Pelas terras de Santa Catarina (dia 8)

O pessimismo, o negativismo,

são defesas de quem não tem coragem...

Se você não pode,

não tente não fazer poder, o seu próximo...


Pelas terras de Santa Catarina (dia 8 – terça-feira)
(Paulo R. Boblitz - 11/set/2012)

(Guatá (Lauro Müller – Pousada Coan) – Bom Jardim da Serra)

Faltavam 10 minutos para as nove quando montei e parti; fazia um sol meio acanhado, que prometia, mas as brumas insistiam em pintar de branco, o topo da serra. A meteorologia havia prometido tempo bom para aquele dia, e eu torcia para que ela acertasse. Já ia longe quando o Carlos Beppler havia trocado mensagens comigo, sobre essa parte do roteiro. Minha idéia inicial era percorrer o roteiro Acolhida na Colônia, subir a Serra do Rio do Rastro, retornar ao Acolhida na Colônia e depois seguir para o Vale Europeu, retornando a Florianópolis por parte do Costa Verde & Mar, mas o Beppler me deu melhor idéia, que seria subir a Serra do Rio do Rastro, depois seguir para Urubici, de lá para o Morro da Igreja, depois pelo Vale do Rio Canoas, e aí sim, retornar ao Acolhida na Colônia. Planejei o roteiro inteiro, que acabou ficando em 31 dias.

E comecei a treinar, a treinar, a treinar, e acabei ficando doente, por conta de baixa imunidade... Não podemos simplesmente sair gastando energias, sem reposição de sais e vitaminas...

Dei um tempo nos pedais e observei melhor o meu roteiro. Por que 31 dias? Não havia feito promessa, não pretendia sofrer, não estava com os dias contados. Então, por que a pressa?

Abri o Google Earth novamente e saí percorrendo todos os meus dias. A definição estava em Rancho Queimado, e dali, em vez de seguir para Alfredo Wagner, seguiria para São Pedro de Alcântara, e de lá para Florianópolis. Contei os dias novamente e encontrei 16. Não dobrando para a esquerda, havia suprimido 15 dias de meus planos, que ainda estão guardados... Agora, meu desafio estava lá adiante, imponente, paredão escuro cheio de mistérios... A subida era bem suave, já haviam me alertado, pois o que seria difícil estaria depois da marca dos 15 km, onde a serpente estava sempre preparada para o bote.

Suave ou não, eram quase 500 metros até chegar no início da parte difícil, lá onde as nuvens pairavam, como que descansando...

Havia acordado tarde, porque o dia anterior não tinha sido fácil. Minha roupa ainda estava úmida, e desta vez subiria toda em sacolas plásticas. Acordei com a solução para o meu problema do dia anterior, onde a cada caminhão eu era espremido para onde não havia mais lugar para ir, pois eu havia entendido que deixando espaço, os motoristas de suas boléias viam que dava e se intrometiam entre eu e a faixa da contramão. Não faziam por mal, mas simplesmente pelo raciocínio lógico de quem dirige: dá para passar... O problema está que do ponto de vista do motorista, parecemos um obstáculo fixo, e não somos; estamos em movimento, pior ainda, este movimento torna-se irregular pelas tantas resultantes de forças que hora nos puxam para um lado, hora para o outro.

Assim, estava resolvido: subiria a Serra do Rio do Rastro, como se eu fosse um automóvel, no meio da faixa, com minha amiga brilhante e limpinha, de tanta água do dia anterior, mas isso não queria dizer que eu estava sendo arrogante, pelo contrário, meu espelho retrovisor nunca trabalhou tanto em sua vida junto comigo, do que naquele dia. No meio da faixa, qualquer veículo me via como um obstáculo, e cuidei bem para que me vissem, pois em cada lateral de cada alforje, posicionei sinaleiras vermelhas, que nervosas, não paravam de piscar o tempo inteiro. Agora ele só passaria por cima de mim, se assim o desejasse, e isso é crime...

Pelo retrovisor eu notava que ele começava a abrir para a contramão, e na hora H, eu cedia lugar também, indo para a minha direita. Creio que em apenas duas ou três ocasiões, estava vindo outro veículo em direção contrária, e eu então segurava a posição, mas logo o espaço para a boa ultrapassagem aparecia, e tudo estava resolvido. A 4 ou 5 km por hora, ninguém tem problemas em nos ultrapassar, mesmo que no local haja a faixa contínua proibindo.

