Desafio cumprido...

Há vezes em que nos enganamos,

há vezes em que, enganarmo-nos, é gostoso...

Se for para menos, tudo bem, tentamos...,

mas se for para mais, o prazer é completo...


Desafio cumprido...
(Paulo R. Boblitz - 29/abr/2012)

Há um bom tempo que eu sonhava chegar até Lagarto, e cheguei, e voltei, no mesmo dia... Há um bom tempo que sonho em chegar em Glória, ou em Dores, até mesmo em Xingó, mas aí será preciso uma noite pelo meio...

Na verdade eu pretendia ir para Capela, passando por Divina Pastora, e resolvi saber se o Ailton gostaria de ir comigo. Para isso, liguei para o Eduardo, com quem ele trabalha, e na conversa que vem e que vai, o Eduardo me fez mudar a cabeça. Contou-me sobre a vez em que pedalou até Lagarto, pela estrada do Sapé, e tão bem falou sobre ela, que me cativou... Estava definida a minha viagem-treino de fim de semana: Lagarto, via Sapé...

Abri o Google Earth para traçar o meu roteiro, algo em torno de 120 quilômetros, ida e volta, mas as imagens são de 1969, portanto mostrando apenas nuvens, mas caminhos, nenhuns...

Da decepção, porque gosto de traçar meu plano, em pouco tempo não lembrava mais. Se o Eduardo havia gostado, haveria eu também de gostar. Fechei o programa, e mandei abrir o meu na cabeça...

Domingo chegado, cinco da manhã partindo, a esposa na janela para me dar o adeus, ainda noitinha segui, e logo encontrei o Vovô, em direção contrária, logo após o Bom Preço da av. Saneamento. Na verdade foi ele quem me viu, gritando pelo meu nome em cumprimento, no que respondi com satisfação e bom grado; somos bons amigos, mas na hora de passearmos, cada um segue no passeio que prefere...

Logo chegava na avenida Contorno e pegava a ciclovia, que acabou próxima do viaduto para pegarmos a BR, momento formal em que abandonamos a cidade, em direção para o mais longe...

Logo, eu chegava na BR propriamente dita, e pelo acostamento, não sem antes solicitar a proteção de Deus, seguia resoluto pela rodovia em obras de duplicação. O dia havia amanhecido nublado, mas não prometia dar-me a proteção bem-vinda do pouco sol. Enquanto pude, segui pelas partes já construídas, ou em construção, longe da ânsia do chegar das BRs, essa mesma que causa tantos acidentes e tristezas.

Minha primeira fuga foi para um longo trecho em procedimentos de terraplenagem, onde o Rolo Compressor dentado havia feito seus buracos, um atrás do outro. Até parecia uma pista de testes para amortecedores, onde brinquei com a emissão gutural da letra A, enquanto a capacidade respiratória permitia, tornando-me num gago da letra A - coisas de quem se encontra só...

Desci, subi, e mais um pouco estava chegando em Itaporanga d'Ajuda, quando percebi as buzinadas efusivas dos amigos Caldas em seu ônibus, Gilton e Cândida um pouco atrás, e Jonas e Estela fechando o comboio. Confesso que foi um incentivo e tanto, à minha pretensão... Lancei a eles o meu abraço, mas o que eles não sabiam, também a minha alegria e orgulho, pois estavam reconhecendo o Boblitz, apesar da distância e velocidade que nos separavam...

Logo entrei em Itaporanga, a sonhar com aquela ladeira que leva até a antiga Estação de trem, e a venci com orgulho, curta, porém muito agressiva...

Dali em diante, continuaria a subir, lenta e gradual, até quase Lagarto, sempre à minha esquerda, imenso laranjal... Passei por Itaporanga d'Ajuda, pelos povoados Sapé, Moita Formosa, Gravatá, Estancinha, pela entrada do pov. Jenipapo, por Brasília, onde tomei um Caldo de Cana feito na hora, Urubucutinga, onde finalmente avistei a cidade de Lagarto lá embaixo, sinal de que teria que novamente subir tudo aquilo, quando da volta...

