Pelas terras, pelo Iguaçu, do Paraná... (dia 16)

Os passeios da vida, nem sempre apresentam belas paisagens,

Algumas são tristes, outras, de feiura total...

Perdoem-me o atraso, mas andei muito ocupado, bem preocupado...

O trabalho dobrou, o Cunhado se foi, e, por um pequeno graveto,

porque assim foram as palavras do Médico, não fiquei viúvo...

Pelas minhas palavras, por um pequeno carrapicho, não perdi minha querida Esposa...

Itaipu, finalmente...
(Paulo R. Boblitz - 22/fev/2015)

Na noite anterior, na volta para o hotel depois do jantar, pude ler as mensagens do Wagner Swiderski, informando o horário em que ele e o Leandro Vilan passariam para me pegar; foi o único dia em que não construí roteiro algum...

Passariam por volta da 1 da tarde, então estava com a manhã livre, quando busquei ajuda para lavar minha roupa inteira no hotel, e visitar o zoológico quase vizinho. Todos os zoológicos que já visitei, são sempre a mesma coisa..., animais ingênuos do lado de dentro; animais idiotas do lado de fora...

Não, não estou azedo... Ouvir uma senhora conversar com um papagaio, ou a chamar uma arara de louro?, ou verificar que os animais, tidos irracionais, fazem questão em nos ignorar..?

Miram sempre ao longe, horizontes que jamais acontecerão, e mesmo assim conseguimos enxergar a chama da esperança em cada olhar, conseguimos inclusive capturar, o espírito que sofre em silêncio, em movimentos repetitivos, alucinados que não levam a nenhum lugar, pois que a cela, mesmo que grande, acaba sempre logo ali, no fim da parede, ou no fim do tronco inerte...
Precisava almoçar um pouco mais cedo, pois estaria a iniciar um pedal desconhecido, não a continuá-lo; a expectativa me consumia...

Voltei para o quarto, arrumei minhas coisas, dei ligeiro tapa no bumbum de Sofia, que havia acordado cedo, chamando para mais pedalar, mas é assim mesmo: todos os fins são muito tristes, nossos sonhos necessitam mudar, ser trocados por outros sonhos num outro dia...

Deitei um pouco, passeei pelo passeio, o relembrei nos todos momentos, nos tristes, nos amargos, nos alegres, nos especiais que só nós entendemos; não é a vida, um grande passeio? Lágrimas, não se parecem suores?

Olhei Sofia, que me olhava séria; agradeci sua amizade...

Olhei a hora, olhei Sofia e resolvi deixá-la bonita; fiz um check list, como quando estamos na cabeceira... Fui me arrumar... Desci, puxei conversa com o Zé Luiz, quem vinha me atendendo mesmo antes de iniciar nosso passeio, ainda nos preparativos, depois na reserva, um bom sujeito sempre a ajudar...

Os amigos chegaram, os apresentei e partimos... Estava difícil acompanhá-los, principalmente nas subidas; jamais perca sua juventude, ou, se não, que ela fuja o mais devagar...

Chegar em Itaipu é chegar em algo inimaginável; é preciso ver para crer... E chegar em Itaipu, ser recebido como fui recebido, dificilmente conseguirei retribuir...

Turma boa e bonita nos aguardava na Barreira principal; ali conheci a todos (Wagner Swiderski, Leandro Vilan, Edmar Vidal, Rodrigo Junges, Valdeci, Nilton Rolin, e perdoe-me o casal, porque não anotei-lhes os nomes);  ali embaralhei os nomes de todos, ali fiquei bobo que nem criança diante do bolo gostoso a ser consumido... Não foi um compromisso a ser cumprido; foi um prazer que verifiquei, nos que me recebiam... Jamais esquecerei de Itaipu. Jamais esquecerei de todos vocês.

Alguém deu a partida e começamos a pedalar, numa Ciclovia linda, respeito aos bons modos de vida, aos bons jeitos de se viver. Não que bicicleta seja o politicamente correto, o modelo em moda, mas a maneira mais simples e eficaz, na manutenção da vida, dessa que você ao ler-me agora, pensa estar prevenido, comendo do bom e do melhor, passeando pelas mil belas fotografias, tirando selfies felizes, nos lugares felizes que a terra permite tirar. Cuidado: o silêncio age sozinho, mas ele tem você como cúmplice...

