Um ano sem Marcia Prado


O pequeno detalhe nos atrasou,


mas com empenho foi corrigido.

As velas foram acesas...



Um ano sem Marcia Prado
(Paulo R. Boblitz - jan/2010)

Meus prezados amigos, a história não começa aqui; começou no dia 14 de janeiro quando pedalamos em homenagem à Marcia Prado, finalizando lá nas areias soltas da Atalaia, onde ventava muito.

Querer, nem sempre às vezes é poder; a equipe do Luciano Aranha, mesmo bem empenhada, não teve a malícia da realidade, que é contar com a desvantagem do tempo, ou das agruras do momento, no caso o vento forte que não deixou acender as velas certas, justa lembrança para quem se foi.

Perdemos a batalha mas não perdemos a guerra; recuamos estrategicamente mas retornamos, bonitos e testemunhos do bem, pois que Marcia hoje é lembrada numa trilha muito importante - mais adiante vocês poderão trilhá-la...

Assim, com 11 dias de atraso, mas com todas a velas acesas, retornamos em campo, não derrotados...

A seguir, a crônica que foi escrita naquele dia seguinte, mas que aguardava impaciente o acender das velas, a acender também as consciências de cada um que ainda sente, aquele desejo de mudanças, aquele intuito da construção, de um mundo cada vez melhor, mais justo e mais feliz...

De mãos dadas, construímos um círculo de boa vontade, e com sentimento realizamos um minuto de silêncio, onde cada um dedicou a Oração melhor, ao próprio modo e gentil; com certeza alguém ouviu...

Fosse apenas um a orar, já teria valido a pena a lembrança; Marcia Prado, naquela noite, esteve em nossos corações, viveu novamente através de nossas intenções.
Cada um que foi, cada um que orou, cada um que respeitoso dedicou um pensamento para aquela moça, livrou-se um pouco da casca do egoísmo, imbuiu-se da boa vontade e amou, solidarizou-se no empenho pessoal em tornar essa vida cada vez melhor, honrando aquele ensinamento do Cristo Jesus, amar ao próximo como a si mesmo.

Juntamos nossos amores de mãos dadas; naquela noite, nossos Anjos da Guarda devem ter comemorado, tomado umas e outras e cantado, felizes com tudo o que fizemos, principalmente respeito...

Marcia Prado por instantes viveu, por nossa lembrança, por nosso amor sem nada em troca. Aos que não puderam ir, sintam-se representados...

Marcia Prado é lembrada e vive, sempre que alguém navega em sua rota. Por favor, acessem os linques:

- http://www.ciclobr.com.br/rota_marcia_prado_rota.asp - o início

- http://www.ciclobr.com.br/rota_marcia_prado.asp - a seqüência hoje em dia, uma descida pela serra, a caminho de Santos, onde uma Babel de cores fala a mesma língua...

Apenas um detalhe: a foto que traz a placa sinalizando a rota (primeira foto do segundo linque), mostra o símbolo de Marcia Prado em negativo (comparar a própria Marcia Prado festejando, no primeiro linque), como a informar que hoje ela está do outro lado...

Mas uma coisa me deixa feliz... Vocês não notam!? Pois que a Natureza sempre sorri para quem nela penetra, deixando em todos vocês, o gostinho matreiro das descobertas, o gentil sabor das vistas boas, o cheirinho de mato com orvalho que nunca esquecemos, o verde puro e sadio que acabamos convivendo...

Voltando ao nosso passeio daquela noite, bonito fez a equipe que de nada sabia; deixou de realizar o treino para nos acompanhar, mais amor do que o nosso, pois que foi de momento...

Marcia Prado ainda poderia estar lutando...

Felizes todos aqueles que se engajam...

* * *

Entregas... 1a. Trilha noturna d'Os Zuandeiros, Propriá - Brejo Grande - o Fim do fim...

Quanto maiores as nossas possibilidades,

mais fáceis as nossas doações...

Mas é preciso ver como doamos,

se por dentro ou por fora,

se sentimento ou perfumaria...



Entregas...
1a. Trilha noturna d'Os Zuandeiros, Propriá - Brejo Grande - o Fim do fim...
(Paulo R. Boblitz - jan/2010)


Qual mundo não seria melhor se todos dividíssemos?

