Associação das Bolas

Por trás de cada bola, ou tem uma criança, ou tem um adulto...

O mundo inteiro é cheio de bolas, e gostamos de todas elas...

Adoramos quando as mulheres nos dão bola, e Brasília vive mexendo com elas, em todos os escalões...

Associação das Bolas é mais uma delas, das tantas que existem para cuidar dos interesses...



Associação das Bolas
(Paulo Boblitz – mar/2008)


- Pôu..!, pôu..!, pôu..!, pôu!, pôu! – soavam as graves e compassadas marteladas no tampo da mesa do presidente.

- Silêêêncioooo..! – gritava já impaciente o presidente – Ordem!!!

- Magote de desajustados... – falou baixinho o presidente, demonstrando que faltava pouco para encerrar de vez aquela sessão.

- Pôu..!, pôu..!, .........., calem a boca! – martelou e gritou bem alto no microfone, terminando com um nome feio bem cabeludo, que ninguém ouviu.

Mais um instante, o silêncio por fim se fez ouvir, com todos quietos sem brigar, atentos à mesa diretora. O presidente então continuou...

- Isso é preconceito! A Bola Oval é americana e..., diferente um pouco de todos nós, eu também concordo..., mas temos de ouvi-la segundo a nossa democracia..! Com a palavra de novo..!, a... Bola Oval! - determinou o presidente, prendendo um sorriso que já começava a se insinuar.

A Bola Oval, delicada como era com aqueles lacinhos laterais, piscou três vezes, limpou a garganta, deu um sorriso meio amarelo, juntou as duas mãozinhas, dobrou sintomaticamente um dos joelhos, e com a voz gasguita reiniciou o discurso:

- Não suportááámos mais levar tantos chutes...; e aqueles môôônstros devem nos pegar usando luvas... Era o que eu tiiinha de dizer..., hi, hi, hi... – afastou-se sorrindo nervosa, enquanto o burburinho recomeçava.

- Pôu..!, pôu..!, pôu..! – bateu com autoridade o presidente, antes que a sessão tumultuasse novamente...

- O próximo! – gritou com a cara bem feia.

Chegou a Bola de Gude que, pequenina, não alcançava o microfone. Enquanto pulava, a platéia mangava, até que a Bola de Gude cansou e voltando-se para o presidente, abriu os braços em desalento.

O presidente, uma Bola de Futebol de Salão meio gasta pela velhice de tantos jogos, deu mais duas marteladas sobre a mesa, olhando cerrado para aquela cambada de bolas debochadas, exigindo educação. Ele era respeitado, pois que era bastante pesado e musculoso, e tinha também muita experiência.

Ele fez sinal para o secretário, um último modelo da Bola da Copa do Mundo, que saiu correndo ágil com sua juventude, e voltou do mesmo jeito com uma banqueta para que a Bola de Gude alcançasse o microfone.

A Bola de Gude agradeceu, pois era simpática e educada, e num pulo só alcançou o objetivo. Com um olhar sério e respeitoso, deu boa noite para todos e começou:

- Senhor presidente..., Senhoooras e Senhores... Somos uma classe humilde, sem pretensões outras como as dos senhores, como a de subir em pódios, receber faixas, louros e troféus. Nós apenas cuidamos da alegria da meninada, que adora nos ficar trocando, que nos guarda carinhosamente em saquinhos de pano..., que chegam a nos colecionar de um ano para o outro...

A platéia logo reconheceu a sabedoria naquelas palavras simples, e silenciosa aguardou o orador se organizar.

- São duas as nossas reclamações..., bem curtas para não tomar o precioso tempo dos senhores...; uma, que cremos não haver muita solução, e outra, que temos certeza estar a correção em nossas mãos...

A platéia começou um murmurinho, perguntando-se o quê poderiam ser duas questões tão antagônicas: uma já resolvida, e a outra por resolver?

A Bola de Gude continuou:

- Como todas sabemos, os videogames e computadores estão cada vez mais difundidos, e a cada dia que passa tornam-se mais baratos. Aliado a esse problema, estão as ruas e calçadas cada vez mais pavimentadas. Nossa existência está se resumindo à periferia e ao interior. Estamos em verdadeiro processo de extinção... – concluiu com certa dramaticidade.