Piracema significa o peixe vencendo obstáculos dos saltos, ou seja, pulando contra a correnteza, os degraus que a Natureza construiu. Itaipu, com sua represa, acabando com os saltos naturais, cuidou para que a Piracema continuasse ocorrendo, construindo degraus, simulando assim, aquilo que um dia o peixe assimilou como verdade, para dar continuidade à espécie...

Eu pensei em falar tecnicamente de Itaipu, mas isso apenas traria números, estatísticas... Fiquemos nos 20 por cento de energia que ela produz, sozinha, para o Brasil, esse outro gigante, seja de norte a sul, de leste a oeste, tão maltratado ultimamente pelas más notícias, mas isso nada tem a ver com bicicleta, tampouco ainda com o que o Homem, é capaz de construir...

Vou preferir falar de Itaipu, no lado humano que ela produz, no grande que é produzir riquezas e felicidades, porque Itaipu é feita de pessoas, e por isso mesmo, tem comportamento diferente, pensa, age, participa ativamente na Sociedade. Não, não se trata de propaganda, nem Itaipu me pediu para dela falar bem; isso me encontrou quando vi os bosques, isso mesmo, árvores plantadas com os nomes dos empregados, tornando-os todos em quase imortais...

Vou explicar: o Zé, o Raimundo, o João, qualquer um com nome simples ou complicado, ao completar seus 15 anos de Itaipu, recebe a homenagem, também simples, de um plantar de uma árvore, e ao seu pé, o nome do homenageado, uma Medalha Viva...

Não entenderam, não é? O Zé, o Raimundo, o João, qualquer um com nome simples ou complicado, quando se aposentar, ou ir embora deste mundo, estará lembrado pelo Bosque, que cheio de árvores e sombras acolhedoras, com lugar para muitas árvores ainda, o manterá vivo pelo viço verde bem tratado...

Fabuloso, não é?

O que dizer do orgulho, em se ter uma pequena placa ao pé de uma linda árvore, com o próprio nome?

O que dizer que seremos lembrados, por uma lápide viva, depois que partirmos desse mundo?

Itaipu gera 20 por cento, sozinha, de toda a energia produzida pelo gigantesco Brasil, e lembra, silenciosa, sem alardes, de todos os empregados que a constituíram, num Bosque simples, verde, tranquilo, sem poluição e heroísmos, respaldado pela grande visão de todos os seus concretos, milhares e milhares de toneladas, contendo a força de um rio magnífico, de nome Paraná...

A vida é algo que flui, aprendizado para os que ficam, experiência para quem sobrevive. Tudo na Terra tem início, meio e fim; Itaipu encontra-se pelo meio delas, assim como cada um de vocês, assim como eu também... Um horizonte tem a ver com a distância que cada um tem a ver com ele; o Tempo não é inflexível; aproveite...

Tudo em Itaipu é gigantesco, afinal, ela é, em tempos que não mais contemplamos, a "Pedra que Canta", que os nativos ouviam e veneravam, quando Tupam regia todas as forças conhecidas...

O diâmetro de uma turbina é tão grande, ou pouco maior, do que o comprimento de um grande ônibus de turismo...

Suas paredes em concreto, são tais quais, ou mais bonitas que as de uma grande catedral...

Sua grandiosidade é tamanha, que passamos por túnel sem perceber..., e gritamos brincando, em ecos que não ouviríamos, se tudo aquilo estivesse trabalhando quando da cheia...

Itaipu é muito mais profundo, lá pelos meios dos mundos, onde os turbilhões acontecem, acesso agora proibido, por estarmos pedalando; oxalá eu consiga levar minha esposa, sem bicicletas, numa visita por suas entranhas, sentir as trepidações dos seus giros, magnetos em insana geração, faíscas azuis que ganham vida...

