Pelas terras, pelo Iguaçu, do Paraná... (dia 10)


Somos felizes e não sabemos...

Temos riqueza e não nos damos conta...

Até o dia em que sentimos falta...

Até o dia em que percebemos...


Cheirinho de casa...
(Paulo R. Boblitz - 16/fev/2015)

A história de ontem foi comprida, porque comprido havia sido o nosso dia. Quase no fim, já bem próximo de Buare, onde voltaríamos ao asfalto novamente, vimo-nos de repente, diante de uma barreira de impedimento: pedras, cones, fitas, arames, nos impediam de passar...

Para a esquerda, um caminho que não havia catalogado, afinal não estaria seguindo por ele; pensei: "vai ver, alguma ponte caiu..."

Lembrei de uma casa há poucos 50 metros, por onde havíamos passado; entre seguir às cegas e sair em lugar desconhecido, preferimos voltar e perguntar, até porque aquele dia já estava sendo muito longo para nós. Apareceu uma senhora, com seu cão parecido com um galgo, de tão grande e magro que era. O cão veio logo me cheirar, detendo-se maravilhado na minha luva direita, a descansar agarrando o guidão. Era manso e parecia estar a fazer sua própria festa, não sei se pelo cheiro que fungava como aspirador, ou se pela nossa presença num lugar onde as novidades são difíceis de acontecer.

- Deixa o moço, Fedido... - ainda hoje me pergunto se a vírgula que acabei de colocar, foi o lugar em que a senhora recomendou ao cão...

Agora, por favor, deixem-me explicar: luvas são luvas, ok? Preocupamo-nos com as roupas de baixo, e com as de cima, que têm seus alguns metros quadrados, portanto trabalhosos de lavar. Assim, as luvas, por terem camurças envolvidas, ficam a parecer com nossos tênis; também são peças de que nos livramos em primeiro lugar, acabando por ficarem esquecidas, quando já estamos no banho.

O dia hoje prometia ser tranquilo, a julgar pelo azul do céu que nos convidava a pedalar; acompanhou-nos ensolarado, pelo dia inteiro...

Estávamos às 8 e vinte, revigorados, partindo de Chopinzinho, onde havia sido tão difícil chegar. Que ninguém se engane, apesar de serem apenas 56 quilômetros, teríamos muitas subidas naquele dia, e por uma iniciamos nossa jornada. Também não foi um dia de muitas fotos, porque elas dependem do trajeto, que nos convida a parar, sempre que existe algo bonito e interessante, até deslumbrante... Seria, como costumo falar, um daqueles dias mornos, nem quente, nem frio, apenas para cumprirmos uma etapa, já que não temos como saltá-la.

Paramos no entroncamento para a Usina Salto Santiago, que chegou a ser tratada para constar do nosso mapa, porém desprezada, porque era vedada aos visitantes, que só podiam chegar até seus mirantes, pois que a rodovia lhe passa por baixo, assim havia sido informado, quando liguei para a pousada em Saudade do Iguaçu.

São João é muito simpática e arrumadinha, onde chegamos faltando 10 minutos para as onze. Do alto, nossas vistas mergulhavam, tornando a subir, para dali sairmos.

- Hurrááá - gritou Sofia eufórica.

- Até parece que é você quem vai pedalar...

Vez ou outra, Sofia mexia comigo, quebrando a monotonia, mas ela sabia, e eu também, que tudo não passava de alegrias, quebrando nossas rotinas; quando chegasse a hora, juntos enfrentaríamos, até porque ela sempre me ajuda nas horas difíceis, não complicando...

O restaurante ficava bem na parte funda, e o almoço estava especial, muitas saladas, arroz e macarrão integrais, frango ao molho adocicado, feijão preto cheio de proteínas; era um crime, desperdiçá-lo, o almoço, já naquela subida...

Enquanto subíamos aquilo tudo, lembrei que estávamos em plena segunda-feira de carnaval, por isso a cidade tão quieta, o trânsito pelas estradas tão pacato. Assim chegamos em Vila Paraíso, onde outra ladeira nos aguardava; até ali, já tinham ido dois terços do dia, pedalados.

Ver a placa dos três quilômetros para São Jorge, foi decerto um alívio, porque havia sido um dia daqueles muito quentes.

Chegamos no entroncamento e paramos numa lanchonete bem ao lado de seu Portal. Enquanto chupava meus dois picolés de limão, Sofia cantarolava bem baixinho...

