Passeio noturno Lagarto - São Cristóvão

Felicidade e liberdade,

alguma coisa têm em comum...

A bicicleta reúne as duas,

num tempo só, comum às duas...


Passeio noturno Lagarto - São Cristóvão
(Paulo R. Boblitz - 22 e 23/fev/2013)

Conversava com o Ricardo Hsu, quando ele me lançou o convite para participar daquele passeio. Interessado, perguntei como seria.

Ele estaria seguindo para Lagarto, pedalando; esperaria pela hora combinada e sairia junto com a Turma Da Bike Lagarto, para a cidade de São Cristóvão, que todos os anos promove uma grande festa em homenagem à sua Padroeira. De São Cristóvão, retornaria pedalando para Aracaju, logo depois do café da manhã.

Enquanto ele explicava, aquela coceira conhecida despertava, e já ia me imaginando também a fazer o mesmo pedal...

Apareceram compromissos e o Ricardo Hsu não pôde ir, mas eu já estava decidido; seguiria só.

Trabalhei até as 2 da tarde, indo para casa trocar de roupa e de carro, substituindo aquele de muitos cavalos, por aquele de um cavalo só, aquele que queima o próprio combustível, que usa os poros como escapamentos, vez ou outra bebe água e sai novamente encarando todas as ladeiras, se contra o vento, melhor ainda...

Montava e partia às 3 e sete, debaixo de um mormaço de uma tarde nublada a antever alguma chuva pelos próximos dias. Sair da cidade é o pior pedaço, por conta de tantas vias de acesso, pelos tantos sinais que amontoam carros, pela atenção redobrada, mas em pouco tempo eu desenvolvia solto e tranqüilo pelo acostamento. Agora o vento fluía e comigo conversava...

Em pouco tempo chegava em Itaporanga d'Ajuda, e nela entrava, pois seguiria pela estrada do Sapé, mais montanhosa, sem acostamento, porém sem trânsito que incomodasse. Ao pé da boa ladeira que nos leva à antiga Estação, parei e bebi água, sorri para a subida, montei e a conquistei, e dela em diante não parei de continuar subindo. Eu estava com pressa, pois a noite desceria e me complicaria a vida. Assim, quanto mais próximo estivesse de Lagarto, melhor seria.

A noite se me achegou entre os povoados Brasília e Urubutinga, obrigando-me a conter a bicicleta, sempre quando me aparecia alguma descida. Desde que passara pelo povoado Sapé, vinha observando grupos de pessoas andando pelo asfalto, e logo me dei conta de que poderiam estar seguindo para São Cristóvão. Carregavam mochilas, garrafas d'água e belos sorrisos estampados, e lembrei-me de Santiago de Compostela, completamente assado depois de ter andado 41 quilômetros, calçado com botas confortáveis, mochila apropriada, praticamente vestida como se uma camisa fosse. Esse pessoal andaria quase 70 quilômetros, alguns calçados com sandálias havaianas...

Mas a fé e a loucura, sempre que podem, encontram-se de vez em quando, aliás, a loucura vive se encontrando com outros sentimentos e atividades, principalmente com o amor...

Fiquei alegre quando avistei as luzes de Lagarto, como estrelas brilhando no manto escuro da noite, mas luz é algo que caminha sempre em linha reta; eu necessitava contornar muitas curvas ainda...

Cerca de um ano atrás, havia pedalado até Lagarto, lembrando-me que havia um pequeno trecho em paralelepípedos. Dele em diante, seria uma gostosa descida e praticamente já estaria em Lagarto, mas onde estava Urubutinga, tão demorada? Quando ela chegou, novamente chegaram as luzes de Lagarto. Bebi água, enxuguei o suor e novamente parti, ao som de cães que me latiam destemperados. A descida começou e segurei nos freios, pois a Lua, quase cheia, brilhava atrás de um grande véu de nuvens, não ajudando em nada. Cheguei no entroncamento com a rodovia João Paulo II, e lá estava um carro aguardando a vez para entrar. Parei ao lado dele, aproveitando para também beber um pouco d'água. Para a direita, ficam São Domingos, Campo do Brito, e por fim, Itabaiana. Para o lado esquerdo, lá no alto, Lagarto que me esperava. O carro lançou-me duas buzinadas e seguiu seu próprio caminho; não deve ter visto meu cumprimento...

Passei em frente a um grande cemitério, e dessa vez, se o coveiro estivesse me olhando, por certo não me chamaria. Cheguei numa avenida larga, e nela resolvi entrar. Parei numa pequena farmácia, onde uma bonita e simpática moça ensinou onde ficava o La Massa, lugar onde eu queria comer aquela macarronada cheia de tudo, menos carne vermelha. Passava pouquinha coisa das 7 e meia da noite, quando já sentado aguardando meu pedido, desliguei o GPS.

Havia pedalado 79,8 quilômetros, em 4 horas e 13 minutos, com uma média de 18,9 km/hora, queimado 3.683 calorias, subido 623 metros acumulados. Estava inteiro e com muita fome...

Acabei a macarronada, a jarra de suco de laranja, e liguei para o Júnior Bike, o único que eu conhecia, aquele que me consertara o cubo traseiro, livrando-o das esferas facetadas que tanto me incomodaram quando voltava de Paripiranga. Ensinou o caminho e para lá segui. Instalou o farol que havíamos combinado, deixei a bicicleta em sua oficina e saímos para conhecer a cidade, parando depois no ponto de encontro de todos que participariam daquele pedal noturno. Aos poucos foram chegando, e aos poucos fui sendo apresentado, mas foram muitas pessoas, quase ao mesmo tempo.

