Pelas terras de Santa Catarina (dia 5)

Cuidado com a soberba,

pois ela pode levá-lo a caminhos errados...

Perguntar errado, não importa,

mesmo que tenha sido às pessoas certas...


Pelas terras de Santa Catarina (dia 5 - sábado)
(Paulo R. Boblitz - 8/set/2012)

(São Martinho (Hotel da Dona Blanda) - Laguna)

Tomei um café especial, farto à minha frente... A experiência informa que comer muito não é bom quando temos que pedalar. Ao acordarmos, estamos com o corpo descansado, nutrido pela noite anterior, frios pela falta da atividade. Assim, experimentei pouca coisa, fugindo do leite... Foi providencial minha vontade de levar uma foto de tão distinta senhora, momento quando descobri que havia esquecido de colocar a bateria da máquina fotográfica para carregar. Enquanto terminava de me arrumar, a coloquei no carregador, afinal, pouco é melhor do que nada, e eu poderia poupar as fotos pelo meio do caminho, pois interessava-me as do Santuário de nossa menina Beata Santa Albertina, e as da Pedra do Frade.

Quinze ou vinte minutos de carga, enganaram a bateria que durou o dia inteiro, claro que sob parcimoniosa administração.
Por mais planejamento que tenha sido feito, as coisas sempre podem dar errado, parcialmente ou completamente, a depender das circunstâncias que serão encontradas ou vividas pela frente. Esse dia não foi o mais difícil de todos os dias, mas nada ficou a dever aos que me deram muito trabalho. Não foi um dia de muitas fotos...

Logo aos 3 km, ainda frio, comecei uma das subidas que me consumiriam muita energia e disposição; em 4 km, teria que galgar 245 metros. A subida, com média de 7% de inclinação (houve trechos com 9%), não é assim tão violenta, desde que tenhamos concentração e paciência. O problema é que essa estrada estava sendo preparada para o asfaltamento, portanto, com longos trechos cheios de brita, onde algumas eram catapultadas para todos os lados, como se eu estivesse com uma baladeira atirando pedras sob os pneus; elas acertavam o quadro, meus pés, até minhas canelas...

A bicicleta já pesada na traseira, por vezes não tinha estabilidade e nem tração, a deixar-me brigar com os pedais e com o guidão que teima em girar para o lado que não queremos, mas isso tudo é fruto das resultantes das várias forças em ação. Era tempo de descansar um pouco, e diante da bela paisagem, arrisquei uma foto só...

Quando pensei que havia me livrado das britas, iniciei um bom trecho esburacado pelo rolo compressor dentado; é como subir escadas com os degraus baixos... Muitos carros ali trafegam, em busca do Santuário, e nenhum deles me dificultou a vida, talvez por reconhecerem minhas dificuldades, talvez apenas por educação, porque numa subida como esta, acabamos utilizando uma faixa muito mais larga do que normalmente necessitamos. Todos eles, ou passavam bem ao largo de mim, ou simplesmente acompanhavam-me com paciência até um bom local para uma ultrapassagem segura. A rampa de subida era larga, mas as bordas eram sempre frouxas, o que me obrigava a procurar os trilhos mais utilizados.

Subir ladeira sobre a brita, e aqui não confundam pedalar sobre um colchão de brita, é como pedalar longe do chão, porque elas rolam, escapolem nos tentando dar rasteiras o tempo inteiro. Experimentem! É uma sensação esquisita que nos eleva a adrenalina, nos enche de raiva e tornamo-nos explosivos.

Chegar na Igreja onde Santa Albertina está sepultada, e depois ao Santuário onde ela foi martirizada, é encontrar a paz, pois que pela minha altimetria analisada, dali em diante seria uma bela descida, e depois um quase plano até chegarmos em Laguna, passando por Imaruí.

A descida foi gostosa em terreno arenoso batido e compacto, embora viesse tendo cuidado com as valas que a chuva sai criando, normalmente nas curvas. O que eu não sabia é que naquele dia a minha paciência estaria sendo testada. Posso afirmar que passei no teste, pois que foram inúmeras as provocações sofridas por uma estrada que não estava de bom humor para ciclistas, pior ainda para cicloturistas que andam carregados. Pelo menos, não houve cães me hostilizando.