Qual passeio não seria mais bonito, se todos compartilhássemos?

Compartilhamos, mas apenas os verbos, as fotos, os sentimentos...

Estava na hora de compartilharmos mais alguma coisa...

Assim é que na nossa última passagem pelo sertão, por Serrão, um povoado muito carente à beira do São Francisco, doamos o que nos foi possível..., fácil para todos nós que temos trabalho e uma vida acertada; para eles que receberam, uma dádiva caída do Céu, pois como li no sítio d'Os Chicos (http://www.oschicos.com.br/blog/), o Paraíso para nós, é o Inferno para eles..., pois ali vivem eles com todas as adversidades...

Moramos onde existe água encanada, luz, facilidades e tantas outras coisas que nos tornam a vida mais amena, pois podemos pagar pelos confortos, mas eles, sequer moram, vivendo como passarinhos na colheita do dia-a-dia, enfrentando seus dramas, muitas vezes agravados pela bebida, pela humilhação do mínimo não conseguido, pois a sociedade cobra intensamente, bons espelhos principalmente...

Gente pobre, gente humilde, gente sem opção que apenas se encosta e faz o barraco, e teima em viver, em procriar, em acreditar que Deus Interferirá com Seu dedo mágico...

Gente que apenas espera...

Coração, um órgão que todos temos, inclusive eles, o centro habitual das emoções, nos fez fazer alguma coisa, mesmo que por poucos dias, e fizemos. Distribuímos alimentos não perecíveis a quem necessitava, demos um descanso no dia-a-dia do passarinho que sempre procura, qual gravetos não necessários a serem recolhidos, para o ninho fortalecer, à prole dar o que comer.

Maldito aquele que doou, como fariseu...

Não resolvemos o problema deles, mas aliviamos a carga de certa forma; propiciamos um breve descanso na busca, pois até eles merecem um dia ameno...

Fizemos o bem de coração, o que podíamos fazer, o que estava ao nosso alcance..., em segundo plano aos nossos interesses, que são apenas o trilhar, pedalar por esse nosso mundo, competir conoscos mesmos, produzir adrenalinas, nossas anfetaminas naturais, ficarmos bêbados com tanto esforço...

Não somos um grupo filantrópico, mas não nos custa nada, algumas entregas, que nada têm a ver com religião, com filosofia, com campanha sequer que seja ela, mas tão somente com a nossa festa...

Acredito que vamos continuar Entregando, e seguindo em frente, pedalando, carregando aquele "Obrigado" sentido, pois melhor seria para eles, nos darem alguma coisa hospitaleira, como só o nordestino consegue ser, com prazer e sabedoria...

E uma coisa me deixa alegre: seremos um pontinho na memória de alguns deles, como no dia em que um pessoal de amarelo, passou por ali, pedalando...

Se você pode somar, aproveite...

* * *

1a. Trilha noturna (iii) d'Os Zuandeiros, Propriá - Brejo Grande - agora o fim...

A vida é sempre bela...,

pois que sempre nos apresenta suas surpresas...

A vida é bela porque descobrimos,

a cada curva que fazemos,

mais novos amigos...



1a. Trilha noturna (iii) d'Os Zuandeiros, Propriá - Brejo Grande - agora o fim...
(Paulo R. Boblitz - jan/2010)


Que minhas palavras sirvam de alerta para Os Zuandeiros, para os amigos d'Os Zuandeiros, enfim para qualquer trilheiro...

Por onde a gente passa, sempre tem Olheiro...

Ainda bem que por onde passamos, nos bem comportamos, pois aquele que pedala, sempre respeita por onde passa, retirando do lugar apenas as felicidades, as boas vistas, os bons ares...

E os Olheiros falaram bem d'Os Zuandeiros...

Por isso fomos convidados a uma nova trilha, desta vez uma trilha diferente, digital, pelos campos marcantes das artérias do Velho Chico, onde Os Chicos já trilharam, e continuam trilhando...

Vejam o convite no campo dos Comentários, na nossa segunda crônica, aquela da continuação, pois que até eles sentiram orgulho de todos nós.

Os Chicos nos aguardam para conhecermos as trilhas maravilhosas e sensacionais que eles já garimparam, e que já estou trilhando desde ontem.