Oxalá consigamos, numa pose só, pisar em dois mundos, Brasil e Paraguai, separados por duas riscas amarelas, bem no topo da barragem...

Aos que navegam sem navegar, um aviso: poderoso radar militar alemão, esquadrinha a zona de aproximação da parte crítica da zona de captação da hidrelétrica; as forças, todas elas implícitas, são hercúleas; não tente ultrapassá-las; não queira virar patê...

Quando ao final da construção da grande hidrelétrica, seus trabalhadores resolveram fazer uma homenagem à gigante, e a eles mesmos, quando produziram o maravilhoso Barrageiro Homem de Aço. Quando nos aproximávamos dele, em lugar de destaque, notei Sofia nervosa, afinal, eu, de carne e osso, já lhe era um bom amigo; agora ela conheceria um homem de metal...

Entendi sua expectativa, acariciei-lhe a cabecinha e não tentei dar-lhe muitas explicações, afinal os momentos, todos os bons momentos, são especiais. Estava eufórica, efusiva, um sorriso contagiante a nos emocionar..., até que lhe notei leve rubor quando mais nos aproximávamos. Reparando na direção de seu olhar, sorri baixinho e a alertei que com aquilo, sim, era preciso muito cuidado...

Afaguei sua cabeça e logo alguém nos despertou para novamente pedalarmos. Passamos no lugar onde o Lima havia caído, lancei-lhe uma oração, e ali mesmo insisti que gostaria muito de, ao final, ir visitá-lo. Edmar Vidal garantiu que me levaria.

Ali perto pastavam as tranquilas capivaras, grandes roedores, até dóceis, mas que não quiseram ter conversa comigo...

Seguimos por ruas tranquilas, subidas, descidas, caminhos abertos por entre rochas, onde um dia o homem organizou o caos, ordenando cada coisa em seu devido lugar, águas enquadradas por baixo, energias por fios acima, homens caminhando por entre eles...

E cometemos um sacrilégio..., porém quem anda de bicicleta, não comete pecados... Como crianças, tomamos um gelado banho de infiltração, aquele pequeno filete que tal como fujão, burlou os homens, as rochas, os concretos, fez volteios e não ficou enquadrado nas regras da represa, transformando-se em linda cachoeira... O momento estava ímpar; não pude deixar de agradecer a Deus...

Pedalar molhado é também quebrar as regras, pelo menos por poucos instantes, enquanto as energias e os calores, novamente reacendam as fornalhas...

Se você não sabe o que são regras quebradas, está na hora de começar a viver, pois que até enganar a morte, é regra quebrada com prazer...

Itaipu era prova disso, pois o que antes corria solto e com muitos estrondos, hoje corria manso; Itaipu um dia ousou, e quebrou a regra do Paraná, erguendo para isso, algo em torno dos 65 andares de altura, quase 200 metros, represando uma fúria que antes produzia barulhos que não deixavam a Natureza dormir em paz. A cada momento, um daqueles amigos reportava o nível em que estávamos, em relação ao nível do mar, quilômetros adiante...

Contra Itaipu, contra sua beleza e pujança, nenhum ponto mais alto a nos prover da vista infinita, porque subimos aquilo tudo pedalando, como se uma montanha comportada. Lá em cima, pequeninos, não conseguimos ter a noção de sua extensão de 7.919 metros de barragem, um sem número de quilômetros inundados. Vale a pena uma visita:

https://www.itaipu.gov.br/sala-de-imprensa/itaipu-em-numeros

https://www.itaipu.gov.br/energia/barragem

Itaipu é aberta à Sociedade, afinal ela existe por conta daquela, e não foram poucos os ônibus cheios de pessoas curiosas, deslumbradas com tantas belezas, brasileiros e estrangeiros, mas, roçar aquilo tudo devagar, de bicicleta, foi como estar entre monólitos, cânions que fazem nossa pequenez ainda maior, concretos e rochas, passarelas, um mundo mais vivo do que imaginamos, onde o verde, o cinza e as tintas, convivem harmoniosamente.