Em Lagarto, no trevo, dobrei à direita, mas ninguém sabia da churrascaria que o Beto havia recomendado. Liguei para ele, que me ensinou uma primeira parte, pois que eram tantas as explicações, que resolvi separá-las. Cheguei no semáforo, dobrei à direita e subi até à praça que já conhecia, chegando no segundo semáforo. A primeira parte, para quem está escutando, cansado, ao som de muitas carretas passando ao lado, estava concluída... Peguei à esquerda e, ao lado de um cemitério com os portões abertos me chamando, liguei novamente para o Beto, que me ensinou estar a Churrascaria Renascer, logo depois do Parque da Vaquejada, ambiente gostoso e sadio. Ali eu deveria procurar pelo Preto, o dono e ciclista, um dos organizadores do Grupo Turma Da Bike Lagarto, que, a exemplo do nosso Aracaju Pedal Livre, já reuniu mais de 300 pessoas num passeio só. Também fazem trilhas, e a última em que participei, a fizeram noturna, em parceria com o Grupo aracajuano Vida de Bike.

Beto só não me havia informado que a Churrascaria ficava do outro lado de Lagarto, no ponto mais alto da cidade... Parece um detalhe sem interesse, mas para quem vem pedalando de uma grande distância, é significativo... De qualquer forma, tenha sido grande ou pequena, a distância pedalada, uns quilômetros a mais ou a menos, não fizeram muita diferença. Diferença faz o atendimento e a qualidade que você consome. Preto me abriu as portas, porque é Ciclista, porque gosta de bicicletas. Conversamos um bom tempo sobre trilhas e bicicletas... Para quem for por aquelas bandas, a Churrascaria fica no bairro Cidade Nova, logo depois do Parque da Vaquejada, à esquerda. Comida farta e saborosa, 2 cervejas bem geladas, 2 garrafinhas de água mineral com gás = R$ 24,00 - Preto, com certeza, terá muita conversa sobre pedais e bicicletas...

Quando você sente que a preguiça e a moleza lhe querem apoderar, é hora de partir... Cerca de uma hora depois que cheguei, partia novamente, tudo ao contrário, paisagens invertidas, a vontade férrea de terminar o começado, com vento contra...

Foi assim que recomecei, num começo frio e sem graça, entre ruas que brindavam suas bebidas, suas turmas de sempre, suas músicas que só fazem barulho, até chegar finalmente na rodovia, onde o vento só é interrompido pelo barulho dos motores, e de algumas buzinas que reconhecem nossas bravuras ao sol do meio dia, passando ao largo, cuidando da própria vida...

E mais um pouco chegava no trevo que me interessava, aquele que subia, lento e calmo onde um dia o homem construiu sua rodagem. Peguei-o à direita e o vento se intensificou, vento morno de paisagem seca, aumentando a nossa sede...

Cheirei fumaça, cheirei carniça, e mais um pouco vi um coelho, dos tantos que havia visto durante o dia, à minha frente pedindo para ser ultrapassado, mas esse provaria ser diferente. Era o Seu Duda que empurrava sua velha Monark ladeira acima. Devagar enquanto me aproximava, lancei-lhe um boa tarde, que ele sorridente respondeu, procurando companhia. Montou e me acompanhou pelo restante do cocuruto, dizendo que eu o havia ultrapassado pela manhã, quando ele carregava 35 cordas de caranguejos para vender em Jenipapo. Senti-me arrogante pela parte da manhã, envergonhado quando pela parte da tarde, e diminuí meu ritmo... Seu Duda merecia respeito...

Pedalamos juntos por um longo tempo, e ele agora para o meu desespero, sem apear da velha Monark, trec-trec-trec a cada pedalada a tentar me acompanhar, eu com pressa, e ele querendo fazer bonito, 61 anos às costas, 30 ou 35 anos no mesmo negócio, ganhando a vida como bem podia... Diminuí e encostamos, paralelos, na mesma velocidade. Ele me confessou que estava tentando trocar por uma Shineray, quem tornaria a vida dele mais leve. Concordei, enquanto ao mesmo tempo lembrava dos radicais do Grupo Cicloturismo, que vêem apenas o que mal a pior nessa história de motores e gasolina. Soltei um leve sorriso, enquanto lhe dizia que ele estava certo...

Seu Duda demorará a sair de minha cabeça, oxalá o encontre novamente, para, sem nenhuma arrogância, não ultrapassá-lo, e sim pedalar com ele, escutar tanta história bonita de vida, que bem poderia ter sido melhor, se esse povo tivesse mais orgulho, mais sonhos grandes...