Estava na hora de buscar minha bicicleta, e em pouco tempo retornava, já com o sangue agora a correr mais forte, aprontando o corpo para a nova empreitada. Lá na praça, descobriria que não se tratava de uma padroeira, mas sim a Festa de Nosso Senhor dos Passos, festa tão antiga quanto a cidade de São Cristóvão, a quarta cidade mais antiga do Brasil, uma das duas festas católicas mais importantes de Sergipe, que reúne cerca de 70.000 fiéis, onde 30 por cento dos romeiros vêm de Lagarto e cidades vizinhas.

O Turma Da Bike Lagarto já fazia esse pedal há 7 anos, e esse seria o oitavo. Partimos, e com todos eles fui seguindo, esquentando as pernas devagar, um grande número de ciclistas-romeiros, algo em torno de 45 a 50, alguns da Colônia 13, e eu de Aracaju. Bem organizados, vi três carros de apoio, num deles um Policial para a segurança, e num outro, melancias, laranjas, bananas, gelo e muita água. Os mais empolgados disparavam na frente; os mais lentos eram escoltados pelo último carro de apoio, o mesmo que me iluminou próximo de Itaporanga d'Ajuda, quando meu pneu furou. Por três vezes o enchi e saí disparado, pois não queria atrasar o grupo, mas pneu esvaziando pesa muito, e minhas forças chegaram mesmo a perigar, pois obrigava-me a sair do meu ritmo. Em Itaporanga, local bastante iluminado, enquanto todos aguardavam pela viatura da Polícia Rodoviária Federal, que nos daria segurança na BR até a entrada para São Cristóvão, troquei minha câmara de ar, enchendo pela quarta vez, aquele pneu endiabrado...

Havíamos, até ali, no sentido inverso que eu havia feito à tarde, cruzado parte de Lagarto, passado pelos povoados Urubutinga, Brasília, Sapé e agora estávamos em Itaporanga, última cidade antes de São Cristóvão. Em todos os povoados, parávamos para que todos fossem reunidos e abastecidos.

Próximos da entrada para São Cristóvão, quando deixaríamos a BR, a chuva resolveu cair, fina no início, grossa até parar. São Pedro resolvera nos molhar, talvez atrapalhado pela própria idade, confundindo noite de luar com tarde quente cheia de nuvens. As águas começaram a pingar do capacete, misturando o doce com o sal, resfriando o corpo, revitalizando a alma, que agora molhada, ganhava fôlego extra. Paramos num posto de combustíveis, aguardamos os retardatários e novamente partimos. Preocupado com a bateria do GPS, o desliguei para poupá-la, lembrando-me de acioná-lo dois quilômetros à frente, uma perda de dados insignificante.

Para São Cristóvão, a ladeira é leve, mas longa, em linha reta, o que me encheu os olhos com tantas luzes vermelhas, todas piscando, como tremeluzem as velas de uma grande procissão, corações palpitando sobre uma bici, romeiros devotos ou somente ciclistas, que vêem festa em todo e qualquer motivo para pedalar. No final, a subida apertou, mas tão somente para nos informar que tudo estava quase terminado, pois São Cristóvão aparecia mais embaixo, e suas igrejas antigas, sobre os cumes mais altos. Faltava pouco e agora era só descida, mas ainda restava uma, a última, empinada e bem curta, que só alguns poucos venceram. Quando ela apertou, desci e continuei empurrando. Reunimo-nos todos na grande calçada da igreja matriz, que fica defronte de uma praça bonita e bem cuidada, palmeiras imperiais, novas e antigas, barraqueiros por ali dormindo, 5 horas da manhã, ainda escuro pelas nuvens cinzentas que prometiam chorar...

Agora fazíamos hora para chegarem as seis horas, hora em que o Banho do Pinto abriria, hora em que estava prometido o café da manhã, para alegria de minha barriga, que já dava sinais de mau humor...

De tantas bicas naturais instaladas, apenas três despejavam seus gelados cursos de água mineral, sinal de que o verão apertava há um bom tempo. Pensei melhor e fiquei sem o banho, pois voltaria molhado para Aracaju.

Mais um pouco, o caminhão que levaria as bicicletas de volta, chegou, e quase todas foram embarcadas, pois alguns retornariam pedalando. Chegou também o ônibus. A nossa festa estava chegando ao fim; agora seriam só histórias de retorno...

Arrumei-me, vesti as luvas e despedi-me de todos, não sem antes receber alguns convites para novos passeios, que confesso esforçar-me para com eles novamente participar, pois ali virei Coroa e Tio de muitos jovens, todos imbuídos de somente alegrias e participação, praticando amizades, tanta organização quase de graça... Esses são os genuínos Pedais, preocupados apenas no exercício de bem exercitar músculos e mentes, amizades e sorrisos.

Ao todo, percorremos 66,30 quilômetros, em 4 horas e 44 minutos, subindo 403 metros acumulados.

Parabéns ao Turma Da Bike Lagarto, pois a festa foi muito bonita. Parabéns a todos os participantes que emprestaram seus brilhos ao Grupo. Obrigado por me acolherem..!

Montei e parti, porque ainda havia um bom caminho até em casa...

Preferi voltar pela BR-101, volta mais longa, porém sem as tantas ladeiras emburradas da rodovia João Bebe Água, afinal naquele dia já havia pedalado bastante.

