Trilha Aracaju (Sergipe) - Mangue Seco (Bahia) - (ii de ii)


Não há nada como do cansaço descansar...


Não há nada como o prazer relembrar...

Voltamos para tudo novamente começar,

e mais uma vez chegar a hora,

da mente contente amenizar...,

nova trilha poder enfrentar...



Trilha Aracaju (Sergipe) - Mangue Seco (Bahia) - (ii de ii)
(Paulo R. Boblitz - mar/2010)


Desembarcamos nossas mochilas e bicicletas; até a pousada, ainda ia uma pequena caminhada... Um jipão logo chegou para nos levar todas as bagagens, deixando-nos livres para empurrarmos as bicicletas, pois naquela areia frouxa, ninguém conseguia pedalar.

Uma placa de sinalização chamou a atenção, pois caminhos estreitos de mão dupla, requerem sempre educação.

Dona Geiza já nos aguardava com seu ar de mansidão; sorrindo nos foi encaminhando com cada chave na mão: "bem-vindos à nossa casa..."

Indicando-nos um bom lugar, garantiu que guardaria bem trancadas, todas as bicicletas, sem nenhum arranhão... Encostei minha bici e fui me livrar da bagagem, tirei as sapatilhas e rumei para a piscina, que estava morna convidativa, para quem quisesse relaxar. Livramo-nos dos suores e nela entramos agradecidos, e ficamos ali um tempão, até que sem mais conversas, devagar fomos saindo, pois um belo jantar nos aguardava, com seu cheirinho de tempero já a se anunciar, nos enchendo a imaginação com tantos sabores.

Tomei um banho, lavei minha roupa e a estendi no varal do alpendre, que bem merecia uns ganchos armadores, e umas gostosas redes, herança maravilhosa dos nossos índios...

A cada momento que passava, mais nos aproximávamos da boa hora, aquela em que satisfaríamos o corpo faminto; um a um foi se achegando e sentando nas cadeiras do alpendre, observando o vai-e-vem do pessoal da cozinha, que num enervante ritual, primeiro trouxe as toalhas, depois arrumou as mesas, arrematou com uns jarrinhos com flores, pôs os talheres, os copos, os pratos, os guardanapos, mas comida?, nada...

Sete e meia..!, nos lembrou alguém mais organizado, refreando nossos ímpetos; iríamos jantar ao ar livre, numa espécie de coreto com telhado heptagonal, algum erro de um Marceneiro, ou de um Pedreiro que sentou sete colunas.

A última coisa a ser arrumada foi a mesa da comida, ali onde cada um seria por si, em comedidas investidas, pois têm vezes que o instinto é mais vibrante...

Estenderam-lhe uma toalha e começaram um desfile de travessas, as mais coloridas num difícil arco-íris noturno, miragens que só a fome produz... Fez-se uma fila ordeira e pacata, e em sentido horário, iniciativa de quem primeiro se serviu, fomos rodeando aquele pequeno altar, numa adoração pelos olhos, em voláteis aromas que teimavam em não se misturar...

Moqueca de peixe, peixe frito, filé de frango acebolado, pirão, sururu, vinagrete, arroz, feijão, uma farofa sem igual, e quase, quase, na pouca luz, punha açúcar pensando ser queijo ralado...

Repeti 3 vezes... Era a fome unida com o gostoso...

Terminamos o jantar e devagar nos fomos aquietando, sentando no alpendre para jogarmos as últimas conversas fora, até que surgiu um violão, e dois artistas, Amâncio e Ruperto, que se não são é porque não querem, pois que com maestria tocaram e interpretaram, o puro romantismo, poesia limpa e inteligente, maviosa por gênios de outrora, onde a cultura reinava, os bons modos eram a tônica do galanteio, o respeito não permitia que o vulgar viesse à tona, e o amor era cantado aos 4 cantos, em saraus e serenatas, onde a paixão soava mais forte no coração, embalado pelos versos profundos... Hoje os tempos são outros e tudo isso, embora lindo, é tido como careta..., por bobos que se julgam modernos, vulgares pelas próprias deficiências, vazios pela falta de criatividade...

Chegou um momento em que cada um, cansado, relaxado pelos tons suaves, procurou seu próprio recanto, para sonhar e recobrar as forças, pois o domingo bem prometia...

Dormi um sono de passarinho... Primeiro um cachorro latiu, e mais tarde repetiu, e mais uma vez se mostrou valente...; segundo foi o colchão, muito fino tornando-se duro, a cada vez que eu me sentia dolorido, me virando para o outro lado. Foi como se dormisse acordado...

Dia seguinte havia uma unanimidade: o cachorro foi o vilão...

Ivan, eu e Paulo Carneiro, diante de um deserto onde todos pareciam dormir, resolvemos conhecer o povoado, uma grande mangueira rodeada de uma singela igreja e mais algumas casas, tudo um pouco já desfigurando o encanto, que um dia Mangue Seco teve. No caminho encontramos Miranda e Silvia, que se divertiam a tomar banho de rio salgado. Ao longe o mar a perder de vista, a se misturar ao rio, a informar que ali o império das águas ainda reinava, mas aceitava os encantos do verde, das croas de areia querendo ser ilhas, da gente deslumbrada com tantas belezas...

Fomos por cima das dunas, retornamos com a maré ainda cheia, água pelos joelhos a fazer marolas, a quebrar nos quebra-mares de coqueiros, areia alvinha a contrastar com a velha pobre palma, que um dia voou sobranceira, ao gosto do vento matreiro, agora jazendo seca embaixo d'água...; a vida é uma só: uma hora ela tira, outra hora ela dá...