Estou em alguma montanha esperando por todos vocês, com minha bicicleta empoeirada, minha camisa amarela, tomando um gole d'água, olhando firme para ver quem me alcança primeiro...

Venham fazer as trilhas que já fiz, como essas daí:

- Vila Poty e o muro de barrar poeira

- 11 corpos e um mistério

- O dia que Aladim não realizou desejos

- Pisando em 9 mil anos de história

Ainda não estou cansado e não pretendo cansar tão cedo. Com Os Chicos estou bem acompanhado; já passei onde passou Lampião, já nadei junto com as Carrancas, desci as ribanceiras, subi as grandes ladeiras, voei por entre os cânions, entrei na máquina do tempo...

Não..., não vou dar o endereço assim tão fácil..., afinal vocês são bons trilhadores, bons mateiros e saberão trilhar até os Comentários, pois precisam também ler o elogio.

Um dia, quem sabe?, Os Chicos poderiam também pedalar conosco...

Acho que o convite está feito...

* * *

1a. Trilha noturna (ii) d'Os Zuandeiros, Propriá - Brejo Grande - a continuação...

E o que a alma sente,

nunca mais nos sai da mente...,

nem do coração...



1a. Trilha noturna (ii) d'Os Zuandeiros, Propriá - Brejo Grande - a continuação...
(Paulo R. Boblitz - jan/2010)


Quando fui percorrer o Caminho de Santiago, a pé, um amigo aconselhou que o importante não era o chegar...

Achei que havia entendido, e até acabei chegando, afinal estou aqui escrevendo, não estou?

Quando terminamos uma trilha, nossas expressões de certa forma se entristecem, embora por dentro estejamos todos radiantes. É o cansaço misturado com as dores, com a fome, com a sede, com a sombra gostosa, com a roupa molhada do suor, com o sangue a correr mais devagar, o coração voltando ao pulso normal, a respiração se adequando sobre uma cadeira qualquer...

Hora de arrumar equipamentos, guardar a tralha, tirar os tênis, as meias, a camisa; hora de se refrescar...

Chegamos...

Se vocês ainda não me entenderam, poderia ter trilhado o meu caminho em apenas 27 dias, mas levei os 31..., porque eu não queria chegar...

Dormia com frio, acordava com frio, passei dois terços do caminho debaixo de chuva e sobre lama, o outro terço debaixo de muito sol, lábios rachando, bolhas aparecendo, dores sendo trocadas por outras, banhos gelados, camas ruins, roncos nos mais variados tons, nas mais variadas importunações a não nos permitirem dormir, os mesmos bocadillos de sempre, a roupa sempre suja, fazendo e desfazendo a mochila todos os dias...

Mesmo assim, quando me dei conta, comecei a me tapear, andando menos...

O que eu não queria, era que acabasse, pois que chegar é isso mesmo...

Assim, como não entendia como lá corriam tanto para chegar nos albergues, aqui também não entendo por que corremos tanto para que a trilha acabe...

Estamos apenas chegando...

Está na hora de revermos esse termo Carniça...

A trilha noturna foi tão bonita, que o João de Deus não quis chegar; entendo bem o que isso significa, cumprir a obrigação ou amar o que se está fazendo. Quero que ele saiba que sou solidário a ele, pois ambos não gostamos de chegar...

Sempre seremos os Carniças, mas ouviremos os pássaros, observaremos as pedras, delinearemos os galhos não como empecilhos, mas como portais que se movem quando passamos, teremos tempo para cumprimentar as pessoas, admirar a infindável beleza ali na nossa frente, capturar o tempo e enclausurá-lo num instantâneo, objetivo maior de nossa presença, e somente após, para nos transformarmos em poetas...

Com o café reforçado já fazendo efeito, há muito no rio banhados, já especulávamos sobre nossa embarcação ali em frente, pois que cá de fora, não parecia caber essa ruma de gente...

Um a um fomos embarcando, sentando no melhor lugar, a cada barriga maior, o barco balançando e pendendo...

Têi - têi - têi - têi - têi - têi-têi-têitêitêitê..., o pequeno motor foi ganhando giros, se estabilizando no têi-têi-têi de cruzeiro...