Quando subia a longa ladeira para o Feijão, notei pelo retrovisor alguns ciclistas em treino matinal. Foram me ultrapassando um a um, e de todos eles fui recebendo um cumprimento, mas ladeiras não se sobem sem respeito, e mais à frente fui pegando um a um...

Havia iniciado minha volta para casa, às 7 horas e 25 minutos, e às 9 horas e 11 minutos do dia 23, dava o passeio por encerrado, suado, cansado e novamente com fome. Bebi água, belisquei alguma coisa, tomei um bom banho e me deitei; dormi até quase seis da noite, passando batido pelo almoço, mas não faz mal, afinal almoçamos todos os dias...

Foram 28,5 quilômetros, 1.738 calorias para o brejo, e 250 metros em subidas acumuladas.

Agora é restaurar o corpo para o próximo convite, ou para o próximo roteiro que me der na telha.

Ao todo, pedalei de Aracaju para Lagarto, de Lagarto para São Cristóvão, e dessa cidade, de volta para casa em Aracaju. Foram 174,6 quilômetros, 10 horas e 43 minutos pedalando, 8.005 calorias jogadas fora, 1.276 metros em subidas acumuladas.

A felicidade?, bem, essa não se mede em números...

* * *

Inaugurando a ponte nova...

Para quem quer,

qualquer motivo é razão...

Para quem gosta de pedalar,

qualquer razão é motivo...


Inaugurando a ponte nova...
(Paulo R. Boblitz - 11/fev/2013)

Carnaval é época de folia, e folia para nós, é pedalar... Não é bem uma folia, pelo menos enquanto estamos fazendo força, porém quando paramos, a boa folia começa...

Ainda durante a trilha S.E.BO.S, Hsu fez o convite para visitarmos a nova ponte que agora liga Porto do Mato com a Terra Caída, que eliminou a balsa e encurtou distâncias. Eu a conheci quando fui até o Mangue Seco, com o Fabrício Lacerda, da Peregrinos, turma boa e animada. Ela ainda estava no início da construção.

Hoje está magnífica. A ponte Gilberto Amado, como todas as pontes, é algo maravilhoso da Engenharia, pois une margens, aproxima terras, vence as águas...

Nosso passeio foi dividido em duas turmas: a turma ligeira que largou às 6 da manhã da praça Tobias Barreto, e a turma da moleza que largou do Terminal da Atalaia, 1 hora mais cedo... A expectativa era todo mundo chegar junto, mas o que o Hsu queria mesmo, era botar a turma dele para correr... Nessa história, acabamos servindo de coelhos...

Carnaval é um feriadão bem grande, então, quem já necessitava passar, já havia passado e agora descansava, quem sabe sobre uma gostosa rede a balançar num alpendre sombreado pelas tantas palmas dos coqueiros da beira-mar, que traz a salina brisa do grande Atlântico, majestoso em ondas e espumas, lavando e empurrando as areias em dunas... Alguns de nós, olhos de sono, ressaca limpa dum acordar bem cedo...

O raciocínio parecia lógico, mas na volta, descobrimos que todo mundo havia pensado igual; a rodovia parecia uma avenida...

Dias antes no trabalho, eu e Rogério convencemos o nosso amigo Ricardo Santos, claro utilizando as clássicas mentiras do meio do ciclismo: vai ser moleza..., você dará conta..., é tudo plano..., o vento ajudará..., e tantas outras que fazem você sonhar, e aceitar o desafio... Não foi fácil para ele, acostumado a dar algumas voltas pela orla, mas foi valente e a cada metro foi batendo o próprio recorde, empurrado por mais mentiras que eu e Rogério íamos incentivando, como a de faltar poucos quilômetros, quando ainda faltavam três ou quatro vezes aquela quantidade, como a de não existirem mais ladeiras, quando ainda faltavam pelo menos umas três...

Em certo momento lhe cheguei do lado e perguntei:

- Ricardo, estão faltando as pernas, ou é a bunda que está doendo?

- Os dois... - respondeu com certo ar de tristeza.

Disposto a voltar da Caueira, o convenci que chegar até a ponte era mais próximo, e de lá ele bem poderia telefonar para a esposa, para ser resgatado. Olhando-me, raciocinou e sorrindo fez que sim. Quando chegamos no posto da Polícia Rodoviária Estadual, no entroncamento para o Abaís, pegou do telefone e ligou para o irmão, pois seria o tempo em que chegariam à Terra Caída. Hsu sugeriu que ele fosse adiantando, e ele partiu sozinho, porque agora só faltavam 10 quilômetros na cabeça dele, não ouvindo o Policial informar que ainda faltavam 30.

A mesma sorte não tivemos com o Cláudio Oliveira, que antes mesmo de chegarmos à ponte do Mosqueiro, já dava maus sinais, ficando muito para trás. Esperamos que ele chegasse, dissemos a ele algumas mentiras mas ele estava convicto; deixaria para uma próxima vez...

Partimos, e de parada em parada, de foto em foto, chegamos finalmente à ponte nova, a Gilberto Amado, que foi um filho de Estância, nascido em 1887, vivendo até 1969, advogado, escritor, diplomata, jornalista e político, hoje emprestando seu nome a uma bela obra de engenharia, a encurtar distâncias por sobre o majestoso rio Piauí, quase mar a se unir com o rio Real, separando Sergipe da Bahia, na famosa Mangue Seco. Desenho simples, uma subida, uma descida, estais amarelos sustentando o vão central.


Lá em cima nos aguardando, Ricardo Hsu, Josué Gama, Carlos Pupo e Victor Chaves. Lá embaixo, seguindo a vida numa pequena embarcação de dois mastros, pescadores como os passarinhos, saindo à lida procurando comida...

