga que se encontrava em posição vexatória. Tudo estava em seus lugares. Montei e saímos novamente, afinal a noite se anunciava e era preciso cuidar...

E cheguei no asfalto da SC-430, finalmente. O relógio marcava 17 horas e 29 minutos. Foram 41 km de Bom Jardim da Serra até aquele ponto, em exatas 7 horas e 42 minutos. Talvez eu tivesse apenas mais uma hora de luz. Bebi uns goles de água, instalei os sinalizadores nas duas correias laterais dos alforjes e saí dali o mais rápido que pude, mas logo iniciaria uma outra bela subida, que me levaria dos 1.265 metros, até os 1.509 metros em 7 km. O negócio era pedalar, e qualquer coisa que apertasse, eu teria como iluminar o asfalto com a minha lanterna, e me lembrei que nesse dia a havia colocado lá no fundo de um dos alforjes. Se eu tivesse que procurá-la, perderia preciosos minutos. Lá no topo, já começando a descer, a noite se apressava em cobrir tudo com seu pano escuro; nem lua havia...

Desceria quase 650 metros de uma lapada só, sem pedalar um metro sequer. Agora enxergava apenas a silhueta da pista. A bicicleta queria correr mas eu a continha, embora tenha chegado a desenvolver 57 km por hora, afinal uma queda num dia, é suficiente, e fui reduzindo, reduzindo, reduzindo, até que vi as luzes de Urubici lá embaixo. Mais um pouco, alguns postes lançavam suas luzes como faróis em mar bravio, oferecendo segurança e um bom caminho.

Cheguei na Pousada de Dona Celia (as fotos são do dia seguinte, de manhã) onde seus dois netos preparavam-se para sair; iam jogar bola. Pedi um balde, um pouco de sabão em pó e eles me disseram que a porta da frente só ficaria encostada. Dona Celia estava no sítio, onde matavam um porco, e logo chegaria. Nos despedimos e eu fui para o meu quarto. Ainda havia muito trabalho a fazer. Olhei o relógio e já eram 7 da noite, e eu ainda não havia almoçado...

Meu cotovelo direito tinha uma bela mancha escura de sangue seco; o tecido estava colado. Molhei o pano e fui desgrudando devagar. Esfreguei a camisa debaixo da torneira tirando o grosso e a mancha, e coloquei tudo dentro do balde. Mexi bastante e a água logo tornou-se cinzenta; era muita sujeira para um dia só...

No banho, ensaboei bastante os dois ferimentos, que já não sangravam mais. Terminei o banho, procurei o kit de primeiros socorros que meu amigo Dr. Luiz havia insistido para que eu levasse, e lá estavam a gaze, o esparadrapo e a água oxigenada. Eu precisava jantar, pois as tripas já planejavam dar um nó lá por dentro. Dona Celia já havia chegado e me ajudou com o curativo, ao mesmo tempo que me oferecia um torresminho fresquinho feito na hora. Lembrei dos torresmos que comemos lá em nossa cidade, duros que desafiam qualquer dentadura, mas os dela desmanchavam na língua...

- É que nós tiramos a pele... - segredou-me ela

Pedi a ela para poder usar o varal e ela disse que não; primeiro centrifugaria na máquina de lavar, e depois ela mesma penduraria. Que eu fosse jantar, e ensinou-me um bom lugar, até me emprestou uma sombrinha, pois estava garoando.

Enquanto aguardava pela janta, refletia. Embora eu o tenha percorrido só, por favor, quem quiser fazer esse caminho, que faça acompanhado, com uma boa quantidade de água e algum tipo de comida, pois que não existe nenhum apoio pelo meio do caminho. O caminho é muito lindo, mas completamente inóspito e deserto. Deve ainda utilizar dois pneus novos, novos mesmo, para que não corram o risco de esfarelarem ressecados, bem como câmaras de ar e cintas novas protegendo as câmaras de ar, das cabeças dos raios (não confundir com fitas anti-furo; são elas que furam nossas câmaras de ar). Levem ainda um pneu reserva. Vocês não imaginam a quantidade de pontas e navalhas que andei vendo enquanto pedalava. Por conta das tantas chacoalhadas pelo caminho inteiro, bagageiro e alforjes também devem ser de boa qualidade.

Um detalhe que me deixou alegre, foi que durante esse trecho por dentro do Parque Nacional de São Joaquim, não vi nenhum cartaz de candidato, mas foi pisar no asfalto, lá estavam eles com as caras mais cínicas do mundo.

Posso estar enganado, mas achei a travessia por dentro do Parque, pelo menos umas duas vezes mais difícil do que subir a Serra do Rio do Rastro. Tomem cuidado.

Foram 62,7 km, em 9 horas e 9 minutos, queimando 5.011 calorias, em 1.525 metros acumulados, e muitas pedras. Se pedra fosse munição, aquela região não perderia guerra nenhuma...

* * *

4 comentários:

  1. emocionante!!

    Grande guerreiro!

    abraços

    p.s. não trouxeste uma pedrinha de recordação? hehe

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  2. Legal encontrar essa tua postagem.

    Vou fazer esse caminho agora em dezembro num roteiro que sai de Torres e passa por Cambará, Ausentes, Bom Jardim, Urubici voltando por Tubarão até Torres.

    Conheço quase todas essas estradas, tendo passado pela maioria delas de bicicleta, mas o grande X da questão é esse trecho do qual tinha poucas referências.

    Abraços e parabéns
    Att.
    Carlos F Kieling
    Lajeado - RS

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  3. Amei! Levarei a sério seus conselhos. Obrigada pelo relato! Fantástico!

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