Seu Duda, ao saber que eu estava com pouca água, ainda se ofereceu para encher meus "vasos", no que agradeci com muito respeito, pois esse povo, quanto menos tem, mais tem para dar... Pouco antes de Itaporanga, agora só descida, nos separamos, não sem antes dele alvitrar-me, um gostoso "que Deus o acompanhe..."

Somente bicicletas permitem esse tipo de convívio, esse tipo de percepção, essa aproximação... Que Antonio Olinto durma bem em todas as noites, ele que reconheceu como certa, minha determinação em viajar ou passear sozinho, quando dependemos de nós mesmos, e ao mesmo tempo, de todos os que vamos encontrando pelo caminho...

Comprei minha água mineral com gás, e cerca das 3 e meia da tarde, era novamente saudado pelo amigo Caldas, e pelos amigos Jonas e Estela, agora retornando... Mais 40 minutos, todos eles estariam em casa, mas para mim, muito chão ainda havia a ser pedalado...

No trecho em que o Rolo Compressor havia tudo esburacado, já não havia graça nenhuma em brincar de gago da letra A; os punhos doíam muito, e a bunda reclamava bastante...

O passeio havia passado da conta... Dos cerca de 120 quilômetros pensados, ao todo foram 167,5 km pedalados, 1.440 metros em subidas acumuladas, 10 horas e 13 minutos em cima de uma sela, numa velocidade média de 16,4 km/hora, 6.362 Calorias queimadas, mas, o que mais me deixou contente, foi a evolução dos batimentos cardíacos, média de 133 bpm, máxima de 156 bpm, num único pico, lá naquela subida ousada, a tal de Itaporanga d'Ajuda, curta, porém agressiva...

Cheguei em casa já noitinha, sem farol mas com a lanterna traseira vermelha piscando. Bebi o restante da água que sobrava, diminuindo o peso da bicicleta, e a carreguei até o segundo andar. Tomei um banho, mal jantei, e capotei... Dormindo, ao tentar me virar de posição, a cãibra na perna direita me atacou, e sozinho a enfrentei, como sozinhos estamos nesse mundo...

Foi um trecho longo, confesso, não tão longo para os mais jovens, mas para mim, 60 anos nos couros, de bom tamanho. Claro que o repetirei, mas somente na ida, porque não pedalo para sofrer... Vou marcar com a Esposa, ela sair mais tarde e nos encontrarmos, seja lá onde for, e com ela voltar contente, pelo pedal cumprido, pelo almoço partilhado...

Pedalar não é difícil; primeiro um pé, depois o outro...

* * *

O duro é na volta...

Voltar já conhecendo tudo aquilo por onde passou,

é como beber água sem sede,

comemorar sem sorrisos...


O duro é na volta...
(Paulo R. Boblitz - 22/abr/2012)

Dessa vez não houve necessidade do despertador; há algum tempo eu já olhava para ele, que lentamente e aos trancos, fazia mexer seu ponteiro dos segundos...

Levantei, fiz meu café, coloquei óleo na corrente e fui tomar meu banho. Nesse domingo não chovia, pelo contrário, o sol prometia...

Lentamente fui aquecendo e mais um pouco já estava passando por baixo do viaduto que nos leva para Itabaiana; sentados na sombra, dois ciclistas como quem esperando alguém atrasado. Cumprimentamo-nos e segui em meu percurso, subindo à direita para pegar a 235, logo avistando à minha frente, outros ciclistas. Lembrei do Vovô, que me havia dito que estaria indo para Itabaiana naquele dia. Apertei nos pedais, mas a estrada fazia leve rampa para cima; tirar aquele cerca de quilômetro e meio, só foi possível no topo da ladeira, já quase no povoado Outeiros. Encontrei uma moça que não reconheci, o Fernando, e o Vovô no pastoreio. Puxei conversa com o Vovô e fiquei sabendo que só iriam até Areia Branca.

Conversei mais um pouco e os deixei, afinal eu estava indo para bem mais longe. Lá na frente, já avistando o talude careca da ladeira do Cafuz, reduzi meu ritmo, baixando também o fogo. Ciclistas à nossa frente, costumam atuar como o coelho, instigando-nos na vontade de ultrapassá-los - mais uma lição aprendida: contenha seu ímpeto, se você estiver indo para distante; meu pedal estava começando, e o deles já quase chegava na metade.

