Pelas terras, pelo Iguaçu, do Paraná... (dia 13)


Se a água um dia virou vinho,

por que o belo, não viraria feio?

Se o Mal, um dia quis predominar,

por que o Bem, não o suplantaria..?

Se o desânimo, um dia quis derrubar,

por que a Fé, não haveria de resolver?

Sem perder a calma, sem perder a Fé...
(Paulo R. Boblitz - 19/fev/2015)

Seria um dia triste para todos nós, mas não tínhamos como prever o futuro, esse que se nos chega sem avisar, impondo-se do jeito que ele sempre quer, pegando-nos de surpresa...


Estávamos atrasados para a saída, afinal dormimos mais um pouco do que devíamos, por conta do dia anterior que não havia sido fácil. O café da manhã estava divino com muitas frutas hidratantes, dois ovos mal passados, café forte encorpado.

Rose, sorrindo para mim, prometeu ligar para a Segurança da Usina Hidrelétrica Salto Caxias, pedindo que me aliviassem a barra quando por ali estivesse passando, e sorrindo, iniciamos nossa descida, já com vista deslumbrante do que seria encontrar as boas-vindas numa grande obra, erguida pelos homens.

Nossa Bandeira estava um espetáculo à parte, verdejante, pujante, linda a tremular anunciando os ventos...

Nosso dia também deveria ter sido lindo, pois assim mostrava nosso planejamento...


O que não sabíamos, é que tudo dar-se-ia de forma diferente.

Chegando na Usina, senti o pneu esvaziando, fazendo Sofia rebolar; havíamos passado sobre algo nada amigável. Retirei os alforjes, coloquei Sofia de cabeça para baixo, retirei a roda traseira e troquei a câmara de ar, por outra novinha na embalagem; o furo na primeira, cuidaríamos depois...

Chegou-se-nos o carro da Segurança e começamos a conversar, um sujeito sorridente, simpático, que me perdoem, esqueci o nome em meio depois aos tantos problemas que se achegaram. Nos encontrara em meio ao caos, uma porção de coisas espalhadas pelo chão, Sofia de cabeça para baixo, e eu a me virar com o pneu furado. Aos poucos, as coisas foram se organizando, chegou a hora de novamente montar, eu e Sofia conhecermos aquilo tudo, quando nosso novo amigo pôs tudo, quase tudo, à nossa disposição.

Mostrou os lugares em que teríamos bons ângulos para as fotos bonitas, nos ensinou a pequena varanda de sua guarita em estratégica posição, mas necessitava ausentar-se, e que tomássemos cuidado, que lêssemos os avisos...


Salto Caxias é linda, assim com lindo é tudo aquilo que promove o bem, mas não nos dava um ângulo bom, quero dizer, aquela posição onde captaríamos toda a espetacularidade do lugar. Salto Caxias mostrava-se tímido, aos poucos, por ser tudo em ângulos apertados. Somente lá de baixo, depois que tivéssemos passado por tudo, é que teríamos uma visão completa de todo o conjunto, e isso só foi possível, graças ao Tempo que nos aguardou enquanto pôde, pois que vinha anunciando sua ira, pelos trovões, de que a coisa iria ficar feia...

E ficou...

Mas antes, permitam-me falar de Salto Caxias...


Bem cuidada, represa água que vai beliscar longe, comunidades nos vários rincões; no dia anterior, havíamos passado por uma dessas beliscadas, ainda longe do Hotel. O lago não é largo, pois que deve ocupar o cânion que o Iguaçu construiu ao longo dos milhões de anos que por ali navega, ou seja, tem mais comprimento, do que largura. Deve ter sido lindo, e dramático, o dia em que tudo aquilo começou a ficar submerso...

A Usina, propriamente dita, fica no canto apertada, no funil que agargala todas as águas que tentam passar, pelas 4 bocarras que descem com muita vontade, produzindo redemoinhos, um perigo para tudo que ali esteja por descuido...


