Pelas terras de Santa Catarina (dia 7)

Se você ainda não conhece a própria têmpera,

espere um dia de chuva e frio para experimentá-la...

Se conseguir partir, você não pára mais,

e a vitória estará assegurada...


Pelas terras de Santa Catarina (dia 7 – segunda-feira)
(Paulo R. Boblitz - 10/set/2012)

(Gravatal (Sítio do Vô Juca) – Guatá (Lauro Müller)

De madrugada eu já havia acordado com o ruidoso festival de tiros com que São Pedro deveria estar a comemorar alguma coisa, voltando a dormir ao sabor dos sons das diversas pingueiras lá fora, que pingam interessantes, em ciclos diferentes, em proporções desiguais...

De manhã acordei bem cedo debaixo de vários cantos, o do galo pelo meio, forte e vigoroso anunciando o dia.

Não cantam todos ao mesmo tempo; parece haver respeito no meio de tantas Línguas, o cantar somente quando o outro acaba - só o sapo que coaxava na hora em que queria, mas sapo não é passarinho...

Quando abri a janela, vi a chuva e as grossas nuvens, todas ali rondando perto de mim; seria um dia chuvoso e bem molhado, portanto frio...

Há uma beleza toda especial quando as nuvens se movem baixas; simplesmente elas rolam antevendo os movimentos de uma cascata, que mais tarde formarão já líquidas...

Elas não são apressadas, pelo contrário, desenrolam-se pela montanha, como à procura de lugares quentes, caindo porque são pesadas, trazendo o frio das alturas...

Pegarmos chuva já depois que estamos pedalando é uma coisa, mas sairmos debaixo de chuva, é outra completamente diferente. Simplesmente não tem graça, pior ainda quando você ainda frio, enfrenta lentamente uma subida... Cada pingo lhe alfineta, cada pingo lhe desrespeita, até que o fogo interno se alastre, produza o sal que escorrerá com o doce, fazendo-o provar do céu e do inferno...

Em pouco tempo você ganha peso, porque a água começa a se infiltrar em tudo aquilo que ela pode. Assim, se já estava difícil, fica mais ainda com tudo molhado e mais pesado...

Quentinho ouvia os pássaros trinando, talvez torcendo para que eu ficasse, mas eu sabia que tinha que ir. Levantei, abri a janela e o frio inundou a tudo. Peguei a toalha e o sabonete, pois era apenas uma questão de saber lidar. Abri o chuveiro e a água quente me fez carícias... Sorri, pois só eu sabia o que viria depois... Terminei de me ensaboar, abri novamente o chuveiro e a água gostosa tinha prazer em correr por mim, redonda e macia. Puxei ar para dentro, gritei Jerônimooooo!!!, e desliguei o quente... A água antes graciosa, tornou-se quadrada, pontiaguda, gélida com raiva, e eu comecei a cantar em grego, aramaico, alemão, russo, até em marciano, porque os lábios simplesmente não paravam quietos emitindo sons de motoserra com liquidificador...

Fechar a torneira do chuveiro foi como parar de dar marteladas na cabeça, e logo, como se estivesse com alto grau de Mal de Parkinson, buscava a toalha, mas até ela parecia gelada... Droga!!!

Enrolei-me na toalha e fui para o meu quarto; a janela ainda estava aberta. Nossa máquina é fabulosa e divina, porque em pouco tempo, já sentia um calor interno a me inundar, mesmo estando sem camisa. Chamo a isso de choque térmico, mas aconselho aos que nunca fizeram, que o façam em temperaturas amenas, devagar acostumando o corpo. É por isso que só gripo de 3 em 3 anos... Arrumei minha tralha, calcei os tênis, vesti minha camisa de ciclista e fui tomar o meu café. Atravessei pela chuva e os pingos me insultaram; sorri para eles, pois simplesmente não faziam mais efeito...

Tomei um café gostoso, arrumei minha tralha na bicicleta, com Dona Edite me falando que eu não podia sair daquele jeito, que eu esperasse mais um pouco, que eu saísse somente quando a chuva parasse. Lancei-lhe um sorriso, compreendi sua preocupação, mas aquela chuva, se é que eu entendia de chuva, não pararia naquele dia. Não havia outro jeito, pois eu não havia programado nenhum dia de folga que pudesse queimar. Virei para Seu Miguel e perguntei se ele podia me arrumar uma dose daquela sua Cachaça do Patrão. Ele sorriu e voltou com um copo quase cheio. Em dois goles a coloquei para dentro, montei e fui embora...