Ouviu-se um vozerio surdo na platéia. Enfim alguém chegava com um assunto sério e importante para ser debatido...

- Pôu..!, pôu..!, pôu..! – martelou o presidente – conclua... – falou voltando-se para a Bola de Gude.

- O que vimos solicitar, é que sejam criadas áreas específicas nas praças públicas para o desenvolvimento de nossas brincadeiras, e que, se criadas, não se permita que sejam depósitos de cocô de cachorro. Isso nos suja e transmite doenças para a criançada.

A platéia riu em alvoroço, mas o assunto era sério, e logo foi interrompida pelos sons graves das marteladas do presidente, que mais uma vez a repreendeu com um pedido de silêncio.

- O assunto será analisado e debatido com muito carinho, por tratar-se de questionamento justo e legal, e de alto interesse para o desenvolvimento de práticas saudáveis de comercialização e socialização entre a garotada. É com vocês que a meninada aprende a ganhar e a perder, arriscando-se, desenvolvendo estilo próprio, bem como competência peculiar para lograr sucesso na vida pessoal – concluiu o presidente.

Não era à toa que aquele presidente já estava em seu oitavo mandato consecutivo, pois o que não lhe faltava, era sabedoria e inteligência, além da própria presença atarracada e musculosa, condição adquirida nas quadras de cimento com laterais de alvenaria, onde ela não cansava de correr e se bater, de ser chutada para todos os lados o tempo inteiro, diferente da Bola de Futebol de Campo que gostava de fazer cera o tempo inteiro.

A associação começara tempos atrás sob a presidência de uma Bola de Basquete. Acreditava-se que, por ser a maior, ela conduziria os trabalhos de forma competente. A pobre coitada até tentou, mas de tanto quicar no chão da quadra e de ser arremessada na tabela, acabou por desenvolver uma gagueira intempestiva.

A Bola de Vôlei também tentou, mas esta sofria de problemas de posicionamento. Não conseguia ficar muito tempo num lado só, a não ser quando dos pedidos de tempo pelos técnicos. Havia ainda aquela rede alta que, numa aproximação, sofria pancadas de um tal corte, e outras tantas de recepções pelos bloqueios. Ela vivia esperando em sobressalto pelas redes. Era ruim da bola...

Assim, várias tentativas foram sendo feitas, e a que logrou alguma liderança de fato, com os pés literalmente fincados no chão, foi a Bola de Futebol de Salão.

A Bola de Futebol de Campo gostava de muitos holofotes, muita televisão, e por isso acabou sendo dominada por muitos cartolas. Acabou comendo bola... Por isso ela não conseguia transmitir confiança, embora fosse a mais difundida de todas as bolas. Uma coisa é fazer sucesso lá fora; outra coisa é presidir uma associação...

A Bola de Boliche uma vez chegou a se candidatar, mas não foi eleita. Esquisita, pesada e dura, com três buracos num lado só, tinha uma obsessão por ficar derrubando coisas. Logo foi rotulada como desacertada da bola e pouco comparecia às sessões.

A Bola de Tênis era tão sofisticada que chegou a cogitar não ser necessária a sua inscrição. Foi convencida pela Bola de Frescobol, que alegre e faceira, bronzeada e brincalhona de tantos fins de semana, sem muito alarde a alertou: "ninguém sabe do dia de amanhã..."

A bola de Bilhar era soturna, muito noturna, e gostava de ambientes fechados, com pouca iluminação e alguma bebida, não agradando a todos. Por outro lado, havia uma hierarquia entre elas, e elas próprias não se entendiam, produzindo sinucas...

A Bola de Golfe era muito nobre e esnobe, embora todos a quisessem no buraco. Não teve jeito em ser convencida e ainda está por associar-se. Ela exige um "caddie" para onde for, e "caddies" são para os tacos, uma outra associação que congrega tacos, bastões, pinos, cabos, bumerangues e assemelhados...

A Bola de Pingue-Pongue ninguém entendia quando falava com aquele sotaque asiático, e vivia às turras com as Bolas de Tênis e de Vôlei, acabando por ficar desacreditada.

As Bolas de Beisebol, Críquete e de Pólo, ninguém conhecia bem; nunca ninguém lhes deu bola.

