Pelas terras de Santa Catarina (dia 12)

A surpresa é gostosa porque não a esperamos...

A surpresa altera, sobressalta,

inesperadamente, modifica nossos humores...


Pelas terras de Santa Catarina (dia 12 – sábado)
(Paulo R. Boblitz - 15/set/2012)

(Vale do Rio Canoas (Hospedagem da Nani) - Santa Rosa de Lima)

O dia amanhecera limpo e ensolarado, e mais uma vez eu largaria tarde, cerca de 9 e 10 da manhã, pois eu tentei arrumar a internet de Dona Nani, que parecia ser um problema na assinatura, problema que ela descobriria quando fosse à cidade, lá no local onde fez o negócio.

Meu café da manhã foi gostoso e até ganhei uma garrafinha de licor de kiwi. Fiz questão de bater uma foto junto com Dona Nani e Seu Walter, e logo pus o pé na estrada, que agora descia levemente até encontrar a bifurcação onde deveria pegar à esquerda para subir até a garganta da Serra do Corvo Branco.

O rio Canoas corria à minha direita, com seus tantos sons martelando as tantas pedras, som que já vinha ouvindo desde meu segundo dia quando encontrei o rio Cubatão.

Mais um pouco, dobrava à esquerda que me separava apenas em 3 km da tão sonhada garganta, começando a subir, algo em cerca de 150 metros em apenas 2,5 km, uma subida não tão difícil, mas nada fácil com tempo abafado, pois que não havia nenhum vento, e se ele existisse, deveria estar passando lá bem acima de minha cabeça.

Aquele dia me lembrava o que a Hila havia comentado quando deixasse Aiurê para trás, seguindo por dentro até Santa Rosa de Lima: "deve ser casca grossa..."

Lembrei ainda de Seu Valnério que me atendera com educação e paciência, quando no começo do ano lhe ligara, em pleno Horário de Verão para ele, ou seja, para mim eram cerca de 10 e meia da noite, e para ele, eram cerca de 11 e meia da noite. Foi ele quem me ensinou que não precisava ir até Braço do Norte, entrando antes de Aiurê, subindo o Morro da Boa Vista, cruzando o rio dos Bugres, e finalmente chegando em sua Pousada Doce Encanto. Enquanto ele falava, eu ia seguindo as pistas em meu monitor, onde o programa Google Earth estava aberto.

Ao longe vi uma cachoeira que despencava de vários bons metros de altura, e que não estava nem aí para a minha existência. Em meu redor, paredões rudes que um dia emergiram lá de baixo sob pressão intensa. Eu procurava pela garganta, mas o caminho dava voltas escondendo-a. Só a descobriria quando estivesse nela...

Até ali a subida tinha sido amena, mas prometia logo mais adiante, inclinar-se a me fazer penar. Devagar, vemos tudo aquilo que com alguma pressa não se vê, e deparei-me com um chaveiro perdido; naquele dia, alguém precisou fazer barulho para entrar em casa. Não alterei a paisagem, deixando como estava, porque o tempo que faz perder, também faz achar; o dono as reconheceria...

Faltando pouco para chegar no topo, parei numa sombra para recompor respiração e pulsação, enxuguei o suor, bebi alguns goles d'água, e por mim passaram alguns motociclistas trilheiros, que festejaram buzinando. Eles haviam subido a Serra do Corvo Branco pelo outro lado, uma subida íngreme e difícil, quase 1.000 metros de ascensão. Do lado de cá, os carros que me cruzavam a subir, buzinavam e eu levantava a mão esquerda agradecendo o incentivo, e quando me dei conta, havia chegado na garganta, que fica escondida atrás da curva.

Orgulhoso e feliz, olhei de onde eu tinha vindo, lá do vale lá embaixo. A garganta é um extraordinário corte feito manualmente na rocha arenítica, o maior do Brasil, com 90 metros de altura. Agora o vento corria encanado e me refrescava com seu ar frio. Estava a 1.142 metros acima do nível do mar, mas a placa informava 1.150, e não seria eu a brigar por causa de 8 metros, tamanha minha felicidade de ali ter chegado e poder ver tudo o que a vista podia alcançar, até que a própria vista esbarrasse no horizonte da Serra Geral, a unir o céu com a Terra...

Bati uma foto de mim mesmo, bati uma foto de minha amiga, e comecei a percorrer aqueles cerca de 100 metros por dentro da garganta. À minha esquerda, moitas alegres de capim ao sabor do vento, à minha direita, a pedra nua assistindo tudo. Os Paredões são simplesmente grandiosos e representam a garra de um povo que um dia resolveu varar aquele obstáculo, a suor e sangue, pois que foi à base de picaretas, todo aquele volume arrancado...