Por instantes parei e fiquei olhando, uma altura danada, a julgar que pessoas do meu tamanho, por ali andavam, nas passarelas e escadas, todas amarelas... Lembrei do cuidado que devemos ter, diante do gigante onde perdemos a noção do nosso tamanho... Cada guarda-corpo daquele, tinha ou deveria ter 1 metro e vinte de altura... Nossa visão abarca tudo, porque foi feita para isso, dispersando-se nos detalhes, abrigando o conjunto todo, diferente do olho da águia, que somente foca no objetivo.

Somos filhos diletos de Deus, porque nossos olhos captam sempre o amor; foram feitos para isso... Águias e demais predadores, não têm tempo para a poesia...

Ao final do paredão, lá estava o grande olho que a tudo vê, apontando diretamente para mim, como a despedir-se de nós, como a sentir orgulho por termos a tudo aquilo admirado... Desejei a todos eles um bom dia, e partimos; agora enveredaríamos por estrada de chão, agora enfrentaríamos a grande ira do Tempo, com seus riscados azuis até a terra, alfinetando-a com grande estrondar, que juro, estava a nos meter muito medo...

E mal havíamos nos adentrado na estrada de chão, pedregosa cheia de pontas, o pneu arriou num sopro só... Em menos de uma hora, o pneu traseiro havia arriado duas vezes, uma estatística pouco provável. Parei, desapeei Sofia de toda sua tralha, e comecei no reparo, ao mesmo tempo em que a chuva grossa também começava. O que antes estava úmido, agora com facilidade estava a se encharcar, e foram muitas coisas a serem feitas ao mesmo tempo, ao tempo em que nos perdíamos, sem proteção, sem abrigo, lixa molhada, borracha molhada, tampouco fazer casinha ajudava, pois que agora a água escorria em filetes, pela cabeça, pelo queixo, pelos braços, de todos os lugares...


Achando que fosse um furo, tateei por dentro do pneu, já nessas alturas cheio d'água barrenta, grãos de terra... Há muito que reparo meus pneus furados, mas daquele jeito, era a primeira vez. Só uma vantagem vi em reparar câmara de ar debaixo de chuva: a gente acha o furo rapidinho, pelo radiante borbulhar...

Montei tudo, as mãos escorregando, e meti pressão no pneu. Busquei tudo e me arrumei como pude, por último pegando a câmara, e estava lá, um rasgo por onde entraria meu polegar, bem na emenda durante a vulcanização. Foi passar por cima da primeira pedra mais robusta, e a câmara abriu-se como se abre uma represa quando arrebenta.

Agora era montar e sair dali, rezando para novamente não furar, e um raio daqueles não nos cair por cima, porque estávamos em verdadeiro campo aberto, milho novo de um lado, milho novo do outro lado, ou soja de um lado, ou soja do outro, já nem lembro mais...

No começo achamos que era o terreno macio, mas descobrimos que era novamente pneu vazio.

- De novo!? - perguntou Sofia...

Nem respondi, porque ela já sabia da resposta. Desmontei tudo, puxei a câmara para fora, meti-lhe ar e procurei pelo furo. Como raios que não caem duas vezes no mesmo lugar, câmaras também não furam duas vezes no mesmo buraco... O remendo não tinha vedado, e nem precisamos saber do porquê não vedou. A lixa já não lixava mais, mesmo assim tentei arranhar aquilo tudo, gastei um bom naco de cola, mas eu só tinha duas mãos. Para piorar, o trânsito por ali estava intenso, pois que uma ponte, sei lá donde, havia sido fechada pelo movimento dos caminhoneiros.

Não bastasse a lama ao nosso redor, ainda se nos chegavam os respingos de quem passava.

Juro que eu estava cansado... Encher pneu é a parte pior, a mais feia, e encher pneu que não enche..?

Quando não se há o que fazer, não fazemos nada, então comecei a andar, empurrando Sofia, mas depois de 5 metros, paramos.