Assim que terminei a descida, mais um pouco encontrei uma estrada fofa. Não, não era de areia, mas sim um trabalho de algum político querendo mostrar serviço às portas das eleições. Aquilo era sinal de uma Patrol ter ali passado com sua lâmina niveladora, ótimo para quem está sobre quatro rodas, horrível para quem está sobre duas finas rodas. A bicicleta ficava a dançar na maionese o tempo inteiro, impedindo-me de apreciar a paisagem. Lá bem na frente, a encontro trabalhando. Dava uma ré quando me acheguei para ultrapassá-la. O Operador, notando minha dificuldade para driblar os grandes torrões, parou e me fez sinal para passar tranqüilo. Agradeci e fui embora, sem deixar de escorregar na maionese, chegando num pequeno povoado onde havia alguns motoqueiros na porta de um Bar. Cinqüenta metros adiante, um topete de seus vinte metros, também cheio de maionese.

Até pensei em descer para subir empurrando, afinal já estava bem cansado e com fome, mas os ouvi apostando, onde uns achavam que eu não subiria montado (a maioria), e outros que eu subiria montado (a minoria). Dei-lhes uma rápida olhada e resolvi mentalmente também entrar na aposta; eu subiria aquela porcaria..!

Diminuindo a velocidade, fui trocando as marchas para a mais leve, inspirei fundo algumas vezes, fitei o topete e com muita calma o enfrentei; estabeleci aquela bela árvore em seu topo, para ser a minha sombra onde sorveria minha água com gás, como se fosse um brinde.

- Inhéco..., inhéco..., inhéco..., inhéco... - estalavam os pedais e a corrente a cada vez que os ia socando com determinação...

A pulsação entrou no ritmo dos tambores, gotas de suor se multiplicaram, e o calor desandou...

Mais um pouquinho o topete foi suavizando; minha árvore estava logo ali...

Ao tempo em que começava a parar já naquele topo vencido, escutei a gritaria dos que acreditaram em mim, a festejar. Voltei-me para trás e ergui minha caramanhola como em forma de brinde, e bebi um longo gole, cheio de alegria. Dei outra olhada para eles e agora me faziam sinais de positivo. Saudei-os e fui embora, não sem antes fotografar a bela igreja deles. Mais alguns quilômetros a estrada voltaria ao normal, por a Patrol ainda ali não ter chegado. Pedalei mais tranqüilo, agora sentindo os ventos que me vinham do mar; era quase 1 da tarde...

A fome quando se soma com o cansaço, costuma turvar um pouco a nossa lógica, e foi exatamente o que aconteceu. Cometi o mais infantil dos erros que podemos cometer: perguntei pelo destino final, não pelo destino intermediário, justo no cruzamento onde eu deveria pegar para Imaruí, onde atravessaria a lagoa de mesmo nome, e na seqüência conheceria a Pedra do Frade, depois chegando em Laguna.

Perguntei para que lado ficava Laguna, e o senhor informou que era para a direita, e por ela enveredei, até quando avistei a lagoa à minha esquerda, e quanto mais eu pedalava, mais ela ia ficando à esquerda, e de repente Imaruí também se fez ver. Parei, raciocinei, alguma coisa estava errada... A lagoa teria que estar à minha direita. Vinha um carro e lhe fiz sinal. Descobri que estava indo direto para Laguna, e que para corrigir meu erro, teria que voltar uns 26 km, chegando lá no tal Posto do Bilica, e de lá começar tudo novamente. Cheguei a voltar cerca de 1 km, mas aquilo doía no ânimo, e lentamente fui deixando a bicicleta me levar, até que ela também resolveu parar...

Às favas, o caminho certo... Errar também faz parte de qualquer caminho, e devemos aprender a modificar nosso passo conforme a música vai se alterando. Estava mais próximo de Laguna, do que propriamente de Imaruí, que por sua vez ainda estaria longe de Laguna. Fiz meia volta e mandei ver; passava pouca coisa das 2 e o sol já começava a ceder lugar ao nublado...

Enfim cheguei na BR-101 e segui para Laguna. Parei antes da ponte das Cabeçudas, sem um tiquinho de acostamento, um carro atrás do outro, movimento intenso... Respirei fundo, criei coragem e enfrentei a fera, cerca de 1.600 metros de verdadeiro inferno... Pelo retrovisor enxerguei uma brecha e nela me meti; lá atrás vinha uma Scania, que foi cada vez mais se aproximando de mim, como um dragão soltando bafos, mas comportou-se de maneira brilhante: diminuiu a marcha, deu dois toques na buzina e me tranqüilizou, porque eu ocupava o meio da pista como se fosse um carro, pedalando contra o vento a mais de 35 km por hora, mas as pernas já não agüentavam mais, e fui caindo, caindo, mantendo a pulso os meus 25 km por hora; já não sentia as pernas...

