Tempo ruim











Essa história deve ter acontecido numa tarde qualquer de 1985 ou 86, e o susto foi muito forte. De sustos em sustos, nossos cabelos vão tingindo de branco, ou, se preferirem, perdendo a cor...


De nossa Petrobrás, guardo mais alegrias do que sustos, ou, nela, a vida me sorriu melhor...

A pequena Curimã 2, onde a BS-3 ficou atracada, aquela mesma em que construímos o campo de futebol (ler Competição em alto mar), estava ligada por uma gangway móvel e complexa, pois a plataforma é fixa e a balsa se mexia conforme as ondas e marés. Subíamos até o topo da PCR-2 e depois passávamos para a PCR-1 pela passarela de ligação, um projeto bonito e bem feito, pois as duas, embora fixas, se mexem constantemente.



Tempo ruim
(Paulo Boblitz - dez/2005)


O vento marinho entrava pelas narinas, carregado e pesado, deixando seu gosto pelo caminho da língua. O aço gorduroso de maresia era frio, molhado e escorregadio, e sujava a tudo que nele tocasse.

Subindo e descendo, já fazia um bom tempo que víamos aquela chama laranja se aproximando, energia queimando na ponta de uma lança de queimador. Já era tardinha e o Sol escondia-se às nossas costas, por trás daquelas pernas de aço da PXA-1 ao longe, em silhueta contra a luz forte que tentava no horizonte ir deitar.

O rebocador mergulhava mais fundo enquanto cortava o mar, cavalgando fazendo seu bigode crescer enquanto rumava, enquanto afastava as ondas no singrar. Gotículas se chegavam, molhando-nos a face, mostrando-nos o gosto salgado do oceano...

Navegávamos contra a corrente, contra a ordem natural das ondas, e a cada vazio a embarcação descia e estremecia, um ferro grande qualquer batia, mais água espumada subia pelo ar. A cada mergulho, o rebocador tornava a se elevar, teimoso e constante, vibrante mas humilde, diante de tanta grandeza a lhe cercar.

Olhei para o amigo e tive pena, pois não havia mais o que vomitar, nem nada mais a se fazer, a não ser levar o ar fresco na cara e tentar reagir, ao que chamamos de enjôo do mar, triste disfunção que nos maltrata, que toma conta de nosso organismo, que rege o timão de nossos nervos, que queima o fusível de nosso circuito interrompendo a razão, produzindo tremores, turvando a visão, fazendo sofrer e enfraquecendo qualquer espírito...

Tonto..., justamente ele que regurgitava até pelos ouvidos, que não soubera respeitar o grande mar, tonto agora não discernia mais nada ao seu redor. Mar não se enfrenta, não se desrespeita. Mar sempre é acatado...

O mau tempo já nos tinha feito voltar, pois helicóptero nenhum arriscaria pousar em espaço tão reduzido, cercado por torres de aço, pontas e antenas, aço puro agigantado, duro a todos querendo amassar sem nenhum perdão... No meio do caminho havíamos feito a volta, pois o tempo naquela tarde estava mau humorado, acinzentado e assanhado, cheio de buracos no ar, a querer nos tragar...

Mar e ar se conversam, se trabalham e se ajudam, pois um é feito do outro, e quando um empurra, o outro rejeita na mesma proporção, até as reações se fazerem nulas, hora em que o mar engole tudo, sorve a própria morte e a mantém prisioneira lá bem fundo, no fim do mundo, onde tudo é muito escuro, tudo é bem espremido...

O barulho do vento e das ondas se confundia com o ronco surdo dos motores, e se misturava às grossas baforadas de fumaça negra saindo das duas grandes chaminés laterais. Metal da proa pontiaguda recebendo pancadas de toneladas molhadas, sem fim até que chegássemos ao nosso destino, aquela plataforma cada vez maior, cada vez mais iluminada, mais barulhenta, mais cheia de silvos, de motores a roncar, atividades para a broca perfurar cada vez mais fundo, não importando o tempo que se faz soprar, nem a luz que se faz chegar...

O frio já começava a castigar, e o tonto mais um pouco estaria inconsciente, onde nem bílis mais se chegava, e as convulsões é que ditavam as únicas reações de um corpo nauseado. Dava pena e preocupava, ver o colega em ação involuntária. O Capitão já havia acelerado o mais que podia, máquinas a toda força, e quanto mais rápido andávamos, mais fundo penetrávamos nas paredes de água. Quanto mais se fazia, mais a situação piorava...

Chegamos já de noite aos pés da plataforma de Curimã, impávida sendo açoitada, milhares de bolhas de champanhe em cada perna a espumar, mangueiras pendentes balançando, o mar assobiando a cada vez que passava pelo piso grelha do convés inferior, a água espelhando um sem número de luzes, dançando nervosas no sobe e desce das ondas raivosas...; mas o pior ainda estava por vir...