Como não podemos ser felizes por completo, não era época de ver Itaipu iluminada, uma vez em cada mês, quando seus holofotes a enchem de encantos e cores, permitindo mistérios em cada mente que a contemple; talvez brincadeira desse destino, desse mesmo que nos dá e toma, a fazer-me voltar numa outra época mais feliz..., ver aquele vertedouro, imenso e feliz tobogã, repleto de espumas brancas em liberdade, essa mesma que tanto procuramos e ansiamos; não fosse a ondulação, cada uma de suas bocas bem poderia servir de pista de pouso para pequenos aviões...

Quem pensou Itaipu, pensou alto, pensou doido, pensou genial, sonhou e conquistou, legando-nos obra majestosa, porque é nobre, no tamanho, na natureza, e nos fins que alcança, para melhorar a vida de todos. Quem pensou Itaipu, por certo, deve ter andado muito de bicicleta...

Tarde nublada, noite em franca aparição, hora de todos nos despedirmos, de todos nos apertarmos as mãos, para mim o fim do final, mas faltava o Lima, e todos seguimos, uns ficando pelo caminho, até que sobramos apenas eu e o Vidal, uma bela ladeira até a casa do Lima, lá em cima, como lá de cima ele caiu, 10 metros e meio por entre as pedras, um capacete a salvar-lhe a vida, uma saúde a volver-lhe os movimentos, Deus a chameá-lo de forças, Jesus a chamar-lhe à realidade, forças que não entendemos, porém acreditamos, que por nome de Fé nos levanta, nos possibilita, nos abre as portas para nova vida, nos faz dar rasteiras na morte, nos grava na mente a História, que um dia nos fará sorrir...

Lima tem um irmão mais velho, o Limão, que nos recebeu como se sempre tivéssemos sido amigos, nos injetando positivismo, nos acelerando nossa Fé, nos comprovando que a Força de que somos capazes, existe livre a quem dela quiser usufruir, gratuita, a exigir apenas Fé e Força Interior. Confesso que em meus 63 anos de vida, nunca tinha visto tamanho otimismo, e o comprovei dentro da casa, onde vi um Lima no leito, todo quebrado, atento e vigilante, desperto trôpego pela medicação, para mim um novo amigo, que com ele pretendia pedalar.

Lancei-lhe um sorriso e lhe prometi que ainda pedalaríamos; mentia para ele, mas não o fazia por mal...

Conhecendo a envergadura do acidente, vendo-o ali na cama, deixei-me levar pela desesperança, mal vislumbrando-o andando; que bom que eu estava errado...

Existem momentos em que alcançamos um tipo de pico, e passei, por certo, por este pico, quando tive que enfrentar muitas coisas que nunca dependeram de mim, quando um amigo, não aquele mais provável, mandou-me uma linda Oração, algo que nos abre a alma, nos faz voltar ao colo do Pai, nos renova aquela Força que por momentos esquecemos, fincando-nos no chão, abrindo-nos os amores que recusamos, enfim, rebocando-nos de novo à casa de Deus, que nos Vê, Observa, e Ensina...

Ele, David, me escreveu:

"Senhor Jesus, ao olharmos nosso mundo, ficamos assustados. São muitas as dores! São muitos os sofrimentos! Há pessoas que deixaram de acreditar em si mesmas, na vida e em Vós. Há pessoas que se tornaram prisioneiras do consumo, das soluções fáceis e imediatas, nem percebendo que geralmente são falsas. Elas já não conseguem perceber a beleza da fraternidade, a alegria da caridade, o sabor da partilha, o perfume do convívio e a grandeza de crer. Ajudai-nos, Jesus, a testemunhar a esperança! Inundai-nos com vossa esperança para a transmitirmos a todos os irmãos e irmãs, em especial, os que estão sofrendo. Jesus, Senhor da Esperança, fazei-nos servos da esperança. Amém."

Aquela esperança que eu conhecia e estava esquecido, que todos nós conhecemos, achegou-se de mansinho e tudo resolveu, assim, como se num passe de mágica, como se existisse um botão liga/desliga, quando de fato alcançamos a Deus, e tudo silenciosamente se resolve, tudo mansamente volta ao normal.