Assim que pude, parei e dei um tempo, e tudo foi se acalmando novamente. Retomei a marcha, entrei para Laguna, arrumei um bom lugar para almoçar; eram 3 e meia da tarde e o frio se chegava junto com o vento. Estava decidido a conhecer a Pedra do Frade de qualquer jeito, e de lá parti para outra casca grossa, dessa vez areia de praia frouxa sobre a estrada; daquele jeito, chegaria na pedra só à noite. À minha direita o mar rugia quebrando em ondas. Desmontei e resolvi cruzar aquelas pequenas dunas. Estava decidido a pedalar pela beira da praia, pela areia molhada; rezei baixinho para encontrar a maré baixa ou baixando. Vocês não imaginam quanto uma bicicleta a afundar na areia, chega a pesar. Atravessar aquelas dunas, mesmo minúsculas, não foi fácil... Descansei um pouco, repus a pulsação de novo no lugar e segui pela areia durinha. Agora o vento me empurrava, mas havia um grande problema: a pedra ficava em cima do morro...

Ensinaram-me a subida, que me levou até uma paisagem lunar, cheia de erosões. Um casal de pescadores que já estava indo embora, com pena de mim, achegou-se e me ajudou. Eu empurrava pelo guidão, o homem puxava pela roda dianteira, e a mulher empurrava pelo bagageiro. Chegamos na estradinha barrenta que nos leva à pedra, nos demos um grande sorriso de contentamento e ainda me ofereceram a última latinha de cerveja. Recusei agradecendo e fui embora, mas agora havia outro problema: a pedra estava lá embaixo...

Lembrei do Henrique Wendhausen e entendi o porquê dele me aconselhar a deixar a bicicleta na casa de algum pescador, e ir sozinho até a pedra...

Desmontei e comecei a empurrá-la pelo caminho de burro que ali existia. Caminho de burro é toda aquela estreita faixa que os animais, inclusive nós, de tanto pisotearmos, nada mais nasce. Resumindo, depois de alguns degraus por entre as pedras, consegui encostar minha amiga no grande menir natural, hoje equilibrado sem escorregar na rampa onde está, apenas por três pontos. Aumentando ainda mais o capricho da Natureza, seu topo partiu-se e girou, como se um boné torto, como torto ficou meu capacete, de tanta força que eu, já alquebrado, fiz...

Cheguei no Hotel Renascença quando já começava a escurecer. Lavei minha roupa, tomei um banho e fui jantar, lá naquele restaurante que o Henrique Wendhausen me indicou, o Arrastão. Pedi um filé de Linguado grelhado com Camarões, degustando um saboroso chope da região. Na mesa ao lado, sentou-se um casal de cegos. Não pude deixar de reparar, mas foram extremamente discretos, conversando baixo, fazendo barulho zero com os talheres, o que me fez lembrar de muita gente, com dois olhos bem abertos, que come ciscando no prato, como se estivesse a batucar na louça. Os Garçons também foram impecáveis, pois o cardápio necessita ser explicitado, a comida servida em cada prato na porção desejada pelo comensal, sempre anunciada, se arroz, salada, molho, e o quanto de colheres sendo servido.

Do meu lado tratei de não incomodá-los, fazendo o mínimo de ruído possível.

Já de volta no hotel, de minha janela dava para ver o mar, iluminado pelos postes da beira-mar, quebrando ondas espumantes de champanhe... Lá fora próximo, um poste
onde mariposas circundavam a pequena lâmpada. Vez ou outra, o vento uivava por algum lugar. Fechei as cortinas e fui dormir...

O que era para terem sido 63,3 km planejados, transformou-se em 87,7 km, em 9 horas e 17 minutos, 5.022 calorias queimadas, 1.480 metros acumulados em subidas...

Para mim, ele havia sido bastante completo...

* * *

2 comentários:

  1. uau, este dia foi emocionante, hem?

    emoção de enfrentar as dificuldades e emoção de vence-las hehe

    nesta ponte em Laguna passei os momentos mais aflitos de toda minha vida cicloturística. quando terminei a travessia a adrenalina era tanta que fiquei pulando e gritando sozinha feito doida.

    envolvente relato!

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  2. Parabéns Boblitz, toda vez que leio as suas crônicas consigo visualizar cada pedalada que vc dá, curto e sofro junto.

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