E lembrei do susto que levara do Omar, quando ele pedalando ainda meio escuro, passando por mim, começou a cantar num têi-terei-têi-têi parecido... E lá estava ele de volta, agora com um coro acompanhando..., do motor e de Zuandeiros...

Levamos pouco mais de uma hora para chegarmos na foz, onde os dois gigantes se misturam, Velho Chico e Atlântico...

Lá ao longe, o velho Farol a exemplo da torre de Pisa, onde um dia já foi povoado, há muito pelo oceano reclamado, na luta que ele ganhou do rio...; um dia também ganhará do Farol, ou o Farol, aliado às obras do homem, como essa mais nova da transposição, a sugar o resto do Velho Chico, faça com que o mar enfim se acalme...

Ali ainda fica o que restou de uma antiga colônia de pescadores, Cabeço; ainda existem Resina e Saramém, todos povoados com muitas histórias e belezas. Sugiro uma visita ao sítio:

http://www.overmundo.com.br/guia/banho-em-saramem-e-na-resina-sob-as-bencaos-de-sao-francisco

Atracamos no Pontal do Peba, Alagoas, hoje uma área de preservação onde só vemos palhoças para abrigo de botes, reparos de redes, bóias, e sabe-se lá mais o quê...; também vimos palafitas e outras palhoças mais recuadas, onde crianças brincavam de corrida de barquinhos a vela, imitando os mais velhos que ganham a vida no mar, preparando-se desde agora, nos segredos da navegação ao tempo...

Desembarcamos numa areia alva e solta, onde o vento era o Senhor...; mais ao longe, ilhas naturais e a arrebentação suave, cúmplices num paraíso...

Enfim fomos para a água, amena e calma, convidativa a nos entreter com suas pequenas marolas. Fazia uma hora em que vínhamos navegando tomando cerveja, e continuávamos...; uma hora sem saber que o barco tinha banheiro...

- Pessoal, para que lado está correndo a água? - perguntei enquanto entrava no rio, já que era zona de influência de marés.

- Para o mar..! Por quê!?

- Porque tenho que fazer xixi...

E mijamos nas calças, sem nenhum pudor...; por instantes, a temperatura fica louca, mas logo, logo, tudo se estabiliza..., uma situação interessante, pois não precisamos das mãos...

Como o Sol não é muito meu amigo, disfarçando retornava para o barco, para de lá observar e fotografar todos no banho, claro a fazerem também xixi nas calças em grupo. Acho que desci do barco umas três vezes, mas agora eu já sabia para onde a água corria...

De lá, levantamos âncora e rumamos para outra praia, desta vez subindo o rio, onde rio e lagoa competem pelo bom banho, num local com mais estrutura, por conseguinte mais turistas; vimos um barco cheio de japoneses, todos sérios, calados e compenetrados, um contraste com todos nós, pois enquanto eles sorriam para dentro, nós sorríamos para fora; compramos cocadas de todos os tipos, todas saborosas com leve gostinho de carvão.

À nossa volta, um pequeno cão enlouquecido a correr em todas as direções, tentando cheirar os pequeninos Guaiamus (espécie de caranguejo), que entravam e saíam de suas tocas, assustados. Alguns tomaram banho na lagoa, mas a preferência foi pelo banho no rio; mais uma entrada eu precisei, e já foram me apontando para onde a água corria. Adoro gentilezas...

Passamos cerca de duas horas e meia, tomando banho, conversando, rindo muito, bebendo cerveja ou guaraná, fazendo xixi, até que algum chato nos lembrou da hora, pois teríamos, agora contra a correnteza, quase duas horas de têi-têi-têi-têi, aquele insistente barulhinho de um cilindro só.

Não sei se descobriram somente ali na volta, ou se foi para acordarmos o Edson a todo instante, recostado sobre a porta do banheiro... O fato é que se estabeleceu uma procissão, cada um sendo fotografado, principalmente na saída; aplausos e elogios, tanto na ida quanto na volta, fez do banheiro um palco iluminado...

Não lembro a hora, mas em dado momento, Fernando, o Lentinho, munido de uma pequena garrafa de água mineral, parado à minha frente e virado para todos, iniciou discurso inusitado, e quando consegui entender, já era tarde, já estava batizado com a água santa do São Francisco. Solenemente entregou-me a garrafa, solicitou que a enchesse, e que eu fizesse um outro discurso escolhendo alguém para o mesmo batismo.