Ali em pé parado, contemplando toda aquela descida com o calor a produzir distorções no ar, descansei um pouco, bebi uns goles d'água, enxuguei o suor e novamente parti. Na verdade eu deveria ter ido por Laranjeiras, mas assim eu perderia a Cafuz. Lá embaixo eu avistava a longa estradinha que subia pela direita, que eu deveria tomar para Laranjeiras, Riachuelo e Divina Pastora.

Montei e me deixei levar pela Gravidade, o barulho dos pneus aumentando conforme corriam mais, e dentro em pouco eu já estava aos pés da Cafuz, que não é assim uma grande ladeira, apenas 2 quilômetros com desnível de 110 metros, mas muito gostosa de se subir. Revendo os dados do GPS, descubro que ela é bem mais fácil que a ladeira de Divina Pastora, que um dia já foi chamada de Ladeira.

Quando descia, Vovô já iniciava a subida; nos cumprimentamos e fomos em direções opostas. Em pouco tempo eu chegava na estradinha para Laranjeiras. No início uma leve subida, depois mais outra leve subida e de repente o caldo engrossou. Não faz mal, pensei, do outro lado haverá uma bela descida...

Dito e feito, e logo chegava no trevo de Riachuelo, em frente a uma grande estátua de Nossa Senhora no alto da colina, com uma bela escadaria toda branca. Em Riachuelo levei um susto de uma carreta, que pela buzina mais parecia uma Shineray - bastava que ela abrisse um pouquinho pela contramão, pois não vinha ninguém em sentido contrário.

O outro susto eu tomei quando já ultrapassado Riachuelo, no meio da curva em aclive, um microônibus tirou um fino de mim, por conta de um carro pequeno em sentido contrário, invadindo a nossa pista. Aos que forem pedalar naquelas bandas, muito cuidado com fones de ouvido, pois não existe nenhum acostamento.

Em pouco tempo já avistava aquela mocinha, curta mas empinada. Na verdade ela começa logo depois da ponte de Riachuelo, quando pegamos no trevo para a direita, numa inclinação bastante suave que nos leva dos aproximados 2 metros, aos 40 metros de altitude, durante 6 quilômetros, com vento contrário. Passado cerca de 1 quilômetro do trevo para Santa Rosa de Lima, o vento aperta, creio que por conta da conformação da montanha, e a bendita começa, fazendo-nos sair dos 40 metros, para alcançarmos os 144 metros, em apenas 2 quilômetros.

Para piorar, caminhões-betoneiras transportando concreto, como vacas foram deixando ao longo de toda ela, bem por onde pedalamos no cantinho direito, bolos de cocôs petrificados, mas ela é linda, porque é curta e forma um cotovelo de quase 90 graus. Ao descê-la, muito cuidado para não passar reto...

Divina Pastora não tem muitas opções. Logo no começo da cidade, que continua subindo, descobri que existiam dois restaurantes, o da Baiana, e mais acima o Point da Comida Caseira. Ambos, na via principal, estavam fechados, ou melhor, pensei que estivessem. No Point da Comida Caseira, minha última chance, em plenas 11 horas com as tripas pelo avesso, perguntei a um garoto que passava na calçada, se ele não conhecia um lugar onde pudesse comer alguma coisa.

- Aqui mesmo! - ele respondeu, apontando para a porta fechada.

- Mas está fechado..! - respondi.

Ele pegou na maçaneta, abriu a porta e chamou Ô de Casa!, e logo apareceu Dona Anatélia que me preparou uma gostosa comida, acho que da própria que ela comeria. Perguntei se ela poderia me fritar dois ovos mal passados; ela fritou três, que derramei sobre o arroz e o feijão, o macarrão, o filé de peito de frango, e por cima de tudo, uma deliciosa salada de tomate, cebola e alface, com o sal e o vinagre no ponto. Pelo almoço, pelas duas garrafas de cerveja e pelas duas garrafinhas de água mineral, Dona Anatélia cobrou R$ 15,00. Mandou dizer a quem passar por lá, que é só bater e chamar, e ela fará uma comida bem saborosa, sorridente como sorriu para mim.

Restava agora a volta, com tanta preguiça...

