Pelas terras, pelo Iguaçu, do Paraná... (dia 15)


Dia de fúria pode ser muita coisa:

dia de loucura,

dia de bravura,

dia de rebeldia...

Quem de nós um dia não se enfureceu,

e a tudo resolveu!?

Dia de fúria...
(Paulo R. Boblitz - 21/fev/2015)

Amanhecera enfadado, pelo dia anterior, pelo fim do nosso passeio...; fui tomar meu café, que me foi servido, ou seja, me trazido lá de dentro com aquilo que quiseram que eu comesse. O café preto encorpado estava gostoso, alguns pedaços de melancia, e bastante pão; comi tudinho...

Havia comprado em Capanema, depois de fazer as contas, 750 Pesos argentinos. Calculei dois almoços, o pernoite, um jantar, e as águas minerais pelo meio do caminho. Hoje estou arrependido de não ter tomado nota destas despesas, mas o fato é que ainda me sobravam cerca de 170 Pesos. Cada Peso havia me saído por 21 centavos de Real, ou seja, meus dois dias na Argentina, saíram por menos do que os 157,50 Reais.
Comi bem, dormi bem, e bem acolhido também fui...

Quando finalmente cheguei no escritório da dona do hotel, encontrei Sofia peralteando com os utensílios da escrivaninha; clipes dançavam em roda, folhas transformadas em bolas, que os lápis e canetas chutavam. A calculadora a calcular gastando papel, como se estivesse a cantar. O grampeador parecia desmaiado, o saca-grampos saltitava, o computador a rodar várias listas pelo monitor. Pela vidraça, podia ver todos eles em festa, como se alguma música lá dentro, estivesse rolando. Pela vidraça, também tive que conter-me ao ver tudo aquilo parar de supetão, quando a dona finalmente irrompeu na sala, abrindo a porta...

Por instantes coçou a cabeça, como se nada daquilo ela tivesse deixado daquele jeito; Sofia toda refestelada de lado sobre o tampo da mesa, botando todo mundo para se mexer, regia o que parecia uma orquestra...

Peguei Sofia e a levei para fora, apertando-lhe de leve a orelha. A pobre dona daquele estabelecimento, realmente parecia nada entender pela desarrumação do lugar, lenços no chão, uma cadeira virada, até uma vassoura, assanhada estava bem no meio da sala... Ainda virou-se para mim, como quem quisesse falar alguma coisa, desistindo, afinal ela havia ficado com a chave...

Enquanto arrumava Sofia, sussurrei:

- Sofia, que bagunça foi aquela..?

Não ouvi nenhuma resposta...

Quando finalmente partimos, Sofia requebrava de alegria...

- So-fi-a!, estão olhando para nós..!

O que eu gosto em Sofia, é essa sua rebeldia responsável; ela não explora, não extrapola, tampouco implora. Dá o recado dela e depois fica feliz... Adoro a minha linda...

Aquele era um dos raros momentos em que ela costumava segurar as rédeas...

Aliás, os freios só funcionaram depois que gritei, ao ver que a tienda estava ficando para trás:

- Sofia! Preciso comprar água!!!

Enquanto pagava, fiquei a me conter vendo Sofia girar seus pedais ao contrário, enquanto o pequeno cão, sentado, a observava com atenção...

Garoava de leve, coisa que nos acompanharia até quase chegarmos nas Cataratas. Hoje, sentado em meu balão, descubro que passamos bem próximos do rio Paraná, outro gigante valente que faz muito barulho pelas entranhas de Itaipu...

Sem que soubéssemos, passaríamos por cima de outra represa geradora de energia, a URUGUA-I, simples a não nos deixar ver onde as lutas se travavam.

Próximo dali ficava o Control da Gendarmeria Nacional. Paramos, aproveitei para beber  um gole d'água, fotografar a placa que a indicava, e quando já havia guardado a máquina no bolso, preparando-me para recomeçar a pedalar, reparei naquele sujeito, quase que saindo pela janela da Van, gesticulando, parecendo que queria sair voando. Estaquei o pedal no ar sem força, escutando aquilo que me desconcertou momentaneamente:

- Pau-lô!!!

Olhei melhor e, pera aí!!!, eu conhecia aquele cara sorridente..!

- Leo!!!, ainda gritei, ainda acenei meio desengonçado, pois estava parado, com Sofia a travar-me o giro por entre as pernas, e ele, em movimento, e por mais que eu dobrasse o pescoço acenando, nós dois fomos nos distanciando, até que a Van desapareceu e eu fiquei ali a desejar-lhe um bom dia, triste porque não pudéramos nos falar pessoalmente..., mas o haverá, se Deus quiser...

Brinquei com Sofia, mostrando-lhe a Gendarmeria, e que ela se cuidasse para não ficar presa; sorri, quando olhou-me de cima a baixo...