A Bola de Futebol Americano, na verdade de "Rúgbi", era diferente, era oval e não se achava muito uma bola. Possuía muitas futilidades e era considerada por todas as outras bolas, como sem rumo certo, e por qualquer motivo também explodia em ataques e chiliques. Talvez fosse pela convivência com aqueles que a jogavam, sempre com muita violência, inclusive contra aqueles que nem detinham a sua posse: uma turma que usava
capacetes e diversos protetores e acolchoados. Era uma bola que se destinava às descargas de adrenalina e anabolizantes.

- Pôu..!, pôu..!, pôu..! – ouviram-se as marteladas do presidente retomando a sessão. Voltando-se para a Bola de Gude, em tom sereno perguntou:

- Qual a segunda questão???

A Bola de Gude pigarreou limpando a garganta, ganhando tempo e inspiração, iniciou:

- Estamos aqui hoje, para tentarmos pôr um fim numa prática muito antiga..., de colegas nossas...

O zunzum aumentou, assim como a curiosidade de todas as bolas. Logo fizeram silêncio, antevendo alguma bomba no ar.

A Bola de Gude continuou:

- Estamos sendo extintas pelo progresso..., e naqueles recantos onde a criançada se reúne para conosco brincar, nossas próprias colegas associadas, nossas colegas de classe, truculentas, intrometem-se e acabam com a brincadeira...

O vozerio aumentou na proporção direta da indignação, e logo todas queriam saber que colegas eram estas?, quem seriam as truculentas?, quem estaria a solapar tão unida e festiva coleção de bolas que há séculos preocupava-se apenas em tornar o homem mais alegre e festivo, passando pelas bolas coloridas de mascar, terminando nas delicadas e requintadas que enfeitam as árvores de natal.

O presidente interveio rápido:

- Continue, continue...

A bola de Gude tomou fôlego, e apontando exclamou:

- São elas..!, são as Bilas de Aço que nos destroçam as cabeças; são elas que nos arrancam lascas, que nos partem ao meio, que nos abreviam a vida entristecendo a todas as crianças que nos perdem. Nós somos feitas de vidro, coloridas, translúcidas ou opacas, e as bilas de aço não foram construídas para nenhuma brincadeira...

Todos olharam para a Bila de Aço que, corpulenta e massuda, inflou ainda mais o tórax em tom de desafio. Lembrando bem, ninguém sabia ao certo por que tais bilas foram associadas, uma vez que se destinavam a rolamentos para elementos de máquinas. Eram esféricas sim..., mas não chegavam a ser bolas, afinal bola que era bola, tinha que ter alma de bola. As bilas eram compactas e com camada externa de liga especial. Por outro lado, depois de algum tempo sem utilização, elas oxidavam, deixando um pó que a tudo sujava.

Imediatamente, todas as bolas questionaram a dura Bila de Aço, que foi convidada a se explicar. A Bola de Gude cedeu lugar entregando o microfone, e a Bila de Aço começou:

- Nós somos acostumadas à força bruta, a trabalhos em alta rotação, longas jornadas circulando, e quando somos transformadas em bilas para a meninada, já estamos gastas e velhas. Nós não sabíamos que fazíamos tanto mal. Achávamos que tudo era natural, e quando trombávamos nas nossas amigas, endurecíamos como fazíamos quando estávamos no trabalho antigo. Prometemos que de hoje em diante, não endureceremos mais na hora do choque. Propomos, nós e as Bolas de Gude, alertar a garotada para que não apliquem muita força em todas nós.

Todas as bolas bateram palmas por longo tempo. Há muito não se via um assunto delicado, ser tão bem resolvido em tão pouco tempo. A Bila de Aço foi recebida com muitos abraços, e muitas antipatias foram desfeitas naquele momento.

O presidente encerrou a sessão, e todas saíram rolando felizes para as suas casas.

Naquela noite, a Bila de Aço passou a ter uma alma; transformou-se numa Bola de Gude de Aço, e daquele tempo em diante foram sempre polidas e mostradas brilhantes pela meninada orgulhosa.

A próxima reunião já está agendada, e mais uma vez a oval Bola de Futebol Americano estará em pauta. Dessa vez ela não levará nenhuma reclamação; ela prometeu apenas cantar...

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