Depois da garganta estava um caminhão parado, esperando por seu irmão que subia resfolegando pela grande ladeira. Pedi ao Motorista que me batesse uma foto, e ele com alegria, caprichou. À minha frente, um colossal derrame basáltico que um dia emergiu das entranhas da Terra, tal qual um gigantesco órgão de uma catedral gótica, a soar melodias que somente Beethoven conseguiu representar com sua revolta instrumental, reproduzindo momentos de fúria e esplendor...

Eu estava onde os ventos uivavam, onde os elementos frio, vento, chuva e calor, lascavam toneladas em rochas que se desprendiam abruptamente. Abaixo de mim, a estrada em degraus, o mundo inteiro à minha frente, e como um pássaro a sentir o vento passando por mim, voei tudo aquilo em perfeito planeio, ouvindo apenas o coração...

A serpente agora, era minha amiga...

A descida não foi fácil, por ter que parar a cada instante para fotografar o lindo, o inusitado, o extraordinário que em fúria tornou-se belo. Ao longe escutava o caminhão bufando em altos brados, e resolvi aguardá-lo. Era o irmão daquele parado lá em cima, que subia reclamando muito. Quando me viu, estendeu seu polegar para cima, iniciou a curva mas freou, deixou o caminhão descer um pouco, ajeitou as rodas e novamente partiu para completar a curva que formava os 180 graus.

Continuei a descer e mais um pouco o avistei galgando os degraus que se pareciam muito com os da Serra do Rio do Rastro. O asfalto que só cobria a parte mais crítica, logo acabou transformando-se numa descida técnica, às vezes com pedras desmoronadas pelo caminho, que por 14 km, exigiu de minhas mãos uma boa força. A serpente ziguezagueava serra abaixo, e nesse dia estava simpática a me deixar enxergá-la.

Reparo numa pedra que como totem, guarda toda a paisagem lá embaixo, até que o Tempo lhe corroa a base e a faça jogar-se lá de cima, precipício baixo. É linda e parece uma sentinela...

À minha esquerda, a Serra Geral por onde estive passeando estes dias todos de belas subidas, cicatriz gigantesca do tempo de Gondwana, quando o super continente dividiu-se em várias partes, separando-nos da África e da Antártica. Talvez eu voltasse novamente aos seus planaltos, fosse quando chegasse à Santa Rosa de Lima, ou quando chegasse em Anitápolis, ou até mesmo em Rancho Queimado. O que eu sabia é que aquela vista monumental, não se repetiria mais...

Desço devagar enquanto vou pensando que já estou há 12 dias fora de casa, cansado e com saudades de minha cara-metade, minha esposa que agora deve estar preocupada, pois há dias não sei o que é sinal de celular ou internet.

Aiurê está escondida e não se apresentará a não ser na última hora, dentro de um buraco. Facilito um pouco achando que a descida suavizou, e acabo passando por um aperto sem necessidade, um trecho de areia frouxa que me puxa perigosamente para o barranco onde existe uma cerca de arame farpado. Não há o que fazer, senão pender o corpo para a direita, rezando para que a manobra dê certo, e dá, caso contrário estaria por inteiro espinhado e rasgado em meu lado esquerdo.

A gente aprende e esquece, talvez algum fruto da empolgação que nos liberta momentaneamente da razão, mas há tempos que minhas descidas são bem curtidas, para isso mesmo, não perder nada daquilo que foi conquistado na subida penosa. Agradeci ao meu Anjo da Guarda que estava atento, diminuí o ímpeto da descida e continuei. Aiurê estava logo mais adiante, toda fechada e sem lugar para um almoço. Encontrei um bar aberto e comprei água, conversando com os dois que bebericavam uma cerveja, e com o dono do bar que ouvia um pequeno rádio. Queriam saber de onde eu vinha, para onde eu ia, queriam que eu seguisse o caminho deles mais fácil...

Saí dali e fui embora, pois eu não havia nem chegado à metade do meu dia. À frente, a tal casca grossa que me faria mais empurrar do que pedalar, de tão beiçuda que era. Um rio me acompanharia pelo lado direito com sua cantilena de gastar pedras, e logo, com certa alegria, morrendo de fome, parei na Pousada da Tia Nida, onde ninguém me esperava. Almocei gostoso, conversei um pouco e novamente partia, pois o dia estava longe de terminar, afinal, o Morro da Boa Vista demonstraria ser radical e infernal para quem o está subindo como eu o subia. Foram cerca de 490 metros onde o vento não deu seu ar da graça, quente e abafado, ladeira íngreme e desafiante, com seu nome defendido realmente pelas boas vistas que eu tinha da Serra Geral, cada vez mais ao longe.