Apenas um carro leve, e não deu para ver quem o estava dirigindo, buzinou umas duas vezes atrás de mim, como se a avisar que estava atrás de mim, e eu a atrapalhá-lo, no que lhe fiz um sinal bastante raivoso para que passasse e fosse embora, não me enchendo o saco; coloquei o braço esquerdo para trás e com a mão bem espalmada, fiz o arco de trás para frente umas duas vezes, o mais violento possível, e ele então abriu tanto para a esquerda que pensei que fosse raspar no paredão.

O bom senso nunca deve ser deixado de lado. Num dado ponto da subida, vi um carro que descia e um caminhão que resfolegava atrás de mim. Os dois se cruzariam quando estivessem me cruzando. Não tive dúvidas, coloquei os pés no chão e atuei como Guarda de Trânsito, mandando o carro que descia parar, apertando-me contra o Guard-rail, deixando o caminho livre para o caminhão, que parecia sofrer mais do que eu. Ele passou sorrindo e buzinando em agradecimento; em seguida foi a vez do carro leve, que entendendo o que havia feito, também sorriu e buzinou, e eu agradeci aos dois...

Uma outra tática utilizada que também aprendi pedalando sozinho, é fazer de conta que nosso guidão nos puxou para a esquerda, pois que o motorista atrás percebe, pois raciocina, que não temos um movimento uniforme enquanto subimos, mas atenção! Tudo isso que fiz, só pude fazer por estar com um espelho retrovisor a me dar informações daquilo que me vinha atrás, e meu guidão pendia para a esquerda, de propósito, quando havia espaço de pelo menos quase cem metros entre eu e o veículo.

Digamos que eu estabelecia com cada veículo em aproximação, uma pequena negociação através de atitudes, nunca indefinidas ou a demonstrar insegurança.

Volto a repetir e insistir: só se deve fazer isso quando se está a utilizar um espelho retrovisor. Isso de virar a cabeça para ver se vem carro, apenas transmite segurança ao motorista, que agora sabe que você que está pedalando, o viu. Se você não olha para trás, o motorista permanece em dúvida e o respeita, pois passa a enxergá-lo como um outro veículo qualquer, porque ele respeita motos e carroças, a primeira, fina como nós, a segunda, lenta como nós.

Pedalar com retrovisor também informa da responsabilidade que você ciclista, dispensa a todos à sua volta. Essa desculpa de que retrovisor quebra, é porque ele não foi bem montado. Qualquer espelho retrovisor tem sua bolinha na ponta da haste, para regulagem. Alguns, após essa regulagem, apertam o parafuso para que ele fique fixo, e é isso o que faz com que ele quebre. Nesses 16 dias em que pedalei, todos os dias o espelho saía de posição, e eu o recolocava até que alguma coisa nele esbarrasse novamente. Oquêi!, e daí? Eu parava e o ajeitava novamente; sou paciente...

Passei pelo Hotel Verde Serra, que está à venda, meio abandonado. O dono está velho e cansado do lugar, e quer ir embora...

As nuvens cada vez ficavam mais próximas, exatamente nos locais mais bonitos que o caminho deve apresentar, mas não podemos escolher, e sim aceitar aquilo que nos dispõe a Natureza; numa outra vez, pego tudo com sol bonito; sou otimista...

Na marca dos 15 km, pouco antes do ponto onde a subida apertaria, parei numa lanchonete cheia de câmeras filmando tudo, transmissão ao vivo numa televisão lá dentro a nos fazer notar que estávamos sendo filmados. Dentro dela, centenas de fotos da serra, para quem, como eu, não estava tendo a oportunidade de fotografar, à venda, é claro. Penduradas, outra centena de lembrancinhas, mas o que eu queria, era comer...

Aproximei-me do balcão e atrás dele um sujeito taciturno, lentes grossas, sentado num tamborete. Querem saber, até o achei parecido com o Seu Barriga, aquele do Chaves e do Kiko; mais ao longe uma garota de seus 15 anos arrumava alguma coisa. Na parede atrás, um rifle enganchado em dois ganchos.

Pouco antes de chegar na lanchonete, havia passado por uma cicatriz ainda aberta no piso de concreto, de algo grande que caíra e rompido com a mureta, também de concreto, rolando abismo abaixo. Primeiro perguntei-lhe que suco natural ele tinha, depois, tudo aquilo que não fosse com carne vermelha. Comi dois pastéis de frango, queijo e presunto, e dois copos de suco de uva. Só então perguntei o que tinha sido aquilo na estrada. Em poucas palavras, ele respondeu:

- Uma pedra, mas foi à noite...