O tempo estava gostoso, aquele friozinho, cinzento, chão molhado, ventinho a nos cruzar contrário, e logo chegávamos no início do Parque Nacional Iguazú, aquele mesmo em que chegaríamos, se tivéssemos dobrado à direita, pouco depois de Andresito. Uma coisa que reparei, foi que até ali vínhamos acentuando todos os "zús" na Argentina, mas placas estavam a nos desmentir. Fosse como fosse, mais um pouco estaríamos chegando ao Brasil novamente, e isso pouco importaria...

Mas antes, visitaríamos as Cataratas. Sofia estava nervosa e parecia me empurrar, afinal eram mais descidas do que subidas, enquanto eu raciocinava o esforço da volta, o tempo que dispensaríamos para a visita, os quilômetros extras que ainda faltavam, a hora em que chegaríamos em Foz do Iguaçu.

Brasileiros precisam pagar 200 Pesos para a entrada; não aceitam Reais... Vendo taxistas brasileiros, acerquei-me de um deles e acabei comprando os 200 Pesos, cada um saindo pelos 25 centavos de Real, 50 Reais por uma visita espetacular, que nunca mais sairá de minha cabeça... Arredondando, passei muito bem naqueles dois dias, por cerca de 210 Reais, sobrando-me ainda, pouco mais de 170 Pesos, que trouxe para casa, como lembrança...

Sofia não podia entrar, coisa que a deixou muito triste, desolada... Conversamos e encontrei um bom lugar na sala de Comando da Gendarmeria, onde permaneceria em segurança até a minha volta. Prometi que ela seria a primeira a ver as fotos, e que eu contaria todos os detalhes observados. Sofia é inteligente e percebeu que não teria como entrar no pequenino trem, nem como ser empurrada pela passarela de metal, onde centenas de pessoas, das mais esquisitas às menos exóticas, trafegam sem pensar...

Não é uma passarela apertada, mas formigas têm mais senso de direção. O corrimão não é alto, portanto não sei como ainda ninguém caiu dali; pessoas andando apressadas, num lugar onde só deveria haver contemplação...

O passeio não deveria ser em função das fotografias, aqui e ali recordações, porque deixam de ouvir o rugido das águas, de ver o impressionante caudal, de sentir a trepidação, do receber as gotinhas em suspensão, por apenas competirem pelos melhores lugares, pelos melhores ângulos, selfies, empurras-empurras como furões...

Em vez das meditações, em vez do contato próximo à grande fúria de cabeleiras vastas e alvas, que não conseguem a liberdade que tanto querem, o que só vemos e ouvimos, são as pressas, como se tudo aquilo estivesse prestes a ser carregado...

O buraco é sem fundo, onde o próprio rugido é sufocado. Imaginei tudo aquilo em momento calmo, só o vento, as águas e as nuvens que subiam aos céus renascidas em liberdade, sibilando nos molhando suaves, numa troca de simpatias, enfim o homem a ouvir com atenção, a Natureza...

Naquilo que os olhos se perdem, as palavras não compõem, porque não se trata apenas de visão, mas sim de uma cumplicidade entre corpo e alma, quando a alma pede passagem e se assenta nas janelas das pupilas, sentindo, envolvendo-se, amando, recebendo, bêbada em poemas...

A fúria é estupenda, quebra e vem partindo, arrebentando todas as rochas que se julgam valentes, construindo mesas, mesetas, mezaninos, construindo precipícios donde nada consegue escapar daquele imenso peso sem parar, como se um Buraco Negro que a tudo engole com sofreguidão...

A vida, como ela consegue manter-se por entre fios, a fio..?

Matizes, do branco puro ao cinzento escuro, ao marrom, ao bege e amarelo, ao verde do musgo, ao verde molhado, ao verde singelo que apenas sorri tremulando, ao negro do peixe que mexendo-se, desafia com suas barbatanas, toda aquela sucção...

As águas, milhares delas, não despencam, mas se contorcem, se enovelam, se abraçam e caem rolando, batendo, escorrendo, salpicando...

A tranquilidade antes pacata, transforma-se num altar em sacrifícios, donde nada consegue escapar; conseguimos ver suas entranhas, sulcos em cachos...

A fúria se mostra completamente desnuda, sem nenhum pudor, e por instantes, descobrimos o significado da força...

Aquilo tudo de repente se acalma, e como se nada tivesse acontecido, o Iguaçu refeito, nem repara que está maltrapilho, rasgado em pedaços, despedindo-se da vida, unindo-se ao Paraná, também já domado por Itaipu...

Olhei a hora, já ia tarde; Sofia devia estar preocupada...

Como um ET, caminhando por entre tantos, calças de malha apertadas, mangas compridas em camisa desenhada, bolsos nas costas, era tudo ao contrário...

Sem Sofia, eu era mais um louco, desses tantos loucos que não entendemos, até que também conquistemos, nossas loucuras...

Foi um inferno sair dali, estrada apertada, hora de muita gente, apressada, sair, mas todos eles me respeitaram, quando me postava bem no meio da estrada para não ser espremido, onde não existia acostamento, com outro veículo em sentido contrário; negociávamos, eu sempre de olho no espelho retrovisor...

Foi um longo trecho em que as subidas judiaram, pois as necessitava subir a pleno vapor, tamanho movimento tinha aquele pedaço.