Impressionante como para a folia, as coisas se resolvem rápido; mal me preparava para encher a minha garrafinha, já me davam outra, cheia..! Todo mundo nesse mundo deveria ser gentil, e esse mundo seria bem melhor, como na hora quando fomos guardar as bicicletas, sendo a minha tamanho grande, necessitando ir no segundo andar; quando a erguia para entregá-la ao Raimundo, descobri estar sem forças, pois era eu levantando a magrinha, e o Gilton a puxando para baixo, pelo pneu da frente...

Escolhi o cantor Omar, aquele do têi-terei-têi-têi - têi-têi..! Dei-lhe um banho que salpicou na Meire, e lhe entreguei a garrafa.

Um a um foi sendo batizado, escapando só a Marília, que se protegeu com a máquina e se trancou no banheiro; o Comandante José Bento, dono do barco São Bento, também foi poupado.

Mais um pouco, atracávamos em terra firme, bem defronte do restaurante do Mangabeira, donde os aromas já saíam misturados; almoçamos às duas e meia da tarde, o almoço mais eclético já visto, onde reinaram os Guaiamus engordados em cativeiro com farinha de milho, o Pirão de Guaiamu, Frango Grelhado, Carne disso, Carne daquilo, Salada de todo jeito, Arroz, Feijão Tropeiro (que tem uma ruma de coisa dentro), Pescada frita em postas, Batata Inglesa cozida, e é bem provável que mais algumas coisas, pois a cerveja estava a comer no couro...

Reparando, vai ver é por isso que a maioria é barriguda, pela cerveja ou pela comida; eu pensava que pedalando com eles, fosse emagrecer, mas acho que estou engordando...

Sempre tem um chato que lembra a hora, e mais uma vez estávamos notificados... Demos adeus ao Velho Chico e partimos; perguntei as horas e me responderam quatro e meia...; reclinei o encosto, fechei os olhos e deixei que todas as vozes ao mesmo tempo, se misturassem com minhas idéias, momento não recomendável para fazermos poesias...

Mais um pouco, o Sol do finzinho da tarde vinha me cutucar, como a também se despedir, agradecer por tê-lo deixado nos acompanhar.

Em Laranjeiras, um pulo só de Aracaju, Caldas, o Seu Canoas, fazia uma parada técnica para esticarmos as pernas, encolhermos as bexigas inflacionadas, e comermos alguma coisa...

Já no ponto onde tudo havia começado, nos despedimos e fomos embora; enquanto aguardamos uma outra aventura, uma trilha pesquisada pelo Raimundo, dia 21 de fevereiro, da cidade de Lagarto até Simão Dias, estaremos pedalando, mantendo os motores aquecidos, as magrinhas em movimento, o juízo no canto certo...

Assim, nunca chegamos...

* * *

1a. Trilha noturna (i) d'Os Zuandeiros, Propriá - Brejo Grande

Não se pode escrever pouco, de coisas que são grandes...

Estendi-me, mas não passei da conta...

Só um segundo capítulo, será necessário,

e muitos anos para esquecer...

Quando chegarem meus dias parados,

tomara ainda relembre com bons olhos,

aquilo que a alma viu...



1a. Trilha noturna (i) d'Os Zuandeiros, Propriá - Brejo Grande
(Paulo R. Boblitz - jan/2010)


Oito horas da noite, pela janela observava uma bela chuva alegre a zoar lá fora, com o vento a lhe fazer companhia, em cantoria alvoroçada...

Peguei o celular e liguei:

- Omar! A trilha vai ser federal...

- Talvez sim, talvez não... Estamos muito distantes de lá - respondeu-me com otimismo.

Ainda precisávamos regular os pneus do reboque, tarefa um pouco complicada, por não ser qualquer posto a oferecer o espaço necessário para ônibus e reboque, manobrarem.

A noite estava plena com seu manto escuro, pois era noite de Lua Nova; com as nuvens pesadas, estava pior ainda...

Enfim pegamos a rodovia, e de onde estava sentado, conseguia ver as palhetas limpando as gotas no vidro, para lá e para cá em paciência. Fechei os olhos e tentei dormir...