Confesso que fiquei em dúvida, se esse "à noite" estava sendo dito com alívio, ou se com tristeza por não ter causado algum acidente. Quase terminando meu primeiro pastel, comentei sobre o hotel mais abaixo estar à venda, e ele me disse que o dono estava cansado e queria ir embora. Ele próprio também já estava cansado, há 22 anos ali sentado, confidenciou-me.

Pedi o segundo pastel e o segundo copo de suco de uva, feito com a fervura das uvas, segundo ele. Então começou o interrogatório, onde eu morava, de onde eu vinha, para onde eu ia, e fui lhe respondendo na medida em que perguntava, e quando a mastigação permitia...

Sem que eu solicitasse, ele informou:

- É..! O senhor daqui para frente terá muitas vezes que descer da bicicleta para empurrá-la, pois que são ladeiras bem empinadas...

- Na hora eu vejo... - respondi

- Chega lá em cima e depois volta? - perguntou.

- Não..! De lá sigo para Urubici, depois subo o Morro da Igreja, depois desço a Serra do Corvo Branco e ...  - ele me interrompeu:

- Desceria!, des-ce-ri-a..!, pois que lá, com essa chuva de ontem, deve estar cheio de barreiras caídas. É melhor voltar daqui...

- Desceria, não! Eu vou descer, e se houver barreira caída, darei o meu jeito... - respondi-lhe, olhando-o fixamente.

Perguntei quanto tinha sido:

- Doze reais...

Paguei, recebi meu troco, pus a bandana, a testeira, o capacete, as luvas, e quando já estava saindo, virei e lhe disse:

- Garanto que essa espingarda não atira...

Virando-me novamente, fui embora, e que as tais empinadas aparecessem para que as vencesse todas. Não apareceu nenhuma, ou então eu estava bastante injuriado... Uma das coisas que me fez pedalar sozinho, foi não ter ninguém por perto a me dizer o que fazer, e não seria aquela coisa gorda, há 22 anos ali sentado, a me dar pitacos. Apenas uma coisa ele acertou: com a chuva do dia anterior, não vi nenhum quati, nem outro bicho qualquer, pois deviam estar todos bem agasalhados em suas tocas.

As nuvens estavam cada vez mais próximas, mas só pedalaria por entre elas, quando alcançasse os 900 metros. Antes disso eu cruzaria por um pequeno desmoronamento de pedras, que deve dar um belo cascudo em quem coincidir estar passando no momento. O concreto abaixo de minhas rodas é cheio de grooving, ranhuras que drenam a água e evitam que pneus patinem.

As nuvens enfim chegaram e a máquina fotográfica não tem mais serventia, pois tudo não passa de muita fumaça, água em suspensão unindo-se para depois precipitar, levar vida aos vales, esverdear os campos, produzir sementes e colheitas, crias e muito leite, farturas que habitam a Terra...

A neblina velava o caminho, mostrando-o lentamente, como lento era o meu avanço; todos pareciam também lentos, como se navegássemos por entre rochedos traiçoeiros, e devagar a paisagem passava por mim. Há muito eu já havia retirado a proteção dos óculos escuros, completamente embaçados, e agora sentia vez ou outra, um minúsculo pontinho d'água a bater no meu olho, pois de tão pequenino, não percebemos que ele está chegando e não piscamos; lembrei do Amazonas...

Havia chegado na região em que começamos a fazer ziguezagues, curvas com 180 graus onde os motoristas de caminhões e ônibus, necessitam negociar, pois que torna-se, às vezes, necessário uma marcha a ré para que possam realizar a curva, de tão fechada que é. Num desses momentos, em que subiam dois caminhões, e descia outro, parei e fiquei observando, de bem longe onde o concreto estava cheio de sujeira, ou seja, por onde nenhum pneu passava. Nessas horas não podemos atrapalhar, pois que a subida é forte, o peso do caminhão deve estar no limite, e as manobras e a própria estrada, apertadas.

O nevoeiro à medida em que eu mais subia, ficava mais firme; eu só conseguia ver, talvez 30 metros adiante, e de vez em quando me aparecia um fantasma...

Mesmo não podendo observar a paisagem, foi o lugar mais lindo e louco por onde passei. Vemos cachoeiras que despencam de muitos vários metros abismo abaixo, mas o rio?, esse a gente não consegue ver, mas escutá-lo, sim. Talvez seja por isso o nome "rastro" pelo meio do nome da serra. Água é o que não falta a descer tudo aquilo, e que se une lá por baixo ao que deve ser um belo e forte rio. Só parei de ouvir água correndo, quando cheguei no topo encontrando um planalto.

