Desafio cumprido...

Há vezes em que nos enganamos,

há vezes em que, enganarmo-nos, é gostoso...

Se for para menos, tudo bem, tentamos...,

mas se for para mais, o prazer é completo...


Desafio cumprido...
(Paulo R. Boblitz - 29/abr/2012)

Há um bom tempo que eu sonhava chegar até Lagarto, e cheguei, e voltei, no mesmo dia... Há um bom tempo que sonho em chegar em Glória, ou em Dores, até mesmo em Xingó, mas aí será preciso uma noite pelo meio...

Na verdade eu pretendia ir para Capela, passando por Divina Pastora, e resolvi saber se o Ailton gostaria de ir comigo. Para isso, liguei para o Eduardo, com quem ele trabalha, e na conversa que vem e que vai, o Eduardo me fez mudar a cabeça. Contou-me sobre a vez em que pedalou até Lagarto, pela estrada do Sapé, e tão bem falou sobre ela, que me cativou... Estava definida a minha viagem-treino de fim de semana: Lagarto, via Sapé...

Abri o Google Earth para traçar o meu roteiro, algo em torno de 120 quilômetros, ida e volta, mas as imagens são de 1969, portanto mostrando apenas nuvens, mas caminhos, nenhuns...

Da decepção, porque gosto de traçar meu plano, em pouco tempo não lembrava mais. Se o Eduardo havia gostado, haveria eu também de gostar. Fechei o programa, e mandei abrir o meu na cabeça...

Domingo chegado, cinco da manhã partindo, a esposa na janela para me dar o adeus, ainda noitinha segui, e logo encontrei o Vovô, em direção contrária, logo após o Bom Preço da av. Saneamento. Na verdade foi ele quem me viu, gritando pelo meu nome em cumprimento, no que respondi com satisfação e bom grado; somos bons amigos, mas na hora de passearmos, cada um segue no passeio que prefere...

Logo chegava na avenida Contorno e pegava a ciclovia, que acabou próxima do viaduto para pegarmos a BR, momento formal em que abandonamos a cidade, em direção para o mais longe...

Logo, eu chegava na BR propriamente dita, e pelo acostamento, não sem antes solicitar a proteção de Deus, seguia resoluto pela rodovia em obras de duplicação. O dia havia amanhecido nublado, mas não prometia dar-me a proteção bem-vinda do pouco sol. Enquanto pude, segui pelas partes já construídas, ou em construção, longe da ânsia do chegar das BRs, essa mesma que causa tantos acidentes e tristezas.

Minha primeira fuga foi para um longo trecho em procedimentos de terraplenagem, onde o Rolo Compressor dentado havia feito seus buracos, um atrás do outro. Até parecia uma pista de testes para amortecedores, onde brinquei com a emissão gutural da letra A, enquanto a capacidade respiratória permitia, tornando-me num gago da letra A - coisas de quem se encontra só...

Desci, subi, e mais um pouco estava chegando em Itaporanga d'Ajuda, quando percebi as buzinadas efusivas dos amigos Caldas em seu ônibus, Gilton e Cândida um pouco atrás, e Jonas e Estela fechando o comboio. Confesso que foi um incentivo e tanto, à minha pretensão... Lancei a eles o meu abraço, mas o que eles não sabiam, também a minha alegria e orgulho, pois estavam reconhecendo o Boblitz, apesar da distância e velocidade que nos separavam...

Logo entrei em Itaporanga, a sonhar com aquela ladeira que leva até a antiga Estação de trem, e a venci com orgulho, curta, porém muito agressiva...

Dali em diante, continuaria a subir, lenta e gradual, até quase Lagarto, sempre à minha esquerda, imenso laranjal... Passei por Itaporanga d'Ajuda, pelos povoados Sapé, Moita Formosa, Gravatá, Estancinha, pela entrada do pov. Jenipapo, por Brasília, onde tomei um Caldo de Cana feito na hora, Urubucutinga, onde finalmente avistei a cidade de Lagarto lá embaixo, sinal de que teria que novamente subir tudo aquilo, quando da volta...

Em Lagarto, no trevo, dobrei à direita, mas ninguém sabia da churrascaria que o Beto havia recomendado. Liguei para ele, que me ensinou uma primeira parte, pois que eram tantas as explicações, que resolvi separá-las. Cheguei no semáforo, dobrei à direita e subi até à praça que já conhecia, chegando no segundo semáforo. A primeira parte, para quem está escutando, cansado, ao som de muitas carretas passando ao lado, estava concluída... Peguei à esquerda e, ao lado de um cemitério com os portões abertos me chamando, liguei novamente para o Beto, que me ensinou estar a Churrascaria Renascer, logo depois do Parque da Vaquejada, ambiente gostoso e sadio. Ali eu deveria procurar pelo Preto, o dono e ciclista, um dos organizadores do Grupo Turma Da Bike Lagarto, que, a exemplo do nosso Aracaju Pedal Livre, já reuniu mais de 300 pessoas num passeio só. Também fazem trilhas, e a última em que participei, a fizeram noturna, em parceria com o Grupo aracajuano Vida de Bike.

Beto só não me havia informado que a Churrascaria ficava do outro lado de Lagarto, no ponto mais alto da cidade... Parece um detalhe sem interesse, mas para quem vem pedalando de uma grande distância, é significativo... De qualquer forma, tenha sido grande ou pequena, a distância pedalada, uns quilômetros a mais ou a menos, não fizeram muita diferença. Diferença faz o atendimento e a qualidade que você consome. Preto me abriu as portas, porque é Ciclista, porque gosta de bicicletas. Conversamos um bom tempo sobre trilhas e bicicletas... Para quem for por aquelas bandas, a Churrascaria fica no bairro Cidade Nova, logo depois do Parque da Vaquejada, à esquerda. Comida farta e saborosa, 2 cervejas bem geladas, 2 garrafinhas de água mineral com gás = R$ 24,00 - Preto, com certeza, terá muita conversa sobre pedais e bicicletas...