Com uma hora de atraso, às três da madrugada, saíamos todos de frente do Hotel Velho Chico, às margens do mesmo rio, para pegarmos nosso caminho, nossa aventura, não sem antes uma breve Oração ao Pai, solicitando a proteção que Ele atendeu prontamente, pois a chuva parara, restando apenas as poças, ilhas de prata no chão duro...

Todos piscando, saímos devagar, nos aquecendo... Olhei para o alto e no firmamento havia também uma imensidão de outras ciclistas sinalizando com suas lanternas... Sorri para elas e prometi não fazer feio aqui embaixo.

Pela primeira vez eu via um comboio piscando vermelho numa completa escuridão, contorcendo-se para os lados, tomando direções, uma grande cobra fantasiada, deslizando por um asfalto também negro, impecável...; o carro de apoio da frente, lanternas vermelhas fixas, lanternas amarelas piscando, uma outra imantada no teto, parecia ser a cabeça...

O carro de apoio de trás, faróis acesos, nos penetrava com suas luzes agudas, que tremulavam por entre todos nós qual miragem fantasmagórica e sedutora do deserto. Nossas sombras se tocavam, se misturavam, se adiantavam como que querendo nos incentivar a ultrapassá-las...

Nossas pernas pedalando, produziam sombras que se mexiam em energia, como aquelas em que o calor distorce as imagens em vibrações, pelo efeito do ar aquecido. Olhando aquelas sombras disformes e fora de escala, por instantes percebi uma espécie de vida diferente, homens e bicicletas unidos, alienígenas se movimentando sem barulho pela noite, enquanto os humanos apenas dormiam nos povoados...

Vez ou outra, nos cortavam em sentido contrário, outras luzes das manhãs de sempre trabalho, onde o horário é ditado pela Natureza, não importando se existam as leis trabalhistas...; deviam nos achar uma procissão diferente...

Quando chegamos no povoado de Pindoba, enfim saímos do asfalto, pegamos a piçarra úmida com suas pedras redondas a saírem piscando dos nossos pneus, mas..., apenas para descobrirmos que havíamos tomado o caminho errado...; uma grande porteira nos barrava os pedais, fazendo com que os que a percorreram antes para o planejamento da trilha, trocassem observações:

- Eu não lembro de cancela nenhuma..!

- Todo mundo!, meia volta..! - definia a liderança.

Sorridentes, apontamos todos os nossos faróis para o último carro de apoio, como a descontar tanta luz que ele vinha nos despejando há tanto tempo; alfinetado por tantos pontos luminosos, desligou os faróis altos e permaneceu em meia luz, enquanto íamos passando por seus lados, como se um Comando buscando algo...

Pegamos outra vez o asfalto; nossa entrada ficava mais adiante... O céu já não era mais tão escuro, pois ligeira claridade se insinuava, querendo dar contornos às coisas aqui de baixo; era o aviso das belas ciclistas, principalmente das Três Marias, a nos informar que o passeio delas estava chegando ao fim...

Novamente a piçarra nos estalava sob as rodas, o terreno mais pesado, os desvios dos buracos, o passar pela melhor passagem, num ziguezague que só quem vê, é quem está atrás...

Ao nosso lado, canais de irrigação com muita água a correr, toda captada do Velho Chico, a distribuir vida pelo campo inteiro, produzir alimentos selecionados, até para a exportação. O Sol estava prestes a aparecer, mas enquanto ele não chegava, lembrava com emoção do meu Caminho de Santiago de Compostela, com os mesmos canais, os mesmos campos semeados e verdes, o mesmo cantar dos pássaros, o mesmo caminho molhado, o mesmo grupo de Peregrinos...

A realidade me fez acordar...; um jato forte de um aspersor, agora dividia o grupo em duas partes... Tivemos que aguardar que ele fosse embora, pois aquilo não era "irrigação"; aquilo mais parecia um combate a incêndio...

Voltamos ao asfalto novamente e descobrimos que havíamos pegado o caminho errado, pois deveríamos ter passado pelo povoado Saúde, e pela cidade Santana do São Francisco, agora bem visível ao longe à nossa esquerda, ainda acordando...