Meio dia e dez, coloquei o capacete, vesti as luvas, levantei da cadeira e as pernas reclamaram; era o corpo informando que queria descanso...

No Cicloturismo, sempre estamos indo, nunca voltando. Traçamos nosso roteiro que segue de cidade em cidade, observando quilometragem e altimetria, e temos o dia inteiro para cumprirmos aquela etapa. Assim, quando chegamos, nada mais resta do que descansar, e cuidar do dia seguinte, novas ladeiras, novas paisagens, novas pessoas para conhecer, mais causos a enriquecerem nossas vidas.

Montei e me deixei levar, vez ou outra um pedalar, só para as pernas chiarem, enquanto frias. Até o trevo de Riachuelo seria moleza, só descida, mas depois dele a peleja... Novamente subi tudo de volta e no trevo para a ladeira do Cafuz, deixei-a para um outro dia. Uma caramanhola já havia acabado e a outra iniciado; até Outeiros, deveria tomar cuidado com a água, naquelas alturas meio morna. Em Outeiros, com cerca de só dois dedos de água, descobri que o côco verde havia acabado; comprei 1 litro e meio de água, enchi as caramanholas e bebi o resto. Nas imediações da CHESF, cruzei com o Humberto e outro ciclista não conhecido.

Em casa descobri a razão de minha desistência da Cafuz na volta: eu já havia subido muito naquele dia. Ao todo foram 115,8 km, 8 horas e 46 minutos sobre a sela, 1.384 metros em subidas acumuladas, 4.677 calorias largadas pelo meio do caminho; estava de bom tamanho...

* * *

Passeios solitários...

Quando você depende de si próprio,

quando você dispõe apenas de você,

o prêmio alcançado é mais gostoso...

Você é grande e valente...



Passeios solitários...
(Paulo R. Boblitz - 20/abr/2012)

Levantar da cama já é um perigo, se considerarmos o azar como causa de nossos males.

O azar faz parte da vida, assim como a sorte, assim também como qualquer coisa que você considere importante, e leve em consideração.

Antes de tudo, o preparo, a boa condição, a responsabilidade no respeitar dos limites, a humildade em reconhecer o próprio tamanho, a pequenez que lhe torna transparente. Andar de bicicleta requer tudo isso, e bacana é o bacana poder contar com a proteção que a covardia lhe requer, no apoio do carro de apoio, no apoio que o grupo lhe dispensa.

A começar, grupo é todo aquele que se ajuda, como ontem quando estourei minha corrente quando subia uma ladeira, e Araujo fez questão de me empurrar, atrás o grupo inteiro acompanhando, o pedal abortado por uma conseqüência, força aplicada no aço, para vencer a Gravidade...

Mais uma lição que foi aprendida - fiquei sem motor, embora minhas pernas tivessem toda a gasolina necessária...

Bacana seria o bacana guardar sua bicicleta num reboque, e visitar o banco de algum carro de apoio, que tem água gelada, frutinhas variadas, gueitorêides para dar forcinhas, e claro, fornecer segurança para o psicológico do ciclista que pensa que é ciclista - é como andar de bicicleta, ou velocípede, sob o olhar atencioso da mamãe...

Domingo passado, o filho mais velho se preocupou por não ver chegar o pai; para esse próximo domingo, o filho mais novo já perguntou se pode ir junto, mas fez careta quando soube da possível quilometragem, bem como quando soube da pretendida altimetria a ser vencida.

Andar sozinho requer muitas coisas, a primeira delas a valentia, a segunda a determinação, e da terceira em diante, o preparo, a experiência, a confiança principalmente em Deus. Não pedalo sem rumo, embora gostaria que assim pudesse ser; pedalo consciente de tudo o que possa acontecer, sem horários, sem pseudo lideranças, sem formalidades, sem egos me importunando, completamente livre e senhor de meus próprios pedais, meus próprios erros, minhas vontades, minhas conseqüências...

Estou pedalando sozinho, e quem quiser me acompanhar, será bem-vindo, mas sem muita conversa, sem nenhuma imposição... Se você não consegue, não se meta a me acompanhar, seja meu filho mais velho, ou meu filho mais novo, ou quem quer que seja...

Carrinho de apoio é carta marcada, onde você tem a certeza de não perder. Solitário, você testa tudo em você, do racionamento da água, às energias necessárias ao retorno completo, sem babás por perto a lhe socorrerem...