Estávamos reunidos os 7, dos oito que saímos às 5 da manhã. Faltava agora a turma do grupo das 6, também sete amigos, porém só chegariam 5 deles, o Regi, o Rewris, Ademar, Paulo e o Leonardo, pois Ruy Rocha e Victor Fontes haviam entrelaçado seus guidões pelo caminho, caindo e machucando-se. Cair no estradão é uma coisa, mas cair no asfalto é bem outra, e deviam estar girando bem, pois tentavam nos pegar.

Em pouco tempo víamos ciclistas lá embaixo, chegando. Não, não eram eles... Mais um tempo e mais ciclistas eram avistados, mas também ainda não eram eles. Por fim apontaram e nos reunimos todos, descendo até a Terra Caída. Por baixo, creio que deveriam estar uns 30 ciclistas naquele restaurante que escolhemos para o nosso café da manhã, que não aconteceu, porque tudo já havia acabado, ou estava acabando... Nosso consumo foi uma garrafa de coca-cola de 2,5 litros, duas jarras de suco de laranja e algumas empadas de camarão. Voltaríamos com nossos tanques de combustível, quase vazios...

Agora já em casa, descansado enquanto vomito minhas memórias, vou degustando um vinho chileno que trás uma bicicleta em seu rótulo, o Cono Sur Cabernet Sauvignon, gostoso meio seco fino, safra 2011. Enquanto o pegava da prateleira, sorria raciocinando que se trazia uma bicicleta no rótulo, deveria ser coisa boa... De fato é, e o procurarei novamente.

Dei uma volta pelo antigo embarcadouro onde as balsas encostavam, observando uma cidade quieta que parecia dormir. Bem ao centro, em frente do pier, um trio elétrico bem modesto, que mais tarde encheria toda a vizinhança de sons de se pular, ou de tum-tum-tuns modernos a fazerem o mesmo efeito. A maré estava baixa, os barcos encalhados, duas crianças enxergando algum horizonte especial, a pequena igrejinha alheia ao fato do Papa anunciar a própria renúncia, ontem mesmo repleta de fiéis...

A vida segue e por ela vamos passando...

Olhei a ponte ao longe, por detrás da balsa já esquecida, progresso não salutar para o lugar, porque agora todos passarão ao largo em desabalada carreira, com pressa, sempre com ela, de chegar... Terra Caída, de agora em diante, será só mais um povoado quase à beira da rodovia, igual a tantos outros em que somente lemos seus nomes, sem nenhum interesse...

Eram já 10 horas e seis minutos, quando resolvi me adiantar, pois agora o mais lento seria eu. Hsu fez que sim e disse que esperaria pela turma toda para uma foto ao pé da ponte. Partimos eu e Rogério Santin, mas fomos alcançados quase no trevo do Abaís, afinal a turma é fera. Comprei água e novamente partia, mas logo era alcançado novamente. Parei no bar do Galego, aproveitei para desapertar os tênis. Ele não tinha água mineral. Parti e encontrei o Rewris e o Rogério, à sombra do posto policial da Caueira. Eles me aguardavam, e também a retardatários que vinham atrás de mim. Fui procurar água, bebi um coco verde gelado, e só na segunda mercearia é que fui encontrar água mineral, ainda assim fria, pois a cerveja é quem estava com a prioridade. Voltei ao posto policial e partimos. Os retardatários haviam chegado, mas faltava um. Estávamos no salve-se quem puder, sol abrasador sobre a cabeça, meio dia e meia, barriga vazia, cerca de 50 quilômetros ainda longe de casa...

Ao pé da ponte Joel Silveira, que cruza o rio Vaza Barris, no Mosqueiro, Victor Chaves sentou-se à sombra para esperar o amigo retardatário, enquanto eu, Rogério Santin e Josué Gama iniciávamos a subida da ponte; eu e Rogério pararíamos no Caldo de Cana do Neném... Bebemos 1 litro de caldo de cana cada um, e comemos cada um, um delicioso pastel, ele de carne, eu de queijo.

Agora era chegar em casa, a dele primeiro que a minha, a minha cerca de 10 quilômetros adiante. O dia havia sido cheio e bastante quente. Desliguei meu GPS às 15 horas, 19 minutos e 45 segundos, bebi o restante da água e subi. As duas pequenas cadelas me cheiravam enquanto ia despindo a roupa suada. A esposa, a me olhar sem bem entender, informava que tinha isso e aquilo para o almoço, mas eu havia enganado a fome há pouco tempo. Tudo o que eu queria era um bom banho e cama. Deitei e me entreguei ao descanso, mas ele ainda estava meio distante, pois duas foram as tentativas de cãibras no lado interno da coxa esquerda, e uma nos dedos do pé esquerdo. Enfim descansei, acordando lá pela hora do jantar, bebendo água e comendo alguma coisa, afinal precisaria só de mais um dia de descanso, para enfrentar outra...

Não fossem os 10 metros que passaram, teriam sido 157 km cravados, em 9 horas e 13 minutos de pedal, numa velocidade média de 16,8 km por hora, onde queimei 7.202 calorias, subindo apenas 352 metros em subidas acumuladas. Devo esclarecer que esses são os meus dados, pois eles andam comigo. Distâncias maiores ou menores, ficam por conta de onde cada um mora, se mais distante ou mais próximo que eu, nem isso quer dizer que todos passaram o mesmo tempo pedalando, pois esse foi o tempo que o meu equipamento registrou. O time OVER 100 KM é de atletas, que vive a competir e não consegue andar em ritmo mais lento. Sei disso e não reclamo, e bem sabem eles, que conhecemos o caminho de volta para casa.

