Mingo, meu amigo trapalhão

Duminguim, como o chamávamos, virou para mim e perguntou:

- Boblitz, quantos dentes têm o teu garfo?

Eu parei de comer e junto com ele verificamos que eram quatro...

- Então, comi três...

Estávamos no aeroporto de Salvador, jantando qualquer coisa, pois nosso avião só partiria dali a 4 horas. Enquanto conversávamos, ele tentava levar comida até a boca sem sucesso, até que ele, percebendo, fez a pergunta.

Por instantes, procuramos para ver se encontrávamos os outros dentes de plástico, mas eles já não estavam lá..., e rimos juntos por mais um tempo, como aquele em que ele resolvera fabricar cerveja no meio da selva...

Mas isso é uma outra história. Por enquanto, fiquemos com essa que criei em homenagem a ele:



Mingo, meu amigo trapalhão
(Paulo Boblitz – ago/2004)

dedicado ao amigo
José Domingos de Carvalho
(Duminguim)


Já estávamos voando há algum tempo, Mingo e eu, sem rumo como sempre, ele no canto dele, eu cá no meu...


Sempre que voávamos juntos, muita conversa era jogada fora; Mingo a tagarelar e eu a escutar...

Mingo era falastrão, famoso por ser conquistador. Eu era paciente, a escutar aquela ruma de embromação, às vezes me flagrando pensando em como é que ele conseguia agüentar, no caso remoto de toda aquela conversa ser verdadeira...

Voávamos separados, com nossas bússolas há muito tempo malucas, com nosso vôo sempre próximo do solo, visual e sem instrumentos; fizesse sol ou chuva, céu claro ou nebuloso, sempre estávamos lá, um fazendo companhia pro outro, quem sabe por um depender do outro, Mingo a contar histórias de louras, morenas ou ruivas, e eu a franzir o cenho, querendo e fazendo força por acreditar...

Éramos amigos há muito tempo, Mingo meio irrequieto, sempre cheio de idéias, desligado de tudo e de todos, às vezes me deixando maluco com tanta atrapalhação, já que eu era organizado e meticuloso, quieto e sempre ligado. Talvez por isso déssemos tanto certo, por sermos diferentes em tudo. Apenas numa coisa concordávamos: nos fazíamos rir o tempo todo, pois sempre estávamos de bem com a vida, ele com o jeito dele, eu aqui com o meu.

Estávamos alegres naquele dia; fazia pouco tempo que a chuva havia parado, o sol brilhando numa atmosfera limpa, lançando seus raios dourados sobre nós, também lavados e reluzentes... Mingo sempre zoadento; eu cá só escutando...

De vez em quando o alertava:

- Mingo..., tome cuidado...; você está se empolgando...

Sempre que o criticava, ele maneirava um pouco, se concentrava mais no vôo, parava de fazer aqueles ziguezagues, aquelas subidas e descidas, pois quando estava a contar mais um de seus casos, acabava gesticulando bastante, e à medida em que a história se desenrolava, mais e mais se arrebatava, e quanto mais se mexia, mais medo me dava em ver aquilo aos trancos e barrancos a deslizar pelo ar, às vezes aproximando-se perigosamente de mim.

Eu, por instantes fechava os olhos, balançava a cabeça não querendo acreditar, e tratava de me afastar de Mingo, não sem antes de chamá-lo de maluco, lembrando-lhe que algum dia ele ainda nos mataria...

- Voe quieto!, seu..., seu..., e o nome feio não conseguia sair, pois que Mingo era querido e não fazia aquilo por mal.

Mas não tinha jeito... Logo ele esquecia e começava com novo entusiasmo... Eu dava de ombros e tratava de tomar cuidado, sempre o vigiando para não deixá-lo aproximar-se de mim.

Mas nesse dia, já estava tudo acertado. O destino estava nos esperando mais à frente, naquela curva do tempo que somente a ele pertence, que apenas a ele é dado a permissão de conhecer...

Mingo espalhando zoada, eu a vigiá-lo para não corrermos perigos...; por isso não vimos aquele obstáculo; não tivemos nenhuma chance...

- Páaa!!! - Foi uma porrada e tanto...

Estacamos de repente e fomos ao chão ao mesmo tempo. Por sorte conseguimos aterrissar, cada um do jeito que pôde, cada um envolvido com seus próprios problemas.

Olhei para Mingo e perguntei:

- Tá tudo bem com você?

- Táaa... - respondeu ele meio choramingando, comprimindo a cabeça com as mãos.

- E com você!? - berrou para mim.

- Tá tudo bem! - respondi também comprimindo a testa, e sacudindo a poeira da bunda.

Aquele buraco na porta que eu havia mostrado pro Mingo, não era buraco nenhum...

Na verdade, como dois besouros coloridos e muito elegantes, asas longas e brilhantes, e com grandes antenas, caçávamos comida o tempo inteiro...

Nos achegamos, olhamos para cima, um tanto quebrados e doídos, um já querendo mangar do outro, e com as mãos espalmadas nas testas, olhamos aquele janelão transparente...; alguém o havia tampado com vidro..., bem no nosso caminho..., bem no meio do nosso plano de vôo...

- É vidro de novo... - virei para o Mingo e informei.

A primeira vez em que batemos num vidro, não entendemos nada, e ficamos horas e horas discutindo e tentando atravessar aquela barreira física, no entanto transparente...

Mingo, como sempre, cientista e filósofo, achou logo que estávamos numa outra dimensão. Começou teorizando que a superfície estaria a separar 2 universos, o de cá onde estávamos, e o de lá onde não podíamos ir. Num instante começou a fazer os cálculos complicados, onde aumentando a velocidade, nossa imagem deformaria, e a depender do ângulo de penetração, nós conseguiríamos passar, e se passássemos, estaríamos numa outra realidade, quem sabe energética, num mundo de cristal...