Chegamos num quartel do Exército argentino e paramos, descansamos por longos quinze minutos; a via duplicada ainda estava longe, mas nem por isso, quando lá chegássemos, encontraríamos acostamento e paz...

Anoitecia pelo cair da tardinha, que ainda estava cinzenta. Chegamos na Aduana argentina, furamos a fila interminável de carros, entregamos nosso papel de entrada e seguimos para a ponte da fraternidade, a ponte Presidente Tancredo Neves, quase 500 metros, vencendo o Iguaçu que corria em remansos, calmo como se tudo ele houvesse esquecido, como se tanta fúria, não tivesse acontecido...

Agora o Brasil nos recebia...

De novo, nossa Aduana nenhuma bola nos deu...

Encontramos uma ciclovia, e por ela seguimos bem calmos, como tranquilo também seguia o Iguaçu, terminando nós três, nosso passeio...

Eram 6 e meia, 7 e meia pelo horário de verão, quando chegamos no hotel; agora, uma outra expectativa pairava pelo ar, o passeio no dia seguinte...

Conheceríamos Itaipu...

Havíamos percorrido 83,4 quilômetros, em 8 horas e 38 minutos, queimando 5.020 calorias, subindo 821 metros...

A noite era de festejo; arrumei uma churrascaria bem vizinha do hotel, comi javali, faisão, porco, peru e frango, tudo bem acompanhado com saladas e verduras, coisas de doido; só não comi carne de gado...

Comprei um vinho e fui festejar com Sofia, mas ela já dormia a sono solto...



Adendo:

Meu blogue está a me incomodar desde que comecei a contar nossa história; uma hora é na formatação, outra hora é no encaixe das fotos, e sempre necessito de paciência, e de raciocínio, para entender as modificações que eles fazem lá por dentro, e não nos comunicam nada...

Assim, minha produtividade andou em baixa, mas, não tenho nada a reclamar...

Tempo é uma coisa que dispomos, e de que também não temos, daí as boas surpresas, a primeira há alguns dias atrás, a segunda agorinha há pouco, e ainda houve uma terceira, mais agorinha ainda.

O leitor Rivaldo S. R. da Silva, lá de Goiás, mandou-me a bonita foto, bem enquadrada, bem pensada, só porque me atrevi... Atrevimentos do verbo, atrevimentos da alma, atrevimento das coragens...

Ao tempo em que começava este meu arremate, o amigo português, Luis Coelho da Silva, da Força Aérea Portuguesa, postava também um belo atrevimento, ao pilotar um A-29, um Super Tucano na Base Aérea de Natal, porque não só com jatos F-16, completa-se a carreira. Quando voltar a Portugal, será o responsável em transmitir toda a arte da guerra aérea, aos novos recrutas, como ele um dia também tudo isso começou. Parabéns!

Mas na história de hoje, eu e Sofia chegamos em Foz do Iguaçu, terra do Lima que tão bem me ajudou a planejar tudo isso; dia seguinte o visitaria, deitado numa cama a me reconhecer timidamente, pois havia pouco tempo em que saíra do coma induzido, não digo moído, mas todo quebrado em várias partes da queda livre que havia sofrido, de 10 metros e meio, ou, se preferirem, de três andares e meio, sobre pedras toscas e pontudas, num baque seco nada amigável...

Quase três meses depois do acidente, hoje conversei com ele pelo telefone, que alegre me contou que estava a fazer duas fisioterapias por dia, e que mais um pouco, estaria a andar...

Não é fácil... Não foi fácil...

Não é nada fácil deixar de entregar-se, quando tudo à volta parece querer desmoronar. O Lima recusou-se a pensar que não conseguiria, que não mais andaria, e hoje está a submeter-se a dolorosas caminhadas, suportado por uma cadeirinha de alpinista, que permite apenas 30 por cento de seu peso aos ossos e à musculatura, depois de várias cirurgias...

Evoluindo, passará para os 40 por cento, depois 50, até chegar finalmente aos 100 por cento, como se tivesse novamente aprendido a andar...

A família e os amigos também não ficaram a dever nesse esforço gigante; é o positivismo, é o enfrentamento que sempre resolve e soluciona, põe nos eixos, sem comiserações.

Orgulhoso informou que está melhorando aos galopes, mas não disse que tudo isso deve-se à sua própria força interior, essa que nos empurra mesmo quando não mais temos forças...

O Lima também é um atrevido...

Atrevemo-nos todos, e conseguimos..., afinal somos partes de Deus, que Aprova sorrindo, nossos milagres...

Perguntei a ele quando pedalaríamos..? Sorrindo acanhado, respondeu que em breve...

Breve é um Tempo indeterminado, genérico, mas, em se tratando do Lima, acho que já devo começar a juntar o dinheiro da passagem...

Aos todos atrevidos que conheço, e também aos que não conheço, meus parabéns, pois que de atrevimentos a vida é feita, e conquistada, e suplantada...

Aos que têm medo de atrever-se, bem..., jamais conhecerão o outro lado...

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