Quase no topo, deparei com um morador que arrumava sua bela vaca numa espécie de tronco. Ele me viu, parou o que fazia, e eu também apeei da bicicleta, enxugando o suor que descambava em abundância testa abaixo. Virando-me para ele, comentei:

- Foi o capeta quem construiu essa ladeira, não foi?

Ele sorriu, até concordou comigo e apontou-me o que seria uma longa descida morro abaixo. Descansei um pouco, fotografei suas ovelhas e comecei minha descida.

Eu deveria ter dobrado à esquerda, mas aquelas duas torres me chamavam para conhecê-la. Era a igreja de Rio dos Bugres que estava fechada. Parei num bar onde uma mocinha linda estava a atender, comprei água e chupei dois sorvetes de chocolate. Seu avô conhecia Seu Valnério e me disse que estava próximo, mas ainda faltavam alguns topetes a serem vencidos, bons topetes eu diria, e parti deixando-os para trás. O rio dos Bugres estava próximo...
Cheguei na Pousada Doce Encanto às 6 e 15 da noite, já escurecendo. À porta, uma bicicleta feminina nada comum, específica para cicloviagens; pensei com meus botões: tem Cicloturista hospedada aí...

Enquanto encostava minha bicicleta, Dona Leda apareceu e me reconhecendo como o sujeito que havia feito a reserva, disse-me que uma amiga minha havia chegado pouco tempo atrás.

Parei e tentei raciocinar... Amiga..? Olhei novamente a bicicleta e dei uma gargalhada gostosa, enquanto perguntava: Hila?
- Isso! Chegou há pouco e disse que lhe conhece...

Pedi ajuda à Dona Leda para descarregar meus alforjes, pois a minha magrinha não estava bem posicionada, e fui tirando o mala-bike, depois os alforjes, depois a bolsa de guidão, e por último as minhas caramanholas. Enquanto desarrumava minha amiga bici, ia pensando naquele encontro que eu achava que ocorreria logo no meu segundo dia, quando ultrapassasse os portões da Base. Raciocinei, era sábado, e a Hila havia vindo de Florianópolis para pedalar comigo no dia seguinte, domingo!

Continuando o raciocínio, pensei: Loucura! Ela veio de Florianópolis direto para cá, cerca de 150 km de somente subidas!

Dona Leda levou-me até o meu quarto onde tomei um banho bem gostoso. Fazia frio e desci agasalhado, morrendo de fome... Estaria acontecendo um aniversário de um casal amigo dos Hospedeiros, e nesse dia o jantar não seria algo assim completo, mas atendendo a meu pedido, Dona Leda preparou ovos mal passados que comi com um bom arroz e salada, acompanhado de frutas, geléias, nata, pães, café e leite. Seu Valnério estava na cidade, e pedi que ele me fizesse um favor, trazer-me um bom vinho seco. Trouxe-me um Santa Helena, saboroso. Hila tomou somente uma taça, preferindo o suco de abacaxi que Dona Leda havia servido. Eu tomei o resto, claro, porque merecia e era dia de comemorar.

Dona Leda nos acompanhou durante o jantar, conversando bastante e participando, mas de repente levantou-se e foi cuidar de outras coisas. Em pouco tempo descobri a trama da qual também participaríamos. Os apagares das luzes aquietaram-se quando apenas eu e Hila ficamos iluminados, e todos se esconderam. Mais um pouco entrava o casal aniversariante, que só nos viu a nós dois, e quando se aprontavam para perguntar alguma coisa, os Parabéns para Você ecoaram pelo grande salão, que nós ajudamos também com as vozes e as palmas. Acenderam-se as luzes e o aniversário seguiu em frente. Dona Leda estava dividida entre nós e os aniversariantes. Passado algum tempo, Seu Valnério se acercou e conversamos. Ele se lembrou daquele dia em que o acordei...
O sono, ajudado pelo vinho e pelo cansaço, batia às portas e precisava ser atendido. Hila subiu e eu continuei a tentar a internet, que a filha de Dona Leda emprestou, mas sinal que era bom, nada..! Terminei o vinho e subi para meu quarto; dia seguinte prometia ser puxado...

Havia pedalado 53,0 km, gastando 8 horas e 33 minutos, queimando 5.381 calorias, acumulando 1.432 metros em subidas.

* * *

Um comentário:

  1. magnífico relato, sempre inspirado e inspirador.
    mais uma etapa prá ficar na história, juntamente com as outras.
    tenho certeza que tua passagem por estes lugares ficará marcada na memória de pessoas e paisagens.
    abraços
    hila

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