- Tá na hora, tá na horááá...

- Sofia, não comece...

Fosse o que fosse, naquele dia, Sofia estava muito agitada. Montei, passei-lhe os dedos em sua cabeça, e dali partimos, afinal eu também não via a hora de chegar, mas antes, nossa última ladeira, quase dois quilômetros fazendo força, para lá de cima, mirarmos nosso destino, pouco antes do Portal de saída; dia seguinte, nosso café da manhã, o perderíamos ainda nos limites da cidade, tamanha lombada a nos aguardar ainda frios...

Chegamos cedo, passando 4 minutos das três da tarde, o sol martelando ainda alto.

No aconchego do meu quarto, desfazendo meus alforjes, deu saudade lá de casa, do cheirinho que todos temos em nosso lar. Olhei o mapa, olhei o dia, e já estávamos há 10 dias longe do verdadeiro aconchego, lá onde você tem seus lugares, seus amores, lá quando você abre uma gaveta, ou seu guarda-roupas, sobe um cheirinho gostoso e macio, da rainha do seu reino.

Só de cuecas, e até ela estava avermelhada do barro de Pinhão até a Usina do Segredo, olhei tudo aquilo pelo chão, olhei o saco da roupa suja meio inchado. Tudo meu, cheirava a comida...

Temos o cheiro daquilo que comemos, mas só o notamos quando suamos intensamente; suor, não é só água e sal; hoje, não entraria vestido debaixo do chuveiro...

Falando em suor, certa vez, participando de uma corrida de aventuras, havia me pesado antes e depois; perdi num único dia, 10 quilos, quase que tudo água, recuperando tudo nos próximos dias; somos uma grande esponja, que pode ser espremida...

Tomei um banho normal, nu como todos tomam, me arrumei e saí para conseguir um balde e sabão em pó; enquanto durasse o meu jantar, aquilo tudo ficaria de molho...

Deixei Sofia descansando e fui à pé, jantar numa padaria, o único lugar aberto com comidas, na verdade, pães, que tratamos de rechear; a fome é o ser mais nobre nas nossas vidas, o ser mais evoluído que podemos pensar, e habita dentro de cada um de nós. Fome que é fome, não tem preconceito, não tem modismo, não tem frescura, não tem esse negócio de levar gosto em consideração. Fome traça tudo, do mesmo jeito que a sede já me fez beber água barrenta...

Ali descobri o significado de Piá. Enquanto jantava, lançando carvões em minha fornalha, a mãe e o filho acercaram-se do balcão; o filho, uma criança de seus 4 ou 5 anos, agachou-se diante do balcão de vidro, apontando para alguma coisa, ao mesmo tempo em que informava à mãe, que aquilo ele queria. A mãe abaixou-se também e informou:

- Mas filho, isso não é coisa de Piá..!

O doce, ou brinquedo que a criança queria, estava coberto com embalagem cor de rosa...

Piás são todas as crianças, ou todos os jovens crescidos, do sexo masculino...

Arrotando e peidando, porque a Padaria ficava meio distante do hotel, voltei sorrindo satisfeito, afinal, tudo naquele dia estava vencido e resolvido, exceto a roupa que precisava ir para o varal...

Deu trabalho tirar todo aquele sabão, pois que a água de São Jorge é muito leve. Enquanto estendia tudo e a tudo prendia com pregadores, reparava no céu que havia mudado, nuvens em formação...

Fiquei de prontidão, porque o dia quente, aquelas nuvens, significavam sempre chuva; choveu somente à noite, noite em que uma mariposa veio nos visitar...

O dia tinha sido meio puxado, 56,3 quilômetros, 6 horas e 39 minutos de pedal, 980 metros em subidas acumuladas; o coração foi bem, chegando até o pico em 145 bpm. Até ali, tínhamos pedalado 581 quilômetros, e subido 8.212 metros, queimado 35.524 calorias, estatísticas apenas, porque cada dia é um dia, humores diferentes, tempos diferentes, valentias diferentes, até as vistas, diferentes nos empolgando, ou indiferentes pouco nos importando...

Nenhum dia é totalmente belo, tampouco feio; nenhum dia é fácil, tampouco tão difícil...

Sofia dormia, impecável até ali, coisa alguma desregulada...

Agora, sim, tudo estava resolvido, e percebi que estava feliz...

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