Havia uma balsa de serviços atracada ao lado dela, a enorme BS-3, pulmão de materiais e alojamentos, e teríamos, por razões de segurança, que desembarcar por ela, face à visibilidade do operador do guindaste. Embarcaríamos na cestinha e sairíamos daquele suplício, daquele inferno molhado...

A cestinha foi descida no convés, distribuindo pancadas também raivosa, e uma dupla embarcou primeiro; era preciso avisar ao guindasteiro que subiria um colega já quase fora de si, pois subir na cesta com as embarcações se mexendo, requer cuidado e equilíbrio.

As ondas espremidas entre as duas embarcações, ora aproximavam, ora repeliam uma da outra, produzindo movimentos laterais perigosos. O próprio guindaste operava já de uma base em movimento, balanço esse que era transmitido e amplificado para a ponta de sua comprida lança.

De popa virada contra as ondas, vez ou outra, quando o rebocador a afundava, uma delas aproveitava e lavava o convés. Deu medo olhar aquilo... Deu medo olhar o colega já sem lucidez. Deu medo de desembarcar. Deu medo quando pensei que o operador pudesse não ter tanta experiência. Deu medo ver tudo grande e escuro, brilhando ao facho dos holofotes, mostrando cada garra afiada e brilhante. Deu medo de ser mordido...

Nada era suave, e nem poderia ser, sob o ronco feroz dos motores à vante e à ré, tentando manter o rebocador parado no lugar. Quando a balsa balançava para um lado, o rebocador reagia ao contrário, e todos éramos impelidos para algum lugar.

A cestinha pairou por alguns instantes e logo tocou os pranchões do convés molhado, vibrando em barulho daquilo que se é largado. Escorregou um pouco para os lados, parando quieta quando o cabo foi relaxado.

Certificamo-nos que estava tudo pronto, tentando ver o operador por trás de tantos holofotes. Não o vimos, mas ele nos entendeu e buzinou. Olhei em volta e rezei, reza apressada ao som dos baques da embarcação na água; reza atribulada pelo carregar do colega até à cesta, ajudado por mais um da nossa equipe; reza misturada com tantas ações...

Sentamos o colega no meio do lastro de lona, e o agarramos com todas as forças. A parede de cordas da cestinha balançava para um lado e para o outro, mole jazida no convés, um pé sobre ela, o outro pé sobre o convés. Haveria um forte impacto quando o cabo de aço fosse retesado.

A buzina do guindaste troou, o coração apertou, a saliva não desceu, a reza se apressou, e o impacto chegou... Fomos, de um salto só, içados a pequena altura e nos transformamos em pêndulo em ângulo, pois as embarcações haviam se afastado.

Começamos um movimento lateral, diretos em rota de colisão com a borda lateral do rebocador, tubos grossos que formam uma grade firme e protetora, nos aguardando com sofreguidão...

O operador viu e acelerou com vontade, transformando nosso movimento em arco, fazendo-nos subir do melhor jeito que ele podia... Livramo-nos de uma borda e agora estávamos indo rápidos demais contra as defensas da balsa, grossas toras de madeira, desfiadas em farpas pontiagudas, pontas de parafusos gigantescos, pneus e muitas correntes, aço grosso retorcido de tanto levar pancada...

Como era alta aquela balsa..., e como subíamos desembestados... Passamos a poucos centímetros da amurada, e continuamos a subida em disparada... O operador compensou a lança e sustou nossa subida, e nos desceu com suave maestria, nos depositou com carinho naquele chão rude em madeira com fina camada de areia grossa para as lagartas do guindaste não escorregarem; chão macio de quem chegou em porto seguro...

Sentamos em uma caixa qualquer de algum equipamento, as pernas tremendo com tanta adrenalina, as mãos doloridas de tanta força no pegar, até que a respiração desse uma trégua, o coração diminuísse, o frio voltasse a incomodar... O colega foi atendido e por instantes a baldeação interrompida. Mais quatro cestinhas e poderíamos, todos juntos, comemorar. Graças a Deus não houve nada naquela noite, pois Ele é Quem guiava os comandos do guindaste.

Estávamos exaustos e doloridos, mais ainda agradecidos, e naquele dia fomos dormir mais cedo, mais experientes, mais conscientes, mais temerários, pois no mar aprendemos a esperar, aprendemos a ter paciência.

É sempre ele quem dita a hora e o lugar...

* * *

Um comentário:

  1. Parabéns pelo seu conto! Um verdadeiro testemunho vivo da época do romantismo offshore brasileiro!
    Fui Barge Foreman da BS-3 de 1981 até 1985.
    Roberto Medeiros

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