Aqui dou o meu depoimento em favor do Ricardo Hsu, por tantos criticado porque não espera ninguém. Não é verdade.

Em todas as trilhas e passeios que com ele andei, onde não conhecia o terreno e por onde pedalava, ele sempre me aguardou, até mesmo retornou para me resgatar... Devo a ele Bonito, Bezerros, Serra Negra e Gravatá, Garanhuns por dois dias, trilha noturna de Dores, trilha SEBOS, e sei que ainda faremos bons passeios, sempre quando ele não estiver treinando, até porque não aceitaria prejudicá-lo em seus esforços, a cada dia em maior liderança no MTB.

Muito obrigado a você, Ricardo Hsu, pelo bom convite.

E você, que tem medo de andar com o Chinês, basta perguntar se é treino ou passeio, mas não se esqueça de ter um mínimo de preparo, e também da pontualidade... Isso não é chatice; isso é disciplina...

* * *

Trilha S.E.BO.S

Fazer dieta é ruim,

faz sofrer, faz restrições...

Pedalar por prazer,

faz alegrias, queima calorias...

PENSE NISSO...


Trilha S.E.BO.S
(Paulo R. Boblitz - 3/fev/2013)

Mal passara a trilha em Dores, Ricardo Hsu já me convidava para mais uma: a S.E.BO.S, que não tem nada a ver com aquela substância que nossas glândulas sebáceas produzem, e mesmo assim que não o expilamos durante os esforços...

S.E.BO.S é um conjunto de três iniciais de três cidades: S de Salgado, onde ela inicia, E de Estância, BO de Boquim, terminando em S de Salgado.

Gosto muito de meu Anjo da Guarda, e vivo mesmo falando bem dele, afinal foi ele quem me prendeu no trânsito, justo no dia da trilha noturna de Lagarto. Explico: estou achando que a minha professora no Pilates, a Dra. Marcela, da Clínica Vida, Corpo e Beleza, está chateada comigo.

Explico de novo: é que ela está botando para quebrar em cima de mim...

Na terça-feira, colocou-me para fazer uns abdominais; dia seguinte, o da trilha, toda a parte do peito e costas, estava dolorido, principalmente na hora de respirar. Na quinta-feira, colocou-me sobre um Cavalo e mandou que eu levantasse a bunda dele, com a força das coxas. Resultado: dia seguinte eu estava manco...

Dor é um troço que vai passando devagar, e no domingo quase nada doía. Iniciamos a trilha e tudo foi bem até Estância, mas a dureza acordou esses fantasmas e eles começaram a agitar. Do que mais precisamos em exercícios pesados em bicicleta, são respiração e coxas, e os dois fantasmas estavam assombrando justamente nesses lugares...

Logo bem cedo, 5 e meia da manhã, partíamos em comboio. Hsu a carregar Taíse, Lucas e Rui. Num outro carro iam Leonardo e Malone, e no meu, sozinho ia eu. Tato como sempre, atrasado; ligou dizendo que nos encontraria lá. Marcelo já nos aguardava em Salgado. Tomamos um café da manhã rápido e logo partíamos, com Tato nos ultrapassando com o carro dele, mais na frente descarregando o Regi, e novamente nos ultrapassando para guardar o carro numa fazenda à frente. Em pouco tempo, todo mundo estava reunido, mas não por muito tempo, pois a competição em quem compete, está sempre presente. Assim, dispararam Marcelo, Rui, Lucas, Malone, Tato e Regi. Cá atrás, bem moderados, Hsu, Taíse, Leonardo e eu. O dia prometia em mormaços...

De Salgado até Estância, existem as subidas, mas a predominância é a da descida. Seguimos por estradão em piçarra, fazendas verdes, um grande rio seco que não consegui descobrir o nome. Nosso primeiro povoado foi Moendas, e depois os vários que se seguiram, não dava tempo de perguntar...

De Estância para Boquim, pelo asfalto, a coisa apertou, pois que era um sobe e desce atrás do outro, subindo... Em Boquim demos uma pequena parada para reabastecimento, pois não havia carro de apoio. Tomamos sucos de caixinhas, toddynhos, água, mariolas, barras de cereais, biscoitos e sabe-se lá mais o quê...

Naquelas alturas, o mormaço e os fantasmas me encurralavam. Taíse demonstrava um bom pedal, e de fato pedalou muito bem pela trilha inteira. Leonardo não transparecia, mas estava também baleado. O resto, bem, esse não estava nem aí... Aparecessem coqueiros, e eles os escalariam... O Lucas, um graveto de magro, esse passou por mim umas cem vezes... O Tato, esse eu passei por ele uma porção de vezes, sentado à sombra, sorridente, mangando de mim, que mais um pouco passava deixando-me novamente para trás...

Ricardo Hsu revezava-se lá e cá, o cá, evidente que comigo; o lá, com Taíse e Leonardo. O fato é que o Chinês é incansável, pertinho dos 47 anos, Campeão, Bicampeão, Tricampeão em Mountain Bike, em inúmeras provas e cidades desse nosso Brasil, já recuperado de uma fratura da clavícula na prova do Crato, Ceará, voltando à forma...

Partimos para a última etapa, Boquim - Salgado, estradão em piçarra, uma subida forte logo no início, que subi empurrando; os fantasmas devem ter achado muito engraçado, e depois, só subida, lançadas como explicou o Hsu, definindo o termo para toda e qualquer subida longa. Longa ou curta, subida é subida, metros onde a Gravidade impõe limitações e energia, bastante energia medida em paradas, goles d'água, reposição do coração...

