Pelas terras, pelo Iguaçu, do Paraná... (dia 6)

O leite azeda,

e dele saem os bons queijos...

Os cereais fermentam,

e deles saem as boas cervejas...

Nossas vidas azedam,

daí nascem as boas lições...


O que era doce, bem..., quase que azedava...
(Paulo R. Boblitz - 12/fev/2015)

Em todo o planejamento do roteiro, era o dia mais esperado; piso de chão, paisagens belíssimas, um lago encantador, uma balsa a nos esfriar o sangue na travessia...

Salvou-se quase tudo, perdendo-se apenas a dormida..., mas isso é uma outra história...

Logo bem cedo, a primeira coisa que fiz foi verificar o tempo; ia ser um dia quente... Lembram-se dos nevoeiros, no comecinho do dia? O sol os esquenta e manda embora; puro blefe das gotinhas...

Dito e feito, mal terminara meu café da manhã, bem fraco por sinal, o sol já dominava a tudo. Parei no Banco, tirei dinheiro e encarei a primeira fera do dia, uma subida fogosa toda calçamentada com pedras toscas, ainda frio e preguiçoso...

Confesso que o início foi gostoso, o caminho foi saboroso, mas as subidas, essas, maltrataram...

Subidas..., mais uma vez retorno ao tema... Precisavam ser ferozes? A gente sobe tudo com a devida paciência, e se não dá para subir, a gente empurra... Não há vergonha em se empurrar uma bicicleta, pelo contrário, é até inteligente...

Não estamos competindo;

Não estamos com raiva da vida;

Não estamos com raiva do equipamento;

Nem tampouco estamos com o cabrunco...

Abaixo dos 3,5 km por hora, desço e empurro, porque o meu progresso é maior. Assim, não desgasto as peças móveis de Sofia, desnecessariamente, restabeleço a circulação nas pernas, ando mais rápido, desacelero o coração. Só existem vantagens...

E querem saber? Ando sempre que dá vontade, até mesmo na horizontal; a bunda agradece, os pés lançam fora as formigas, Sofia canta, solta e leve...

Minhas curvas, ah minhas curvas..., todas lá misteriosas, escondendo o futuro... O caminho quando feito pelo mato, tem essa conversa de esconde-esconde conosco. Um caminho pelo asfalto, é frio, insosso, arreganhado, porque foi feito para a pressa.

Um caminho pelo mato, verde dum lado, verde do outro, funciona como um rio, por onde navegamos pedalando...

Quando liguei para a Pousada do Madruga, perguntei se lá existia um bom vinho. Seu Madruga, apelido do Altair, informou que só cerveja; hoje sei que por causa apenas do faturamento...

Pois bem, pedalando, não abro mão do meu saboroso vinho, ocasião em que permito o álcool. O vinho tem cor especial, cheiro particular, faz bem ao coração, alimenta a alma, enobrece o pensamento, amansa o espírito ainda em fogo da batalha que foi o dia... O vinho também ajuda no escrever, no desembaralhar dos liames que a mente, zureta, se encabula em se lembrar, pois que ao fim de qualquer esforço, tudo se mistura, tudo se esquece...

Se ajuda a dormir? Só um pouco, porque o cansaço é o grande mestre da noite.

O vinho lhe devolve ao chão, lhe abre a razão, até alimenta o corpo que, ávido e desnutrido pela força, requer tudo que lhe caia, para a fornalha das energias...

Se não tinha vinho, então eu e Sofia providenciaríamos... Ficaram engraçados os alforjes, um dos lados mais alto do que o outro, e carregamos cerca de um quilo extra à nossa tralha.

E lembrei sorrindo, que conheço gente boba que paga caro por gramas retirados de suas bicis. Creio que não devem ter uma consciência plena daquilo que é pedalar; creio que devem ser indecisos entre o ser ou o estar, porque Sofia, e a carga que ela carrega, por pesada que seja, minhas pernas sempre darão conta; no dia que não derem, eu e Sofia nos aposentaremos...

Os donos de lojas, adoram esses ciclistas Tops...

Vinho garantido, agora precisava garantir chegar lá, e foi difícil, podem acreditar, porque as subidas não ajudavam com suas pedras soltas, não ajudavam com seus ângulos de incremento, afinal, caminhos por entre os matos, servem apenas para o ligar, porque as facilidades, só as encontramos nas rodovias. Faltando 10 minutos para as onze, cheguei naquilo que se parecia com um lugar onde se poderia comer alguma coisa; a fome há muito que apertava, por conta do café fraco, falso alicerce daquele dia...

Não tinha comida, não tinha nem água para molhar a cabeça, que já molhara várias vezes a minha fralda, empapada a servir de bandana para absorver os suores do couro cabeludo, que quando escorrem para os olhos, os fazem arder com muita vontade... Estávamos quase no topo da principal subida; agora era descer e chegar na balsa, atravessar o lago e descansar. Segurei minha água, racionando-a, apenas molhando a língua, por assim dizer...

Nessa história toda, quase esqueci de Sofia; quase...

Sofia é brincalhona e não perde as oportunidades; a cada pedra que saía chispando disparada pelos pneus, Sofia gritava irrááá... No começo, até achei engraçado, mas depois de muitos irrááás, parei numa sombra e tive uma conversa com ela:

- Sofia, você está tirando a minha concentração...