Estávamos no meio do nada, apenas uma câmara de ar, e daquele jeito, ela não duraria muito, até fatiar por completo. Levantei Sofia pelo bagageiro e retomamos, e o cansaço foi maior, pois que peso, por menor que seja, se levantado de mau jeito, acaba pesando muitas vezes mais. Troquei de braços, inventei posições, e o progresso que era bom, de jeito nenhum...

Foi quando um bom Cristão passou e parou. Perguntei sobre um borracheiro, e a resposta foi mais feia do que a situação: uns 10 quilômetros à frente...

E pensei que o meu Anjo da Guarda tivesse ficado lá atrás em Salto Caxias, tomando banho na represa, quando o ouvi falando:

- Cê me espera aqui, que eu vou em casa descarregar e já volto pra te buscar...

Creio que ainda consegui carregar Sofia uns 800 metros, enquanto ele não chegava, quando de repente despontou após a pequena ladeira. Pela plantação, corriam dois cães pastores lindos, negros com colares brancos no pescoço, naquelas alturas já tingidos do barro liguento, muito parecidos, ou até mesmo da raça Border Collie, sorridentes, felizes, fazendo uma festa enorme enquanto o dono deles trafegava pela estrada.

Inteligentes, não me estranharam, porém ficando de longe observando, como se soldados em prontidão.

Thiago fez a manobra, deitei Sofia na caçamba, guardamos tudo na boleia e partimos em busca do borracheiro. Aos poucos, os cães foram ficando para trás, acabando por sumirem no horizonte. Subindo e descendo, chacoalhando pela estrada agora calçamentada, a chuva mais violenta, assim chegamos num Posto, onde o borracheiro ranzinza nos informou que pneu de bicicleta não consertava.

Thiago riu, já como soubesse do que encontraria, informando que me levaria até outro borracheiro.

Olhei a chuva, olhei meu estado, olhei meu cansaço, pensei numa fração de segundo e lhe disse:

- Não, Thiago... Hoje não é dia de pedalar... Você conhece alguém que me fizesse um frete até Capanema?

- Eu te levo até lá..!

E nos levou, e deve ter rodado mais de 100 quilômetros em tal façanha. Contou-me sobre os Vôs que ele todos os dias vinha visitar, tomar café da manhã ou almoçar, como Veterinário ver seu gado, seus cavalos, sua plantação que agora já o preocupava, pois que as chuvas chegavam em época de colheita, e mais uma ou duas semanas, a continuar daquele jeito, tudo se perderia...

Explicou-me que naquele dia, a chuva chegava do sul, e quando vinha daquela direção, era coisa feia com certeza...

Vou torcer para que ele um dia venha pelo Nordeste, e ligue para mim, para poder levá-lo em muitos passeios, nenhum deles debaixo de chuva, para nós uma bênção, para eles um aperreio...
Quando menos esperava, chegávamos no Hotel Tito's, o mais bonito da viagem, o preço mais camarada do passeio, e logo nele, fui deixando minhas marcas de barro... Tomei um banho, lavei muita roupa barrenta, até hoje manchada, agarrei a roda de Sofia e fui consertá-la. Descobri a loja Beto Bike, recém aberta e já conquistando bons fregueses, pela presteza, humildade, qualidade e competência do Beto, que desmontou tudo, lavou, enxugou e montou com uma nova câmara de ar. Por via das dúvidas, saí dali com mais três novinhas numa sacola; se agora fosse furando, eu iria trocando... Nunca mais farei viagem apenas com uma câmara reserva.

O almoço foi como janta, mas dia seguinte seria verdadeira moleza, apenas 40 quilômetros, cerca de 720 metros em subidas, para chegar cedo em Andresito, na Argentina, onde estava programada uma palestra sobre Cicloturismo para os alunos do Leandro Añais, porém esse é um mundo maravilhoso, e caudaloso; notícias me aguardavam no hotel, mas essa história, só conto depois...

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