Havia parado para fotografar pôneis, coisinha pouca antes da ponte do rio Piauí, e o pneu dianteiro começou a esvaziar. Estávamos na segunda travessia daquele rio, quilômetro 61,8 da trilha (a primeira foi quando nos dirigíamos para Boquim). Dei sorte, porque Leonardo e Malone também tinham tido a mesma idéia. Procuramos uma boa sombra e trocamos minha câmara de ar, onde Malone foi uma grande ajuda, fazendo a maior parte do trabalho, inclusive a mais ingrata, o novo encher do pneu...

Partimos e logo meu telefone tocou: era o Hsu perguntando onde estávamos. Diante da minha resposta, informou:

- Ok! Estamos aqui no fim da subida, esperando...

A espera foi providencial, porque mais um pouco à frente, cerca de 10 quilômetros faltando para o término da trilha, as pernas do Leonardo travaram com fortes cãibras. Quem sabe o que é uma cãibra, conhece os espasmos que ela produz, bem como as dores lacerantes que ela impinge. Seja ela o que for, para mim é um ultimato do corpo avisando que basta, pois daí em diante será pauleira, músculos involuntários avisando que limites foram ultrapassados.

Malone deu uma banana, a fruta, para o amigo, enquanto Taíse, ali próxima, retornava para também ajudar. Cãibras são horríveis e ficamos impotentes diante delas. Não havia o que fazer, e resolvi adiantar, devagar o que já estava difícil para mim, encontrando Hsu e Lucas um pouco mais à frente, quando parei e relatei o acontecido. Eles retornaram e segui em frente, rendimento cada vez pior, ladeiras lançadas que não terminavam, calor e sol na moleira tentando esquentar a vontade, mas essa estava bem protegida, à sombra do capacete, da fralda que completamente encharcada de suor, já não segurava o líquido salgado que nos arde os olhos.

O primeiro a me ultrapassar foi o Lucas, depois Malone, depois Hsu e Taíse, que me informaram que o Leonardo estava sendo resgatado numa moto, e que me esperariam numa pequena fonte de água mineral, já em Salgado.

Sozinho e sem perigo de me perder, segui com meus botões até que pelo retrovisor enxerguei a moto que buzinando muito, passou levando o Leonardo e sua bicicleta na garupa. Tudo estava terminando bem; faltava apenas o meu término, que a três quilômetros apenas para o final, achou de desandar. Fiquei muito tonto e com vontade de vomitar, pois que bebia água, muita água e a sede não passava. Parei sob uma sombra, à frente de um alpendre com uma cadeira convidativa, mas contive-me ali mesmo com a bicicleta, pois o dono da casa não tinha nada a ver com aquilo. De pé, apoiei-me na boa amiga e aguardei por alguns minutos; fizemos uma boa dupla em V invertido, e a coisa toda foi devagar passando. Resolvi andar um pouco, misturar as coisas, restabelecer a boa circulação das pernas, mas isso pouco adiantou, parando na primeira sombra que encontrei. Por sorte, não havia nenhum cão indisposto a me fazer barulhos...

Esperei mais um pouco e me resolvi: ou morria na praia, ou montava e seguia em frente para terminá-la. Montei e pouco mais à frente, encontrei Hsu e Taíse me aguardando. Foi um gostoso encontro, como estar em casa... Na pequena fonte molhei minha cabeça, lavei o sal da face, criando novo ânimo. Montamos e partimos, afinal o fim não havia chegado ao fim.

Lá no posto onde iniciamos a trilha, há muito que nos esperavam. Fui o último a chegar... Tato mexeu comigo e eu o mandei à merda, uma boa merda sem maldade...

Próxima trilha que eu fizer, vou me utilizar do doping: vou levar rapadura...

Iniciamos nossa trilha às 6 horas e 59 minutos; eu a dava por encerrada às 14 horas e três minutos, não porque mandasse nalguma coisa, mas por apertar no botão Stop do GPS. A solidariedade agora sorria, cedia vez às brincadeiras, às pilhérias, e em pouco tempo rumávamos para o nosso almoço, onde Hsu me deixou pensativo quando virando para a colega Taíse, por ela ter raspado o prato, disse:

- Você comeu como uma chinesa...

E todos quiseram saber o que isso significava...

- Já pensou se os cerca de 1 bilhão e 350 milhões de chineses, deixassem 1 grão de arroz no prato, todos os dias..? - respondeu perguntando.

Por algum momento ainda tentei imaginar o tamanho da safra, apenas para cobrir tal desperdício, mas estava muito cansado e faminto. Fica aqui o desafio, o de se calcular quantas toneladas, 1 bilhão e 350 milhões de grãos de arroz, multiplicados por 365 dias, representam...

Eram quase 4 horas da tarde quando finalizamos o nosso almoço; chegava a hora de voltarmos para nossas casas. Eu estava muito feliz; havia vencido a SEBOS...

Ao todo, e falo isso por mim, pois todos, feras nos pedais, completaram a trilha em bem menos tempo. Pedalamos 82,52 km. Meu tempo de pedal foi de 7 horas e 4 minutos, numa velocidade média de 11,7 km por hora. Queimei 6.728 calorias. Subi acumulados, 889 metros, numa trilha que achei bastante difícil, pelo calor, relevo, distância, e pelas tantas costelas de vaca, que ainda hoje chacoalham meu juízo...