Hoje sei que meu Cunhado está num bom lugar.

Hoje vejo minha esposa recuperada.

Hoje vejo fotos do Lima quase pedalando.

Um dia nossa ficha sempre cai, e a minha caiu quando necessitei assinar a permissão para minha esposa poder morrer, mas a Força, principalmente dela, fez-me ver que aquilo tudo era coisa dos homens, formalidades jurídicas, apenas formalidades, essas mesmas que Deus e Jesus dispensam, apenas porque resolvemos querer, com Eles, que o Bem prevalecesse, que a regra da morte fosse quebrada, essa que requer apenas uma desculpa...

Fui enfermeiro e ainda estou cozinheiro, junto com ela a descobrir sabores, dessa arte difícil que é cozinhar sem sal e gordura...

Aos todos amigos de Itaipu, que quebrem regras. Aos todos amigos que me leem, que também quebrem suas regras, artigos ou parágrafos que  nos fazem crer que estamos certos, logo nós, humanos...

Itaipu foi uma grande viagem; Itaipu foi um grande aprendizado.

Apenas Sofia, paciente, aguarda meu retorno, minha vida de volta, para também viver...

* * *

Pelas terras, pelo Iguaçu, do Paraná... (dia 15)


Dia de fúria pode ser muita coisa:

dia de loucura,

dia de bravura,

dia de rebeldia...

Quem de nós um dia não se enfureceu,

e a tudo resolveu!?

Dia de fúria...
(Paulo R. Boblitz - 21/fev/2015)

Amanhecera enfadado, pelo dia anterior, pelo fim do nosso passeio...; fui tomar meu café, que me foi servido, ou seja, me trazido lá de dentro com aquilo que quiseram que eu comesse. O café preto encorpado estava gostoso, alguns pedaços de melancia, e bastante pão; comi tudinho...

Havia comprado em Capanema, depois de fazer as contas, 750 Pesos argentinos. Calculei dois almoços, o pernoite, um jantar, e as águas minerais pelo meio do caminho. Hoje estou arrependido de não ter tomado nota destas despesas, mas o fato é que ainda me sobravam cerca de 170 Pesos. Cada Peso havia me saído por 21 centavos de Real, ou seja, meus dois dias na Argentina, saíram por menos do que os 157,50 Reais.
Comi bem, dormi bem, e bem acolhido também fui...

Quando finalmente cheguei no escritório da dona do hotel, encontrei Sofia peralteando com os utensílios da escrivaninha; clipes dançavam em roda, folhas transformadas em bolas, que os lápis e canetas chutavam. A calculadora a calcular gastando papel, como se estivesse a cantar. O grampeador parecia desmaiado, o saca-grampos saltitava, o computador a rodar várias listas pelo monitor. Pela vidraça, podia ver todos eles em festa, como se alguma música lá dentro, estivesse rolando. Pela vidraça, também tive que conter-me ao ver tudo aquilo parar de supetão, quando a dona finalmente irrompeu na sala, abrindo a porta...

Por instantes coçou a cabeça, como se nada daquilo ela tivesse deixado daquele jeito; Sofia toda refestelada de lado sobre o tampo da mesa, botando todo mundo para se mexer, regia o que parecia uma orquestra...

Peguei Sofia e a levei para fora, apertando-lhe de leve a orelha. A pobre dona daquele estabelecimento, realmente parecia nada entender pela desarrumação do lugar, lenços no chão, uma cadeira virada, até uma vassoura, assanhada estava bem no meio da sala... Ainda virou-se para mim, como quem quisesse falar alguma coisa, desistindo, afinal ela havia ficado com a chave...

Enquanto arrumava Sofia, sussurrei:

- Sofia, que bagunça foi aquela..?

Não ouvi nenhuma resposta...

Quando finalmente partimos, Sofia requebrava de alegria...

- So-fi-a!, estão olhando para nós..!

O que eu gosto em Sofia, é essa sua rebeldia responsável; ela não explora, não extrapola, tampouco implora. Dá o recado dela e depois fica feliz... Adoro a minha linda...

Aquele era um dos raros momentos em que ela costumava segurar as rédeas...