Ela então me olhou sorrindo, fez de conta que puxava um zíper fechando a boca, piscou-me um olho, lançou-me um beijo, desarmando-me...; Sofia tem o dom de desarmar a todos...

Recomeçamos, e como ela havia prometido, não fez mais nenhum barulho, mas nem por isso deixou de procurar as pedras, que adotavam os mais inusitados sons em disparada... Eu apenas ria por dentro... Empurrei Sofia, acho que umas quatro vezes...

Sofia também tem uma conversa especial com o gado, que pára de comer, olhando-a com curiosidade... Talvez seja por conta dos Bar Ends, fazendo a boiada pensar que são parentes.

Enfim o lago se mostra calmo e formoso, seco mostrando as marcas de quando está no apogeu. Vou parando, observando seus ângulos, e por pouco, muito pouco, quase perdia a balsa, que já estava levantando a rampa, e seguir para o outro lado, quando me viram e esperaram.

Sofia logo fez amizade com o pequeno bote que empurrava, e, com tanta conversa, quase tomávamos o rumo errado...

O Comandante, barbas longas como se um pirata da paz, logo arrumou a situação, e mais um pouco encostávamos na margem oposta, onde a água deixa suas marcas à medida em que vai baixando. Não seria por já estar no outro lado, muito perto de minha parada, que não deixaria de mais subir. Se você está por entre montanhas, toda boa descida encontrará um rio lá embaixo, para torná-lo a subir tudo outra vez, para fazê-lo descer tudo novamente, porque outro rio está correndo...

Quase chegando, aquelas nuvens escuras que vinha observando, começaram a ribombar, sinal de que água cairia, mas só depois que havia chegado; a tempestade só desabaria 3 horas depois, com muito vento...

Passando 12 minutos depois das duas da tarde, aportamos na pousada. Morto de fome, perguntei se tinham almoço. Não tinham. Comi um sanduíche de queijo e presunto, para esperar até a janta, que sim, foi muito saborosa, afinal comi feito um cavalo, tirando todos os atrasos do dia. Não tinha sinal de nada, e o telefone deles, funcionava quando queria, mas consegui ligar a cobrar para casa, dar notícias que estava bem e alojado.

Falando honestamente, não recomendo essa pousada. Talvez a do finado Jaime, tenha melhor atendimento. Não tinham nem ventilador, e a toalha, fizeram questão de informar que a estavam emprestando. O jeito foi dormir com as janelas abertas.

Adormeci ouvindo a sinfonia, dos sapos, rãs e grilos, e dos pingos que pingaram a noite inteira.

Quando escrevia meu diário, Sofia me cutucou, mostrando-me a algazarra lá fora; prestamos atenção. Há muito tempo aprendi a filtrar meus sons, afinando meus ouvidos quando minhas músicas ouvia, separando os instrumentos; é uma questão de concentração, por exemplo, você ouvir somente o baixo, ou somente o violino, quase isolando todos os outros.

A fofoca corria solta lá fora. Fiz sinal de silêncio para Sofia, e ficamos a perceber os sapos; o primeiro provocando:

- Foi; foi; foi; foi; foi; foi; foi; foi; foi..., e parava...

Aí o segundo começava:

- Quem foi!?; quem foi!?; quem foi!?; quem foi!?; quem foi!?; quem foi!?; quem foi!?; quem foi!?; quem foi!?

O primeiro, em vez de responder, começava novamente a induzir tudo outra vez, e parava, para o segundo começar a perguntar de novo...

Sintonizamos os grilos, e eles não eram nada diferentes:

- Cri - cri - cri - cri - cri - cri - cri..., e paravam...

- Quiri - quiri - quiri - quiri - quiri - quiri - quiri..., continuava o outro lado...

Acordei com o farfalhar de asas bem próximas do meu rosto, descobrindo ser as de um morcego, que, quase cinco da manhã, acordava-nos para a batalha; a parede próxima de mim, pontilhada de pernilongos obesos, todos eles às minhas custas...

Agora eram os galos,,,. todos eles alucinados..., um xingando a mãe do outro...

Já estava acordado, arrumei minhas coisas, tomei um bom banho no banheiro que é coletivo, e preparei-me para o café da manhã: trouxeram-me lá de dentro, 3 fatias de pão, café preto, um pote de margarina que não toquei, uma porção de doce ou geleia de goiaba. Perguntei se podiam fritar dois ovos e fui atendido. Na hora de pagar a conta, cobraram-me quase o dobro do combinado, mas já era outro dia, uma linda Usina a ser conhecida, uma bela subida a ser vencida, e dei a Cesar o que era de Cesar...

Por que quase que meu dia azedava? Porque as pousadas são o arremate do dia, são os acabamentos da obra, os fechos que trancarão os acontecimentos, naquela caixa dos bons momentos. Nesse dia haviam sido 33,47 quilômetros, 3.011 calorias queimadas, 769 metros em subidas acumuladas, mostrando que a quantidade de ladeiras, nada tem a ver com a quantidade de quilômetros pedalados.

Não azedou, porque Sofia não deixou...

* * *

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