Na hora do banho, pesava apenas 88 kg. Hoje, um dia depois da trilha, já recuperei 1 quilo...

* * *

Trilha noturna em Nossa Senhora da Dores


Qual a diferença de tua noturna balada,

para a minha suada noturna pedalada?

Sim, ela existe, e é muito grande...

Enquanto a balada, em sorrisos, vai contra a saúde,

fluímos nos pedais, em sorrisos, a favor da saúde...


Trilha noturna em Nossa Senhora das Dores
(Paulo R. Boblitz - 26/jan/2013)

Janeiro foi um mês movimentado; só não foi mais porque fiquei preso no trânsito, perdendo a trilha noturna em Lagarto, no dia 30. De 1 a 5, pedalava até Lençóis, 19 e 20, ia até Paripiranga e voltava, e 26, girei pelos campos escuros de N. Sra. das Dores.

Comi bastante poeira sim, mas estive feliz.

Já na ida, acompanhando o Ricardo Hsu, ia namorando uma ladeira, uma looonga subida, e absorto fiquei para trás. Acordei com a ligação do Hsu, perguntando onde eu estava... Apertei o pé e mais um pouco encontrava com todos, parados num posto de combustíveis à entrada de Dores.

Na verdade o que eu queria mesmo era ter ido pedalando, fazer a trilha, descansar numa pousada e no dia seguinte voltar pedalando, mas meus dedos mínimos e anelares ainda estavam adormecidos do pedal até Lençóis. Isso acontece com pedais longos, por comprimirmos os nervos ulnares no guidão, desaparecendo o formigamento aos poucos, com o tempo.

Foi bom não ter ido pedalando, porque a trilha não foi fácil.

Hsu e Rodrigo criaram o OVER 100 KM Mountain Bike Team, uma dureza acompanhá-los, mas Hsu quando me convidara, havia informado que seria em ritmo de passeio. Ele já sabia que eu conseguiria chegar onde ele chegasse, mas com o meu ritmo, e acabei não dando muita bola para o aviso, mas sorri quando alguém lá no passeio, já todo quebrado, o questionou:

- Hsu!, você não disse que era um passeio?

E Hsu respondeu:

- Eu não disse que era um passeio. Eu disse que era em ritmo de passeio...

Três dos integrantes, Rivaldo, Victor e Rui, foram pedalando de Aracaju até lá. O restante, havia ido de carro.

De Dores, participaram:

Nilson, Valdenor, Edmilson, Almir e Vismonde

De Aracaju, fomos:

- Hsu, Emanuel, Samuel, Luciano, Alécio, Lealdo, Adelmo, Rodrigo, Rivaldo, Victor, Rui e eu

Dezessete pessoas ao todo, piscando suas lanternas e faróis pelos prados escuros, para inúmeras interrogações de cavalos, burros, vacas e bois, sempre próximos das cercas a nos encararem com atenção. Até os cães nos estavam achando esquisitos e de outro planeta... Creio que já devem ter nos esquecido e voltado às suas vidas normais, olhando para baixo em busca de verde, sem ver a vida passar...

O início da minha trilha foi tenso, porque meu farol não estava assim tão forte. Meus pneus também ricocheteavam nas pedrinhas redondas do estradão. Parei e enfiei a unha em cada pito, secando-os mais um pouco. Agora era questão de acostumar os olhos à modesta iluminação da Lua cheia, cuidando dos buracos e das valas, das areias frouxas que logo apareceram, das pedras maiores, curtindo a temperatura gostosa que passava em sopro...

O céu estava esbranquiçado pelas nuvens altas, ralas como um grande véu, escondendo todo o firmamento; não consegui ver a Via Láctea, mas vi Feira Nova, São Miguel do Aleixo, a própria Dores, N. Sra. Aparecida, Ribeirópolis, Itabaiana e parece-me que também Moita Bonita, ilhas luminosas num oceano escuro, onde só a prata da Lua aparecia, para quem para ela olhasse...

Ao longe as luzes amarelas boiavam na imensidão que as cercava, pérolas de um grande rosário onde a vida já quase dormia. Olhei a hora, mais de 9 e meia da noite...

Pertinho das 10 da noite, perdíamos tudo o que havíamos conquistado, descendo para molhar os pés no rio Sergipe, estreito com pouco volume, mas já bem longe da nascente na Serra Negra, na Bahia. Novamente perderíamos tudo para atravessá-lo mais adiante, faltando 15 minutos para a meia noite, desta vez ele mais espraiado, mas ainda com pouco volume d'água. O rio Sergipe é aquele que passa majestoso bem em frente de Aracaju, lançando-se ao mar numa das consideradas perigosas barras do Brasil.

Dessa vez eu apeei da bicicleta, porque todo mundo tem sua loucura em certo nível. Aquilo não era descida, mas sim degraus de areia branquinha, talvez silte, com voçorocas piorando suas travessias, formando uma rampa respeitável em declive, e quedas, juro que naquela noite eu não desejava nenhuma.

Subir no outro lado também não foi fácil, pés encharcados chapinhando dentro dos tênis, pedais estreitos com peças plásticas cobrindo os tacos. Não arrisquei de novo, desci e empurrei... Na verdade, toda subida em que minha roda dianteira empina, não discuto com ela, não perco tempo em querer domá-la. Não estando em competições, desço e empurro, até porque faz bem ao coração, à circulação das pernas...