Aliás, os freios só funcionaram depois que gritei, ao ver que a tienda estava ficando para trás:

- Sofia! Preciso comprar água!!!

Enquanto pagava, fiquei a me conter vendo Sofia girar seus pedais ao contrário, enquanto o pequeno cão, sentado, a observava com atenção...

Garoava de leve, coisa que nos acompanharia até quase chegarmos nas Cataratas. Hoje, sentado em meu balão, descubro que passamos bem próximos do rio Paraná, outro gigante valente que faz muito barulho pelas entranhas de Itaipu...

Sem que soubéssemos, passaríamos por cima de outra represa geradora de energia, a URUGUA-I, simples a não nos deixar ver onde as lutas se travavam.

Próximo dali ficava o Control da Gendarmeria Nacional. Paramos, aproveitei para beber  um gole d'água, fotografar a placa que a indicava, e quando já havia guardado a máquina no bolso, preparando-me para recomeçar a pedalar, reparei naquele sujeito, quase que saindo pela janela da Van, gesticulando, parecendo que queria sair voando. Estaquei o pedal no ar sem força, escutando aquilo que me desconcertou momentaneamente:

- Pau-lô!!!

Olhei melhor e, pera aí!!!, eu conhecia aquele cara sorridente..!

- Leo!!!, ainda gritei, ainda acenei meio desengonçado, pois estava parado, com Sofia a travar-me o giro por entre as pernas, e ele, em movimento, e por mais que eu dobrasse o pescoço acenando, nós dois fomos nos distanciando, até que a Van desapareceu e eu fiquei ali a desejar-lhe um bom dia, triste porque não pudéramos nos falar pessoalmente..., mas o haverá, se Deus quiser...

Brinquei com Sofia, mostrando-lhe a Gendarmeria, e que ela se cuidasse para não ficar presa; sorri, quando olhou-me de cima a baixo...

O tempo estava gostoso, aquele friozinho, cinzento, chão molhado, ventinho a nos cruzar contrário, e logo chegávamos no início do Parque Nacional Iguazú, aquele mesmo em que chegaríamos, se tivéssemos dobrado à direita, pouco depois de Andresito. Uma coisa que reparei, foi que até ali vínhamos acentuando todos os "zús" na Argentina, mas placas estavam a nos desmentir. Fosse como fosse, mais um pouco estaríamos chegando ao Brasil novamente, e isso pouco importaria...

Mas antes, visitaríamos as Cataratas. Sofia estava nervosa e parecia me empurrar, afinal eram mais descidas do que subidas, enquanto eu raciocinava o esforço da volta, o tempo que dispensaríamos para a visita, os quilômetros extras que ainda faltavam, a hora em que chegaríamos em Foz do Iguaçu.

Brasileiros precisam pagar 200 Pesos para a entrada; não aceitam Reais... Vendo taxistas brasileiros, acerquei-me de um deles e acabei comprando os 200 Pesos, cada um saindo pelos 25 centavos de Real, 50 Reais por uma visita espetacular, que nunca mais sairá de minha cabeça... Arredondando, passei muito bem naqueles dois dias, por cerca de 210 Reais, sobrando-me ainda, pouco mais de 170 Pesos, que trouxe para casa, como lembrança...

Sofia não podia entrar, coisa que a deixou muito triste, desolada... Conversamos e encontrei um bom lugar na sala de Comando da Gendarmeria, onde permaneceria em segurança até a minha volta. Prometi que ela seria a primeira a ver as fotos, e que eu contaria todos os detalhes observados. Sofia é inteligente e percebeu que não teria como entrar no pequenino trem, nem como ser empurrada pela passarela de metal, onde centenas de pessoas, das mais esquisitas às menos exóticas, trafegam sem pensar...

Não é uma passarela apertada, mas formigas têm mais senso de direção. O corrimão não é alto, portanto não sei como ainda ninguém caiu dali; pessoas andando apressadas, num lugar onde só deveria haver contemplação...