A parte mais íngreme é a parte que nos reserva mais belezas, onde a estrada volteia sobre si própria como se quisesse aplicar-se um nó, sempre subindo. Sob nevoeiro, simplesmente perdemos nosso referencial e de repente não sabemos mais em que direção estamos indo.

Abaixo de mim a estrada se dispõe como se em degraus; é impressionante e deve nos tirar o fôlego em dias limpos e claros. Nascentes por todos os lados, e um precipício que nos acompanha por muito tempo. Lá embaixo, bem lá embaixo, a estrada serpenteia a rocha insistentemente. É desconcertante como damos tantas voltas em tão curto espaço, hora indo, hora voltando, mas sempre subindo...

Foi maravilhoso de repente descobrir as placas que me indicavam a divisa dos municípios Lauro Müller com Bom Jardim da Serra, mas ali ainda não é o topo. O topo está mais à frente, aos 1.447 metros, segundo meu GPS, onde o nevoeiro passou a ficar mais intenso, e mais um pouco a chuva começou a cair, justo onde eu não mais fazia força, porque agora era descida, e quem disse que eu deixava passar dos 30..?

Comecei a subir novamente, subida bem-aventurada, pois que mandou embora o frio, frio mesmo, por estar o tempo frio, por estar com a roupa molhada, por estar recebendo o vento pelo deslocamento, mas eram só 50 metros a serem galgados, e de novo começaria a descer.

Os pastéis há muito tinham ido embora, e a fome apertava. Parece até que a gente está com vermes... Lá no topo eu parei para ver ao longe, pois o nevoeiro cedera lugar à chuva leve. À minha direita uma construção isolada, com dois ou três carros parados numa espécie de estacionamento. Suspeitei que fosse algum lugar onde houvesse comida, e iniciei minha descida, descobrindo logo a placa: Churrascaria Tropeiro.

Não tive dúvidas e dobrei à direita naquele caminho cheio de brita, pois resolveria duas coisas ao mesmo tempo: a fome e o frio.

Lá dentro um ambiente 5 Estrelas, bem decorado, fino acabamento. Acho que era o último freguês do dia, e comi muito bem, pagando apenas 15 reais pelo prato livre, com direito a sobremesa. Gerenciando, estavam o que achei de dois irmãos bem jovens, um deles com um notebook a dedilhar. O outro se interessou pela minha história e começou a fazer perguntas, no que fui respondendo, deixando-o satisfeito e pensativo, quem sabe a também sonhar em pegar algum dia, uma bicicleta e sair por aí?
Não me contive e perguntei ao outro rapaz se ele estava utilizando a internet, no que ele confirmou. Não me contive novamente e pedi emprestado para anunciar aos meus amigos, a minha vitória daquele dia. Ele sorriu e me disse que usasse o quanto quisesse, mas eu não quis abusar e lancei uma nota pequena no facebook, e outra através do meu gmail.
Fui embora e junto do portal de boas-vindas da cidade, fotografei uma bela cascata. Como tem água, nessa terra...

Fiquei na Pousada Santa Vitória, e Dona Cleomar lavou quase toda a minha roupa. Visitei ainda a igreja local, onde uma senhora que passava, toda orgulhosa informou: "nossa bonita igreja, é a única do Brasil nesse estilo..."

Eu estava muito cansado e fui dormir cedo, não sem antes, bem agasalhado, pôr minhas anotações em dia...

Foram apenas 35,6 km, em 6 horas e 46 minutos. Queimei 7.939 calorias, subindo 1.449 metros acumulados. Eu estava muito feliz...

* * *

3 comentários:

  1. liindo!!!

    subir este paredão é motivo de muito orgulho!

    no próximo roteiro planeja prá descer, saindo cedinho em dia claro, prá pegar o sol nascendo !

    abraços

    Hila

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  2. Muito legal seus relatos, estas paisagens realmente são muito belas, como falasse, são aprx. 1500m de altitude em apenas alguns quilometros, duas regiões que estão tão próximas e são tão distintas.

    Abraço

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  3. Adorei essa parte: " não seria aquela coisa gorda"...

    O "estilo" daquela igreja deve ser estilo chapéu de bruxa.

    Impressionante as fotos, especialmente aquela das pedras caídas na estrada.

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