1a. Trilha noturna (i) d'Os Zuandeiros, Propriá - Brejo Grande

Não se pode escrever pouco, de coisas que são grandes...

Estendi-me, mas não passei da conta...

Só um segundo capítulo, será necessário,

e muitos anos para esquecer...

Quando chegarem meus dias parados,

tomara ainda relembre com bons olhos,

aquilo que a alma viu...



1a. Trilha noturna (i) d'Os Zuandeiros, Propriá - Brejo Grande
(Paulo R. Boblitz - jan/2010)


Oito horas da noite, pela janela observava uma bela chuva alegre a zoar lá fora, com o vento a lhe fazer companhia, em cantoria alvoroçada...

Peguei o celular e liguei:

- Omar! A trilha vai ser federal...

- Talvez sim, talvez não... Estamos muito distantes de lá - respondeu-me com otimismo.

Ainda precisávamos regular os pneus do reboque, tarefa um pouco complicada, por não ser qualquer posto a oferecer o espaço necessário para ônibus e reboque, manobrarem.

A noite estava plena com seu manto escuro, pois era noite de Lua Nova; com as nuvens pesadas, estava pior ainda...

Enfim pegamos a rodovia, e de onde estava sentado, conseguia ver as palhetas limpando as gotas no vidro, para lá e para cá em paciência. Fechei os olhos e tentei dormir...

Com uma hora de atraso, às três da madrugada, saíamos todos de frente do Hotel Velho Chico, às margens do mesmo rio, para pegarmos nosso caminho, nossa aventura, não sem antes uma breve Oração ao Pai, solicitando a proteção que Ele atendeu prontamente, pois a chuva parara, restando apenas as poças, ilhas de prata no chão duro...

Todos piscando, saímos devagar, nos aquecendo... Olhei para o alto e no firmamento havia também uma imensidão de outras ciclistas sinalizando com suas lanternas... Sorri para elas e prometi não fazer feio aqui embaixo.

Pela primeira vez eu via um comboio piscando vermelho numa completa escuridão, contorcendo-se para os lados, tomando direções, uma grande cobra fantasiada, deslizando por um asfalto também negro, impecável...; o carro de apoio da frente, lanternas vermelhas fixas, lanternas amarelas piscando, uma outra imantada no teto, parecia ser a cabeça...

O carro de apoio de trás, faróis acesos, nos penetrava com suas luzes agudas, que tremulavam por entre todos nós qual miragem fantasmagórica e sedutora do deserto. Nossas sombras se tocavam, se misturavam, se adiantavam como que querendo nos incentivar a ultrapassá-las...

Nossas pernas pedalando, produziam sombras que se mexiam em energia, como aquelas em que o calor distorce as imagens em vibrações, pelo efeito do ar aquecido. Olhando aquelas sombras disformes e fora de escala, por instantes percebi uma espécie de vida diferente, homens e bicicletas unidos, alienígenas se movimentando sem barulho pela noite, enquanto os humanos apenas dormiam nos povoados...

Vez ou outra, nos cortavam em sentido contrário, outras luzes das manhãs de sempre trabalho, onde o horário é ditado pela Natureza, não importando se existam as leis trabalhistas...; deviam nos achar uma procissão diferente...

Quando chegamos no povoado de Pindoba, enfim saímos do asfalto, pegamos a piçarra úmida com suas pedras redondas a saírem piscando dos nossos pneus, mas..., apenas para descobrirmos que havíamos tomado o caminho errado...; uma grande porteira nos barrava os pedais, fazendo com que os que a percorreram antes para o planejamento da trilha, trocassem observações:

- Eu não lembro de cancela nenhuma..!

- Todo mundo!, meia volta..! - definia a liderança.

Sorridentes, apontamos todos os nossos faróis para o último carro de apoio, como a descontar tanta luz que ele vinha nos despejando há tanto tempo; alfinetado por tantos pontos luminosos, desligou os faróis altos e permaneceu em meia luz, enquanto íamos passando por seus lados, como se um Comando buscando algo...

Pegamos outra vez o asfalto; nossa entrada ficava mais adiante... O céu já não era mais tão escuro, pois ligeira claridade se insinuava, querendo dar contornos às coisas aqui de baixo; era o aviso das belas ciclistas, principalmente das Três Marias, a nos informar que o passeio delas estava chegando ao fim...

Novamente a piçarra nos estalava sob as rodas, o terreno mais pesado, os desvios dos buracos, o passar pela melhor passagem, num ziguezague que só quem vê, é quem está atrás...

Ao nosso lado, canais de irrigação com muita água a correr, toda captada do Velho Chico, a distribuir vida pelo campo inteiro, produzir alimentos selecionados, até para a exportação. O Sol estava prestes a aparecer, mas enquanto ele não chegava, lembrava com emoção do meu Caminho de Santiago de Compostela, com os mesmos canais, os mesmos campos semeados e verdes, o mesmo cantar dos pássaros, o mesmo caminho molhado, o mesmo grupo de Peregrinos...