O passeio não deveria ser em função das fotografias, aqui e ali recordações, porque deixam de ouvir o rugido das águas, de ver o impressionante caudal, de sentir a trepidação, do receber as gotinhas em suspensão, por apenas competirem pelos melhores lugares, pelos melhores ângulos, selfies, empurras-empurras como furões...

Em vez das meditações, em vez do contato próximo à grande fúria de cabeleiras vastas e alvas, que não conseguem a liberdade que tanto querem, o que só vemos e ouvimos, são as pressas, como se tudo aquilo estivesse prestes a ser carregado...

O buraco é sem fundo, onde o próprio rugido é sufocado. Imaginei tudo aquilo em momento calmo, só o vento, as águas e as nuvens que subiam aos céus renascidas em liberdade, sibilando nos molhando suaves, numa troca de simpatias, enfim o homem a ouvir com atenção, a Natureza...

Naquilo que os olhos se perdem, as palavras não compõem, porque não se trata apenas de visão, mas sim de uma cumplicidade entre corpo e alma, quando a alma pede passagem e se assenta nas janelas das pupilas, sentindo, envolvendo-se, amando, recebendo, bêbada em poemas...

A fúria é estupenda, quebra e vem partindo, arrebentando todas as rochas que se julgam valentes, construindo mesas, mesetas, mezaninos, construindo precipícios donde nada consegue escapar daquele imenso peso sem parar, como se um Buraco Negro que a tudo engole com sofreguidão...

A vida, como ela consegue manter-se por entre fios, a fio..?

Matizes, do branco puro ao cinzento escuro, ao marrom, ao bege e amarelo, ao verde do musgo, ao verde molhado, ao verde singelo que apenas sorri tremulando, ao negro do peixe que mexendo-se, desafia com suas barbatanas, toda aquela sucção...

As águas, milhares delas, não despencam, mas se contorcem, se enovelam, se abraçam e caem rolando, batendo, escorrendo, salpicando...

A tranquilidade antes pacata, transforma-se num altar em sacrifícios, donde nada consegue escapar; conseguimos ver suas entranhas, sulcos em cachos...

A fúria se mostra completamente desnuda, sem nenhum pudor, e por instantes, descobrimos o significado da força...

Aquilo tudo de repente se acalma, e como se nada tivesse acontecido, o Iguaçu refeito, nem repara que está maltrapilho, rasgado em pedaços, despedindo-se da vida, unindo-se ao Paraná, também já domado por Itaipu...

Olhei a hora, já ia tarde; Sofia devia estar preocupada...

Como um ET, caminhando por entre tantos, calças de malha apertadas, mangas compridas em camisa desenhada, bolsos nas costas, era tudo ao contrário...

Sem Sofia, eu era mais um louco, desses tantos loucos que não entendemos, até que também conquistemos, nossas loucuras...

Foi um inferno sair dali, estrada apertada, hora de muita gente, apressada, sair, mas todos eles me respeitaram, quando me postava bem no meio da estrada para não ser espremido, onde não existia acostamento, com outro veículo em sentido contrário; negociávamos, eu sempre de olho no espelho retrovisor...

Foi um longo trecho em que as subidas judiaram, pois as necessitava subir a pleno vapor, tamanho movimento tinha aquele pedaço.

Chegamos num quartel do Exército argentino e paramos, descansamos por longos quinze minutos; a via duplicada ainda estava longe, mas nem por isso, quando lá chegássemos, encontraríamos acostamento e paz...

Anoitecia pelo cair da tardinha, que ainda estava cinzenta. Chegamos na Aduana argentina, furamos a fila interminável de carros, entregamos nosso papel de entrada e seguimos para a ponte da fraternidade, a ponte Presidente Tancredo Neves, quase 500 metros, vencendo o Iguaçu que corria em remansos, calmo como se tudo ele houvesse esquecido, como se tanta fúria, não tivesse acontecido...

Agora o Brasil nos recebia...

De novo, nossa Aduana nenhuma bola nos deu...

Encontramos uma ciclovia, e por ela seguimos bem calmos, como tranquilo também seguia o Iguaçu, terminando nós três, nosso passeio...