Quando você sente que a preguiça e a moleza lhe querem apoderar, é hora de partir... Cerca de uma hora depois que cheguei, partia novamente, tudo ao contrário, paisagens invertidas, a vontade férrea de terminar o começado, com vento contra...

Foi assim que recomecei, num começo frio e sem graça, entre ruas que brindavam suas bebidas, suas turmas de sempre, suas músicas que só fazem barulho, até chegar finalmente na rodovia, onde o vento só é interrompido pelo barulho dos motores, e de algumas buzinas que reconhecem nossas bravuras ao sol do meio dia, passando ao largo, cuidando da própria vida...

E mais um pouco chegava no trevo que me interessava, aquele que subia, lento e calmo onde um dia o homem construiu sua rodagem. Peguei-o à direita e o vento se intensificou, vento morno de paisagem seca, aumentando a nossa sede...

Cheirei fumaça, cheirei carniça, e mais um pouco vi um coelho, dos tantos que havia visto durante o dia, à minha frente pedindo para ser ultrapassado, mas esse provaria ser diferente. Era o Seu Duda que empurrava sua velha Monark ladeira acima. Devagar enquanto me aproximava, lancei-lhe um boa tarde, que ele sorridente respondeu, procurando companhia. Montou e me acompanhou pelo restante do cocuruto, dizendo que eu o havia ultrapassado pela manhã, quando ele carregava 35 cordas de caranguejos para vender em Jenipapo. Senti-me arrogante pela parte da manhã, envergonhado quando pela parte da tarde, e diminuí meu ritmo... Seu Duda merecia respeito...

Pedalamos juntos por um longo tempo, e ele agora para o meu desespero, sem apear da velha Monark, trec-trec-trec a cada pedalada a tentar me acompanhar, eu com pressa, e ele querendo fazer bonito, 61 anos às costas, 30 ou 35 anos no mesmo negócio, ganhando a vida como bem podia... Diminuí e encostamos, paralelos, na mesma velocidade. Ele me confessou que estava tentando trocar por uma Shineray, quem tornaria a vida dele mais leve. Concordei, enquanto ao mesmo tempo lembrava dos radicais do Grupo Cicloturismo, que vêem apenas o que mal a pior nessa história de motores e gasolina. Soltei um leve sorriso, enquanto lhe dizia que ele estava certo...

Seu Duda demorará a sair de minha cabeça, oxalá o encontre novamente, para, sem nenhuma arrogância, não ultrapassá-lo, e sim pedalar com ele, escutar tanta história bonita de vida, que bem poderia ter sido melhor, se esse povo tivesse mais orgulho, mais sonhos grandes...

Seu Duda, ao saber que eu estava com pouca água, ainda se ofereceu para encher meus "vasos", no que agradeci com muito respeito, pois esse povo, quanto menos tem, mais tem para dar... Pouco antes de Itaporanga, agora só descida, nos separamos, não sem antes dele alvitrar-me, um gostoso "que Deus o acompanhe..."

Somente bicicletas permitem esse tipo de convívio, esse tipo de percepção, essa aproximação... Que Antonio Olinto durma bem em todas as noites, ele que reconheceu como certa, minha determinação em viajar ou passear sozinho, quando dependemos de nós mesmos, e ao mesmo tempo, de todos os que vamos encontrando pelo caminho...

Comprei minha água mineral com gás, e cerca das 3 e meia da tarde, era novamente saudado pelo amigo Caldas, e pelos amigos Jonas e Estela, agora retornando... Mais 40 minutos, todos eles estariam em casa, mas para mim, muito chão ainda havia a ser pedalado...

No trecho em que o Rolo Compressor havia tudo esburacado, já não havia graça nenhuma em brincar de gago da letra A; os punhos doíam muito, e a bunda reclamava bastante...

O passeio havia passado da conta... Dos cerca de 120 quilômetros pensados, ao todo foram 167,5 km pedalados, 1.440 metros em subidas acumuladas, 10 horas e 13 minutos em cima de uma sela, numa velocidade média de 16,4 km/hora, 6.362 Calorias queimadas, mas, o que mais me deixou contente, foi a evolução dos batimentos cardíacos, média de 133 bpm, máxima de 156 bpm, num único pico, lá naquela subida ousada, a tal de Itaporanga d'Ajuda, curta, porém agressiva...

Cheguei em casa já noitinha, sem farol mas com a lanterna traseira vermelha piscando. Bebi o restante da água que sobrava, diminuindo o peso da bicicleta, e a carreguei até o segundo andar. Tomei um banho, mal jantei, e capotei... Dormindo, ao tentar me virar de posição, a cãibra na perna direita me atacou, e sozinho a enfrentei, como sozinhos estamos nesse mundo...

Foi um trecho longo, confesso, não tão longo para os mais jovens, mas para mim, 60 anos nos couros, de bom tamanho. Claro que o repetirei, mas somente na ida, porque não pedalo para sofrer... Vou marcar com a Esposa, ela sair mais tarde e nos encontrarmos, seja lá onde for, e com ela voltar contente, pelo pedal cumprido, pelo almoço partilhado...

Pedalar não é difícil; primeiro um pé, depois o outro...

* * *

Um comentário:

  1. Meu bom amigo Boblitz continua escrevendo bem e a cada dia melhor, não continue nos privando desse outro prazer e eternize seus relatos através de um bom e tradicional livro. Serei capaz de viajar de Recife a Aracaju só para a noite de autógrafos. Forte abraço!!!

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