A realidade me fez acordar...; um jato forte de um aspersor, agora dividia o grupo em duas partes... Tivemos que aguardar que ele fosse embora, pois aquilo não era "irrigação"; aquilo mais parecia um combate a incêndio...

Voltamos ao asfalto novamente e descobrimos que havíamos pegado o caminho errado, pois deveríamos ter passado pelo povoado Saúde, e pela cidade Santana do São Francisco, agora bem visível ao longe à nossa esquerda, ainda acordando...

Acabamos pedalando direto do povoado Pindoba até a cidade Neópolis, a única cidade sergipana a cultuar o frevo, motivo daquelas duas estátuas em evolução; no horizonte, nuvens pesadas já aos prantos...; prefiro pedalar seco...

Aproveitamos e fizemos uma parada para um descanso mais prolongado, onde comemos maçãs, bananas e laranjas, e nos reabastecemos de água e isotônicos, momentos em que cada um usa da própria fórmula, com barras de cereais ou proteínas, mariolas (tabletes de goiabada ou bananada), banana passa, mel em sachês etc.

Partimos novamente e já dentro de Neópolis nos dividimos em três grupos, depois de duas grandes ladeiras, pois enquanto as vamos subindo, vamos nos distanciando conforme nossos motores. Já vencendo a segunda ladeira, vi um grupo pegando o caminho da esquerda, e o outro, o caminho da direita. Gritei:

- João! Qual dos dois?

- O da direita! Aquele não tem saída..! - gritou-me ele de volta.

E subimos pelo menos mais umas duas belas ladeiras..., quando pelo meio delas, uns três ciclistas resolveram buscar aqueles que haviam descido pela esquerda. Vou dar a idéia pr'Os Zuandeiros comprarem aqueles colares sinalizadores, qual presidiários, e cada um será um pontinho em alguma tela...

Os que desceram para o rio, fizeram uma pequena e bela trilha beirando o rio; nós que subimos para a direita, pegamos apenas asfalto empinado; lá na frente nos encontramos todos, e até levei um susto quando dei de cara com eles, pois vinha conversando comigo mesmo...; dali até chegarmos no povoado Serrão (12 km), foi uma subida leve e constante, a dar agonia...

Passamos pelo povoado Betume, onde o incentivo à piscicultura é intenso.

Foi no povoado Serrão que Os Zuandeiros distribuíram as pequenas cestas básicas arrecadadas entre os participantes da trilha, informando sempre que aquilo era uma festa para todos nós, e dia de festa tem que ter presente.

É preciso saber dar; é preciso saber receber...

Ali fiz uma pequena parada para um gole d'água, seguindo em frente junto com Omar e o gaúcho Nestor, preferindo ver a Natureza agressiva do rio, do que a ver o sorriso triste e angustiado daqueles que prefeririam ganhar aquilo tudo pelo trabalho.

Chegamos em Ilha das Flores e tiramos umas fotos sobre o calçadão, que foi construído sobre uma grande obra de contenção, proteção da cidade quando das cheias do velho São Francisco; estávamos a apenas 9 km de Brejo Grande...

Retomamos os pedais e seguimos devagar em frente, conversando os três, e mais um pouco nos passavam quase todos em franca correria, contaminando o Tchê Nestor que começou a andar forte também, nos deixando para trás.

Atrás ainda vinham o Fernando, que dava companhia e socorro à Dôra, em sua primeira trilha, e à Marília, em sua segunda trilha; mais atrás desses três, ainda estavam Raimundo e João, que alegou ter furado o pneu, solicitando socorro ao Raimundo, mas algo nos diz que eles foram os Carniças dessa trilha...

Uns mais cedo, outros pelo meio, mais alguns finalmente, todos chegamos ao Restaurante Mangabeira, às margens do majestoso e polêmico rio da integração nacional, o velho, ainda grandioso, rio São Francisco, ou Velho Chico, como os que gostam dele, preferem chamar...

Olhei para o meu hodômetro e lá estava a marca dos quase 67 km, uma distância bonita de dar gosto...

Entramos na água tépida e nos refrescamos à vontade; mais um pouco, sem nenhum atraso, às 8 horas, nosso café da manhã era servido: cuscuz de milho, pescada em postas fritas, pilombetas fritas e crocantes, ovos cozidos, ovos estrelados, inhame cozido, macaxeira cozida, carne de sol, pão com manteiga, café, leite, suco de caju, suco de graviola, enfim, comida a valer para tanta gente faminta, que praticamente apenas havia bebido água.

Mais um pouco chegava o Caldas; guardamos nossas bicicletas, trocamos de roupa e já estávamos prontos para o passeio de barco já atracado nos aguardando, ali mesmo, em frente do restaurante, mas isso é uma outra história, outro capítulo à parte...

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