Na época, chegou a se empolgar fazendo cálculos financeiros, pois quando retornássemos, ele ficaria rico com tanta palestra e explicação. Um livro lançaria, um laboratório compraria, secretárias contrataria...

Secretárias..., e de repente tudo esquecia, pois que mulher, era o seu ponto franco.

- Afinal..., onde é que estávamos mesmo? – ele costumava perguntar, sempre que divagava em saias.

- Nós estamos feito dois besouros patetas, a tentar seguir em frente, e não vou dar mais nenhuma carreira para tentar atravessar. Acho melhor voarmos em outra direção – naquela primeira vez, ponderei impaciente.

Mas Mingo era teimoso, e não fosse nossa amiga Dona Joaninha, que ia passando naquele instante, talvez o Mingo ainda estivesse até hoje em conjecturas.

E ela, na época, nos informou:

- Não adianta! Vocês não conseguirão! Vocês podem ver o que há lá dentro, mas não podem passar. Outro dia aconteceu o contrário. Eu estava do lado de dentro, meus amigos voando cá fora, e eu batendo a cabeça toda vez que tentava me chegar a eles, até que alguém abriu aquela janela e eu pude voar para fora - ela completou.

Para quem bate num vidro, a sensação é horrível, pois não vemos nenhuma descontinuidade em nosso trajeto, e de repente, nos arrebentamos numa coisa que não vemos, numa superfície invisível...

Lembrando da situação anterior, virei para o Mingo e repeti:

- É o tal do vidro novamente...

- Deveria existir uma lei que proibisse essas vidraças transparentes... Deveriam ser todas com revestimento... – resmungou Mingo...; e continuando... – é um perigo para nossa espécie... – concluiu todo filósofo.

- Tá certo, Mingo... A gente descansa um pouco e depois nós vamos procurar onde voar em outro lugar..., mas a culpa foi sua! Não fosse eu ter que ficar tomando conta do seu vôo, teríamos visto a vidraça..., seu exibido...

Dito isto, já arrependido por ter falado, deitei-me à sombra de uma folha, fechei os olhos e tentei me acalmar, enquanto Mingo ficava pra lá e pra cá, ensaiando uma resposta para mim, de vez em quando estacando e levantando uma das asas, como quem fosse iniciar alguma frase, desistindo em seguida...

De onde estava, conseguia vê-lo sem que ele notasse; garanto que naquelas alturas ele já estaria fazendo novos cálculos matemáticos, pois que no fundo, no fundo, não aceitava a explicação de Dona Joaninha, calculando a refração da luz, o comprimento de onda, a trajetória, a aceleração, a desaceleração, o impacto e outras coisas mais, inúteis a nós, dois besouros grandes, eu bem maior do que ele, portanto mais dolorido ainda.

Se um dia ele chegar a uma conclusão, vai torrar o meu juízo com tanta explicação... – fiquei pensando...

Acabei pegando no sono, um sono pesado de quem está cansado, pelo susto e pela dor da bordoada. Acordei com um som de estalidos, e vi o Mingo se contorcendo todo.

- Mingo..! O que houve? - perguntei, ainda desembaciando os olhos.

E ele, numa voz grave:

- Estou fazendo alongamento...

Dito e feito: - "tráac!" – esticou uma das asas para cima, desdobrando-a, enquanto encostava uma antena na outra, entortando a cabeça no sentido contrário.

Mingo não tinha jeito mesmo... Ali estava ele, com meiões coloridos acima dos joelhos, esticando-se todo em exibição, só para as meninas que passavam voando por cima, olharem para ele...; à noite ele teria muito assunto para conversar com elas...

- "Tréec..!" – e Mingo agora já estava numa outra posição, encostando um calcanhar nas costas, enquanto o segurava com uma das outras patinhas, jogando o corpo todo para frente...

Era um exibido mesmo... Pra quê tudo aquilo? – me perguntei.

Minha cabeça doía e a barriga já dava sinais de fraqueza; estava impaciente e irritado para ficar vendo toda aquela arrumação.

O Mingo, decididamente, não é desse mundo... – imaginei com a minha certeza.

Bati minhas asas e levantei vôo, começando a ir embora, em direção oposta à da vidraça, quando escutei um berro às minhas costas.

- Ei..! Espere por mim!

E Mingo saiu fazendo carreira, ainda meio manco e desengonçado pela queda, voando de qualquer jeito, tentando me alcançar, mas desta vez eu não deixaria, pois lá vinha ele comentando:

- Creio que a vidraça é constituída por cristais birrefringentes, com polarizações diferentes entre si, o que faz com que as ondas...

Enquanto ia falando e pensando no que falava, ia gesticulando e apontando como a dar uma aula, provocando aquele vôo característico que somente aquele maluco fazia.

Esgueirei-me de mansinho atrás de um arbusto e o deixei passar discursando sozinho, e não pude deixar de sorrir, pois daquele jeito ele encontraria outra coisa pra bater na cabeça, tal era sua abstração genial em voz alta, a explicar o que teria acontecido conosco lá atrás. Quando ele se comportava assim, ficava cego e surdo, mais parecendo um rádio...

Enquanto ele passava, fiquei pensando que quando ele descobrisse que o deixara conversando só, ficaria bastante zangado; já sabia até o tamanho da bronca que ele me daria... Faz mal não; amanhã fazemos as pazes novamente...

E segui no meu rumo, pensando na sorte que tivemos: não estivesse aquele vidro no caminho, teríamos passado e não encontrado nada, pois que dentro de casa não tem comida para besouro...

Tem sim é chinelada de uma zelosa patroa, e nestas alturas não estaríamos aqui..., eu contando a história, e Mingo falando sozinho...

* * *

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