Chegamos em bom momento com muita fome, quase 10 horas de um dia azul; a maioria já tomara o desjejum, abacaxi, melão, melancia e mamão, suco de maracujá e de melancia, pão, manteiga, bolo, queijo e presunto, ovo mexido, cuscuz, inhame e salsicha, e claro, o café e o leite... Aquilo já era quase um almoço...

Numa reunião rápida, alguns decidiram passear de bugre, um veículo leve para as areias soltas, e outros iriam apenas para a praia; eu resolvi andar de bicicleta, conhecer o lugar bem mais depressa, e saí empurrando a magrinha, amiga boa num pedal macio...

Ao chegar na areia molhada, montei e pedalei, e boas fotos fui tirando, até chegar num chavascal, não imundo como o significado traduz, mas terra morta e de ninguém, como o significado também condiz, e relembrei os anos de Amazônia, onde os rios produzem chavascais, semi-enterram suas árvores arrancadas, produzindo cemitérios desolados de troncos, daquilo que um dia foi feliz, hoje insepulto pelas forças do vai-e-vem, do rio que traz, do mar que devolve...

Galhada seca a produzir ancoragem, vida mais tarde a se achegar, ninhos produzir, vida nova enfim surgir, da morte a herança não ser em vão, pois que a Natureza a tudo resolve, a tudo ensina transformando...

Quais suplicantes aos céus em braços erguidos, clamam por um amor que um dia tiveram, às margens risonhas do forte rio, enquanto verdes vicejavam e floriam, davam sombra e as ribanceiras protegiam; hoje somente atrapalham...

Saí dali enquanto pensativo, pois adentrar?, só se fosse sem a bicicleta, tamanho emaranhado confuso, agressivo e ingênuo...

Pedalava agora a favor do vento, escutando ainda os malfadados ramos, até que os ventos cansaram, deles trazerem lamentos, e me fui de volta de onde havia vindo. Quando passava pelo ponto onde começara, gritos me chamaram, os novos amigos me alertaram, estavam ali para eu me juntar... Me aproximei e soube que mais bicicletas estavam vindo; segui em frente sozinho, e quando voltasse, um novo passeio faríamos.

Pedalei até cansar de não ver nada; mar de um lado, areia fofa de outro..., e retornei, agora contra o vento refrescante, até encontrar Maíra e Rose pedalando. Juntei-me às duas e pedalamos, eu de longe e as duas conversando, até que bem as lembrei, de que a volta seria contra o vento, barreira que nos freia o deslocamento... Coerentes deram meia volta, e conversando continuaram... Mulheres..., não conseguem poupar energias...

Como eu não participava, apenas acompanhava, acabei de novo em brincadeira, seguindo a risca do molhado, em ziguezague onde o desafio era não molhar o pneu... Cansei e em senóide as acompanhei...

Chegamos enfim às barracas onde todos estavam, e sedento umas boas cervejas sorvi, até que a hora final apontou, aquela hora que diz que temos de ir embora; eles foram de bugre e eu fui sozinho, empurrando minha legal magrinha, sentindo a areia quente a me esquentar os pés; encontrei um Prof. da Universidade Federal de Sergipe, área da Psicologia, que andarilho passeava e também retornava - morava em São Cristóvão e estava com a Esposa, passeando e namorando, quem sabe reinventando nova Lua de Mel..?

Fomos conversando sobre pedais, maratonas e trilhas, maravilhas e tônicas, que a bicicleta nos produz; nos despedimos na entrada de minha pousada - a dele ficava na beira do rio, paisagem de Paraíso...

Tomei meu banho, resolvi minha conta com Dona Geiza, e parti empurrando minha amiga do peito, quer dizer, dos pés... Encontrei Miranda, Sol e Francisco já almoçando; encontrei a Silvia, sua filha Luciana, Rose e Rodrigo aguardando, o pedido do peixe frito e da moqueca - estavam avexadas por conta de um compromisso... Até tentaram impedir meu pedido, mas meu gosto falou primeiro, mais alto sobranceiro, Camarão ao Alho e Óleo eu pedi, certo que comeria antes delas... Os cheiros se revezaram, meu camarão cheirou antecipado, o peixe frito cheirou segundo, e a moqueca chegou junto com os dois.

Silvia me apontou uma sabiá, apenas para me filar, camarões de tão belos e suculentos, enquanto eu procurava a tão canora ave; acabamos fazendo uma bela salada, misturando peixe frito, moqueca de peixe cozido, camarão corado no óleo... Vou lá voltar apenas por conta do camarão, enorme, cheiroso, suculento, saboroso...

Hora de voltar...; Capitão Perereca de prontidão, seu ajudante Bida na prancha, e fomos embarcando, primeiro as mochilas, depois as bicicletas, e por último todos nós. O ronco se fez ouvir e mais um pouco navegávamos para casa. Kanídia estava lá para nos receber, transportar nossas magrinhas em segurança, na nossa frente sendo seguidas e vigiadas...

Chegamos já de noite de um domingo muito gostoso, meio cansados, meio amolecidos..., meio contentes, já meio saudosos...

Planos eu vim ouvindo, cada um com o seu, repetir a experiência num outro lugar, na verdade, praticar a convivência, suar sob as próprias forças, caminhar em harmonia, dar e receber gentilezas, trocar sorrisos...

Isso tudo a gente só consegue, com as magrinhas pelo meio...

* * *

Um comentário:

  1. Muito bom o seu relato sobre o Tour a Mangue Seco. Pena não poder ter ido e desfrutado esse momento com vocês.
    Boas construções contextuais
    BEIJO GANDE

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