Acabamos pedalando direto do povoado Pindoba até a cidade Neópolis, a única cidade sergipana a cultuar o frevo, motivo daquelas duas estátuas em evolução; no horizonte, nuvens pesadas já aos prantos...; prefiro pedalar seco...

Aproveitamos e fizemos uma parada para um descanso mais prolongado, onde comemos maçãs, bananas e laranjas, e nos reabastecemos de água e isotônicos, momentos em que cada um usa da própria fórmula, com barras de cereais ou proteínas, mariolas (tabletes de goiabada ou bananada), banana passa, mel em sachês etc.

Partimos novamente e já dentro de Neópolis nos dividimos em três grupos, depois de duas grandes ladeiras, pois enquanto as vamos subindo, vamos nos distanciando conforme nossos motores. Já vencendo a segunda ladeira, vi um grupo pegando o caminho da esquerda, e o outro, o caminho da direita. Gritei:

- João! Qual dos dois?

- O da direita! Aquele não tem saída..! - gritou-me ele de volta.

E subimos pelo menos mais umas duas belas ladeiras..., quando pelo meio delas, uns três ciclistas resolveram buscar aqueles que haviam descido pela esquerda. Vou dar a idéia pr'Os Zuandeiros comprarem aqueles colares sinalizadores, qual presidiários, e cada um será um pontinho em alguma tela...

Os que desceram para o rio, fizeram uma pequena e bela trilha beirando o rio; nós que subimos para a direita, pegamos apenas asfalto empinado; lá na frente nos encontramos todos, e até levei um susto quando dei de cara com eles, pois vinha conversando comigo mesmo...; dali até chegarmos no povoado Serrão (12 km), foi uma subida leve e constante, a dar agonia...

Passamos pelo povoado Betume, onde o incentivo à piscicultura é intenso.

Foi no povoado Serrão que Os Zuandeiros distribuíram as pequenas cestas básicas arrecadadas entre os participantes da trilha, informando sempre que aquilo era uma festa para todos nós, e dia de festa tem que ter presente.

É preciso saber dar; é preciso saber receber...

Ali fiz uma pequena parada para um gole d'água, seguindo em frente junto com Omar e o gaúcho Nestor, preferindo ver a Natureza agressiva do rio, do que a ver o sorriso triste e angustiado daqueles que prefeririam ganhar aquilo tudo pelo trabalho.

Chegamos em Ilha das Flores e tiramos umas fotos sobre o calçadão, que foi construído sobre uma grande obra de contenção, proteção da cidade quando das cheias do velho São Francisco; estávamos a apenas 9 km de Brejo Grande...

Retomamos os pedais e seguimos devagar em frente, conversando os três, e mais um pouco nos passavam quase todos em franca correria, contaminando o Tchê Nestor que começou a andar forte também, nos deixando para trás.

Atrás ainda vinham o Fernando, que dava companhia e socorro à Dôra, em sua primeira trilha, e à Marília, em sua segunda trilha; mais atrás desses três, ainda estavam Raimundo e João, que alegou ter furado o pneu, solicitando socorro ao Raimundo, mas algo nos diz que eles foram os Carniças dessa trilha...

Uns mais cedo, outros pelo meio, mais alguns finalmente, todos chegamos ao Restaurante Mangabeira, às margens do majestoso e polêmico rio da integração nacional, o velho, ainda grandioso, rio São Francisco, ou Velho Chico, como os que gostam dele, preferem chamar...

Olhei para o meu hodômetro e lá estava a marca dos quase 67 km, uma distância bonita de dar gosto...

Entramos na água tépida e nos refrescamos à vontade; mais um pouco, sem nenhum atraso, às 8 horas, nosso café da manhã era servido: cuscuz de milho, pescada em postas fritas, pilombetas fritas e crocantes, ovos cozidos, ovos estrelados, inhame cozido, macaxeira cozida, carne de sol, pão com manteiga, café, leite, suco de caju, suco de graviola, enfim, comida a valer para tanta gente faminta, que praticamente apenas havia bebido água.

Mais um pouco chegava o Caldas; guardamos nossas bicicletas, trocamos de roupa e já estávamos prontos para o passeio de barco já atracado nos aguardando, ali mesmo, em frente do restaurante, mas isso é uma outra história, outro capítulo à parte...

* * *