Estourei uma corrente, uma boa corrente de aço que nem enferruja, por certo porque a força foi demasiada, talvez a mesma força interior que não me deixa dobrar, e me faz seguir sozinho pelos caminhos dos homens.

E você que se acha líder, que se acha bom, experimente, nem que seja por uma única vez, andar sem apoio, sem as muletas necessárias, quem sabe em volta do próprio quarteirão...

Quando você fizer isso, o respeitarei...

* * *

Aracaju - Itabaiana

Itabaiana nunca produziu ouro,

mas é conhecida como a terra desse metal.

Estou em treinamento, mas não busco o ouro.

Busco o meu roteiro...


Aracaju - Itabaiana
(Paulo R. Boblitz - 15/abr/2012)

- Pí-pi-pi-pi - Pí-pi-pi-pi - Pí-pi-pi-pi... - em estardalhaço soava meu despertador...

Dei-lhe um peteleco e ele calou. Lá fora, o barulho da chuva que caía... Cinco horas da manhã de um domingo, e ainda chovendo!?

Comecei a rezar, ótima forma de começarmos um dia, e de pegarmos no sono novamente...

Foi exatamente o que aconteceu, e uma hora depois eu acordava, daquela vez mais disposto. Levantei, fiz um café forte, mandei um cotoco para nossa cadela salsicha, uma Dachshund, que nada me respondeu, apenas arqueando um pouco as orelhas, preparei 4 torradas e fui para o banho. Estava atrasado, mas bem ao gosto de acordar com o galo, afinal, o que seria uma hora a mais ou a menos de sol?

Às 7 e cinco, debaixo de um céu bastante nublado, liguei o GPS, dei adeus para a esposa e parti, desviando das poças pelo meio da rua, deserta naquele horário. Sair na chuva é muito triste, pois que ainda estamos frios e preguiçosos, mas quando ela nos pega pelo caminho, suados e aquecidos, é como mergulharmos numa piscina gostosa e refrescante. Os pingos fazem barulho no capacete, e mais um pouco escorrem sem cerimônia, misturando o doce e o sal...

Cheguei na BR-101 e mais um pouco pegava a BR-235, à esquerda. Quase oito da manhã, passava pelo povoado Outeiros, e uma hora depois, parado no pé da ladeira do Cafuz, enxugava o suor do rosto, bebia uns goles d'água e iniciava sua conquista. Gastei 23 minutos em dois quilômetros, para vencer seus 110 metros.

No topo, parei novamente, enxuguei o suor agora abundante, bebi mais água e resolvi fazer tudo de novo. Desci até o ponto onde iniciara, gostoso curtindo, ar condicionado ligado, ouvindo o barulho de moscas, que os meus pneus novos faziam, com cravinhos menores e mais juntos.

Já iniciada minha nova subida, de um pouco atrás de mim, de uma fazenda me chegou a música e o locutor convidando a rapaziada para a cavalgada. Agora eu sabia o porquê de tantos cavaleiros pela estrada. Sorri e mais apertei naquela peleja com a danada da ladeira, a ouvir o som de mastros à vela estalando sob meus pés, nos pedais que eu empurrava, calma e lentamente... Com praticamente o mesmo tempo da primeira vez, contente segui em frente e logo cheguei em Areia Branca. Itabaiana agora não estava assim tão longe, mas ainda faltavam algumas boas subidas.

Quanto mais me aproximava de Itabaiana, mais motocas Shineray me davam sustos, porque elas se sentem donas do acostamento; teve até uma que teve um chilique com a buzina, isso mesmo, para que eu saísse do meio. Se vocês forem para lá, tomem cuidado com os novos donos do pedaço, que nem do capacete se utilizam.

Muito próximo de Itabaiana, bastando uns 3 quilômetros para alcançá-la, vi uma calçada que me pareceu muito com uma ciclovia em construção, e por ela enveredei, antes que fosse atropelado por alguma Shineray. A calçada me foi levando calmo por uns 200 metros, quando encontrei uma entrada ampla, estacionamento todo em brita solta, uma churrascaria alpendrada, vista bonita contra a serra que se mostrava em seu mais belo paredão.