Não sei em qual povoado encontrei próximos de uma simpática igrejinha, boa parte da turma, nos aguardando. Havia retardatários para trás, e resolvi seguir em frente. Ensinaram-me o caminho e me avisaram de que eu sairia num outro povoado. Fui devagar sem nenhuma pressão, cheguei num declive que me fez descer um bom bocado, e novamente uma subida íngreme e esburacada, com quem também não discuti. Quando já estava lá por cima, num canto bom que dava para novamente montar, vi um farol subindo, e o achei bem rápido. Interrompi o movimento apenas para descobrir quem seria aquele animal com pernas tão possantes, mas era apenas uma motoneta Biz, que passou cumprimentando-me, deixando-me sorrindo sozinho com a minha miragem...

Montei e continuei, chegando finalmente no último povoado antes de Dores, mas ele tinha logo na entrada, uma bifurcação, daquelas que se escolhermos a errada, damos com os burros, com os jegues, com os cachorros, bem dentro d'água. Sozinho no escuro, numa terra estranha, embora tentado a seguir pela da esquerda, a do coração, pensei melhor e resolvi esperar. Primeiro foi um, depois mais outro, e um terceiro e daqui a pouco, a cachorrada inteira do povoado se achegando para mim, todos latindo indignados, de todas as direções, portanto difícil de tomar conta só de um. Um encorajando o outro, ou um querendo ser mais valente que os outros, o certo é que o limite da segurança estava prestes a ser ultrapassado. A bicicleta estava encostada num pequeno cruzeiro, então bruscamente dei três passos para a frente e abaixei-me para pegar uma pedra, e de fato peguei, tornando-me agora na ameaça. Cães não são burros, e afastaram-se, mas continuaram latindo. Eu já estava há pelo menos uns 15 minutos, já de saco cheio de tantos latidos, mas agora com uma outra preocupação: levar um tiro de graça...

Mais um pouquinho, o primeiro LED branquinho incerto, apareceu meio tímido na leve subida de paralelepípedos. Pouco mais atrás um segundo, e o terceiro, o quarto, enfim a turma toda bufando, para a minha felicidade. Se antes a cachorrada estava em polvorosa, agora ficaria louca com tanta gente estranha... Não estavam todos ali; lá atrás, escoltados pelo Hsu e acho que pelo Adelmo e Vismonde, dois ciclistas devidamente quebrados. Para não cometer injustiça, aqueles dois não fazem parte do OVER 100 KM. Sabem aquela pergunta que havia sido feita ao Hsu? Pois é, aconteceu ali naquele entroncamento...

Bem sei o que é andar atrás de um grupo, que anda e a gente se arrasta. Com os dois descansados, partimos e resolvi ser solidário a eles, permanecendo com o Vismonde, sobrinho de um deles, enquanto todos se adiantavam em busca da pizzaria que já queria fechar. Dores já estava pertinho; faltavam só mais duas ladeiras, mas cansaço é traiçoeiro, é criminoso. Creio que aqueles dois estavam já exaustos, mesmo Vismonde os empurrando. Que comessem todas as pizzas, mas precisávamos abaixar o ritmo...

Finalmente chegamos naquele entroncamento logo no início da trilha, quando pegamos à direita para fazer a grande volta que fizemos. Agora era dobrar à direita novamente e começar a passar pelos primeiros postes da cidade, lançando-nos suas solitárias luzes, já madrugada, pertinho das duas da manhã... Naquele dia, acho que acordamos muitos galos pelo caminho...

Sentamos ainda a tempo de comermos a nossa pizza, mas o que vale mesmo são as histórias de como um conseguiu cair para trás, quando a roda dianteira, impulsionada por uma pedra, catapultou tudo para cima; quando um mais afoito já terminando a trilha, naquele dito entroncamento do início da trilha, em vez de seguir pela direita, começou a fazer a trilha novamente; como aquele que ao tentar vencer o desnível da estrada, desviando da lama mais à frente, caiu porque a sapatilha não desclipou, momentos em que as risadas não debocham, pois não existe um que não tenha já passado por vexadas ocasiões. Não achamos engraçado o ridículo, mas tão apenas o fato, o jeito do sujeito levantar batendo a poeira, ou levantar posicionando a bicicleta para o rumo errado, até mesmo dos "úis" proferidos enquanto a ação se desenrola.

A graça existe porque tudo, na verdade, é engraçado...

Esse é o mundo das bicicletas, solidário, sorridente, sem frescuras, autêntico e cheio de gozação, onde, confesso, o mais gostoso é desconcertar a quem acha que o Coroa não vai conseguir...

Pedalamos 51,57 km, debaixo de uma grande Lua prateada, sob aplausos de grilos, jias e sapos, olhares interessados dos muitos rebanhos ao longo das tantas cercas. Subimos e descemos, corremos e até andamos, numa velocidade média de 9,6 km por hora, durante longas 5 horas e 23 minutos, queimando 2.332 calorias, subindo 726 metros acumulados.

Sentado a comer minha pizza, o frio já começava a apertar; era o sangue de todo mundo circulando menos, o fogo de todos voltando à chama piloto, aquela que sempre está acesa... Era hora de voltar para casa...

Já estava quase entrando em Aracaju, quando a esposa me ligou; queria saber onde eu estava, não aquele querer saber porque quer uma satisfação, mas aquele da preocupação. De bicicleta, passamos a noite fora de casa, farreando, e a esposa não tem ciúmes...

De manhã, ela torcia o nariz para os tênis e meias cheios de lama, tralha espalhada pela sala de jantar, lá mesmo onde guardo minha amiga, limpinha cheirosa, ou suada toda suja. Era domingo, dia do sono se estender até cansar...

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