Eram 6 e meia, 7 e meia pelo horário de verão, quando chegamos no hotel; agora, uma outra expectativa pairava pelo ar, o passeio no dia seguinte...

Conheceríamos Itaipu...

Havíamos percorrido 83,4 quilômetros, em 8 horas e 38 minutos, queimando 5.020 calorias, subindo 821 metros...

A noite era de festejo; arrumei uma churrascaria bem vizinha do hotel, comi javali, faisão, porco, peru e frango, tudo bem acompanhado com saladas e verduras, coisas de doido; só não comi carne de gado...

Comprei um vinho e fui festejar com Sofia, mas ela já dormia a sono solto...



Adendo:

Meu blogue está a me incomodar desde que comecei a contar nossa história; uma hora é na formatação, outra hora é no encaixe das fotos, e sempre necessito de paciência, e de raciocínio, para entender as modificações que eles fazem lá por dentro, e não nos comunicam nada...

Assim, minha produtividade andou em baixa, mas, não tenho nada a reclamar...

Tempo é uma coisa que dispomos, e de que também não temos, daí as boas surpresas, a primeira há alguns dias atrás, a segunda agorinha há pouco, e ainda houve uma terceira, mais agorinha ainda.

O leitor Rivaldo S. R. da Silva, lá de Goiás, mandou-me a bonita foto, bem enquadrada, bem pensada, só porque me atrevi... Atrevimentos do verbo, atrevimentos da alma, atrevimento das coragens...

Ao tempo em que começava este meu arremate, o amigo português, Luis Coelho da Silva, da Força Aérea Portuguesa, postava também um belo atrevimento, ao pilotar um A-29, um Super Tucano na Base Aérea de Natal, porque não só com jatos F-16, completa-se a carreira. Quando voltar a Portugal, será o responsável em transmitir toda a arte da guerra aérea, aos novos recrutas, como ele um dia também tudo isso começou. Parabéns!

Mas na história de hoje, eu e Sofia chegamos em Foz do Iguaçu, terra do Lima que tão bem me ajudou a planejar tudo isso; dia seguinte o visitaria, deitado numa cama a me reconhecer timidamente, pois havia pouco tempo em que saíra do coma induzido, não digo moído, mas todo quebrado em várias partes da queda livre que havia sofrido, de 10 metros e meio, ou, se preferirem, de três andares e meio, sobre pedras toscas e pontudas, num baque seco nada amigável...

Quase três meses depois do acidente, hoje conversei com ele pelo telefone, que alegre me contou que estava a fazer duas fisioterapias por dia, e que mais um pouco, estaria a andar...

Não é fácil... Não foi fácil...

Não é nada fácil deixar de entregar-se, quando tudo à volta parece querer desmoronar. O Lima recusou-se a pensar que não conseguiria, que não mais andaria, e hoje está a submeter-se a dolorosas caminhadas, suportado por uma cadeirinha de alpinista, que permite apenas 30 por cento de seu peso aos ossos e à musculatura, depois de várias cirurgias...

Evoluindo, passará para os 40 por cento, depois 50, até chegar finalmente aos 100 por cento, como se tivesse novamente aprendido a andar...

A família e os amigos também não ficaram a dever nesse esforço gigante; é o positivismo, é o enfrentamento que sempre resolve e soluciona, põe nos eixos, sem comiserações.

Orgulhoso informou que está melhorando aos galopes, mas não disse que tudo isso deve-se à sua própria força interior, essa que nos empurra mesmo quando não mais temos forças...

O Lima também é um atrevido...

Atrevemo-nos todos, e conseguimos..., afinal somos partes de Deus, que Aprova sorrindo, nossos milagres...

Perguntei a ele quando pedalaríamos..? Sorrindo acanhado, respondeu que em breve...

Breve é um Tempo indeterminado, genérico, mas, em se tratando do Lima, acho que já devo começar a juntar o dinheiro da passagem...

Aos todos atrevidos que conheço, e também aos que não conheço, meus parabéns, pois que de atrevimentos a vida é feita, e conquistada, e suplantada...

Aos que têm medo de atrever-se, bem..., jamais conhecerão o outro lado...

* * *