Entrei, despojei-me do capacete, da bandana, das luvas, não antes de bem encostar a minha amiga bem pertinho de mim. Havia escolhido uma boa mesa, bem de frente para aquela beleza toda. O Garçom, lançando-me um olhar curioso, aproximou-se e me deu as boas vindas. O relógio marcava quase 11 e vinte.

- Tá vindo da Capital?

- Tô! - respondi, já esperando pela segunda pergunta.

- Pedalando isso tudo!?

Enquanto sorria, fiz que sim com a cabeça, pedindo uma cerveja bem gelada. Ele a trouxe e mais uma vez perguntou:

- Deve tá com fome, né!? - e já foi me apresentando os preços, começando pelo Rodízio.

- Não, não... Eu não como carne vermelha; quê que você tem aí de frango?

- Peito grelhado com acompanhamento que o Sr. vai gostar...

- Me traz um então.

A cerveja estava deliciosa. O primeiro copo desceu num gute-gute só; do segundo em diante, quem comandou foi o sabor...

Antes que eu a terminasse, chegou tudo numa bandeja grande: o peito grande, dividido em dois num prato raso, e em diversas cumbucas de sobremesa, o arroz, a farofa, o vinagrete, o macarrão, a salada de maionese, outra salada também com maionese, batatas fritas de pacotinho, o feijão mulatinho com pouco caldo, o feijão tropeiro, quiabada, e acho que ainda estou esquecendo de alguma coisa. Comi com vontade, terminei a cerveja e pedi outra. Agora era a hora de acalmar o fogo, e a fresca que soprava ajudava muito. Carros foram chegando e a calma se acabando, porque se quiserem ver metamorfose, é juntar o homem à carne.

A cerveja já estava quase no fim, pedi uma garrafa de água mineral com gás e paguei a conta: R$ 25,00. Se forem para aquelas bandas, o nome é Churrascaria Recanto da Serra. A paisagem estava seca, e fiquei imaginando tudo aquilo com chuva farta...

Falando em chuva, não caiu uma só gota em cima de mim. Choveu aquele céu bem carregado de cinza escuro, mas nem um tiquinho que fosse sobre mim. Agora é que não choveria, pois o céu estava mais claro.

Quase uma hora depois, montei e com preguiça fui encarando aquele vento todo, mas todinho de frente, e forte, o filho da peste... Pelo menos, vou de ar ligado, pensei...

Cheguei em Areia Branca e mais um pouco alcançava a ladeira do Cafuz, que desci gostoso, vez ou outra controlando nas rédeas, pois a azulzinha gosta de uma boa corda...

Lá embaixo, abusado decidi subir de novo. Tomei posição, enxuguei o suor, bebi uns goles d'água e mandei ver nos pedais, que novamente começaram a ranger que nem piso velho. Quando já havia ultrapassado a metade, ouvi barulho de motos que aceleravam, para logo em seguida silenciarem. Achei estranho, mas se subir já estava difícil, olhar para trás, nem pensar, pois eu utilizava um acostamento pouco menos de 1 metro, bem espremido pela terceira faixa. Lá em cima, completada a minha ousadia, fiz a volta e vim curtindo pela descida; encontrei os dois motoqueiros, que me olharam com certa inveja, pois uma daquelas máquinas maravilhosas, estava no prego...

Quando cheguei em Outeiros, minha água que eu vinha racionando, só tinha coisa de um dedo. Outeiros passou a ser o meu oásis, ali onde o camelo se fartaria. Pedi um côco verde gelado, que desceu bem rápido; ainda estava com sede, e pedi o segundo côco, também gelado, a descer para dentro sob o olhar da Vendedora, que devia estar achando bonito, tanta sede. Enchi minhas garrafinhas e fui embora; às 4 e quarenta da tarde, eu estava em casa, mais 113,8 km na bagagem, mais 8 horas e 35 minutos sobre uma sela, mais 1.365 metros galgados, mais feliz do que pato dentro d'água...

O amigo Jailton, itabaianense, escutando a minha história, virou para mim todo orgulhoso e disse:

- Boblitz, agora que você foi até Itabaiana, considere-se um genuíno brasileiro...

Que não se preocupem meus outros amigos lagartenses, salgadenses, itaporanguenses, divina-pastorenses, e de tantas outras cidades que ainda conhecerei, neste Sergipe que há tanto tempo nos acolheu...

Domingo que vem eu vou de novo, para onde eu não sei; ainda estou pensando...

* * *