Esqueci que enquanto Dona Edite não terminava de preparar o café da manhã, Seu Miguel ensinava-me a jogar Bocha, um jogo muito interessante, algo parecido como um Bilhar no chão, mas sem as sinucas. É preciso estratégia e pontaria...

No início do caminho experimentei um pequeno trecho horizontal por debaixo das árvores, que ampliavam cada gota que me caía. Comecei a subir ainda frio, já todo molhado, agora com um pouquinho de frio, cada vez mais pesado... A subida só foi parar quando estava próximo de São Ludgero, a quase um raspão em Braço do Norte. Enquanto eu subia, o frio era controlado pelo esforço, coisa que não aconteceu quando comecei a descer, quando o vento cortante realmente nos mete a faca, roubando nossos calores. Ao aproximar-me de São Ludgero, o cheiro das criações de porcos inundou-me o nariz. O mundo inteiro fedia a bosta de porco; fedia tanto, que depois do almoço até esqueci de novamente ligar o GPS...

Na cidade, encontrei um restaurante e parei para almoçar. Completamente molhado e pingando, entrei apenas para servir-me, indo almoçar na área externa, onde o frio terminou de fazer a festa comigo parado. Meu roteiro, mesmo com a capa contra chuva, estava borrando, pois a água derretia a tinta misturando as letras. O dono do restaurante me arrumou um saquinho plástico transparente, que logo utilizei para isolar o roteiro da água. Paguei a conta e fui embora, e logo o pedal afugentava o frio novamente. Cheguei em Orleans, atravessei a ponte e fui seguindo o rio Tubarão serra acima até Lauro Müller, onde atravessei nova ponte sobre o rio Tubarão, caudaloso e barrento, agora o mantendo à minha esquerda.

Lá no alto, a serra do Rio do Rastro envolta em véus que lhe desciam as encostas até o chão, água em forma gasosa a navegar contornando um grande obstáculo rochoso e verde, a própria Serra Geral, abrupta, cheia de arestas, picos, vales, não mais indômita porque o homem a rasgou de baixo até em cima, em ziguezagues. Seria o meu desafio no dia seguinte... Por enquanto apresentava-me apenas sua alvura, que os elementos em conspiração, produziram tamanho manto que a tudo umedecia, a tudo escondia, a tudo baixava a temperatura, molhando qualquer alma que estivesse a qualquer profundidade...

Novamente as nuvens me mostravam que não somos daqui, pois que suas belezas nos remontam aos tempos em que tínhamos asas, não como Ícaro, mas como os Anjos que desafiam a Gravidade...

Eu estava parado a observar tamanha beleza crua, e o capacete me trouxe à realidade, pois distribuía seus pingos acumulados, água translúcida em lentes meio doces, meio salgadas. Montei e comecei minha subida...; faltavam ainda trezentos metros para cima, estratégia que utilizei para não subir os 1.400 metros num dia só. Meu amanhã, até o topo, seria só de 1.100 metros, números num papel, e papel aceita tudo...

De Lauro Müller até Guatá, foi um inferno de caçambas carregadas com carvão. Imaginei aquilo tudo me acompanhando até o topo, e descobri que necessitava de alguma estratégia, caso contrário eu não conseguiria subir, pois quanto mais eu me espremia para o lado direito da rodovia sem acostamento, mais as caçambas me espremiam para o vazio. Rezei pedindo proteção, e como se num passe de mágica, agora todos abriam afastando-se de mim. Vocês não acreditam, não é? Oquêi, algum ou outro ainda me tirava um fina, mas eu já estava seguro...

Absorto em meus pensamentos, eis que chego em Guatá, onde fiquei hospedado na Pousada Coan, onde jantei farto e gostoso.

Minha surpresa quando abri meus alforjes, foi a descoberta de muita roupa úmida. Os alforjes da Arara Una não fazem milagres, afinal foram 6 horas e 12 minutos de muita água, de cima a cair, e de baixo a subir. Ali descobri que não podemos dar moleza para a água, que se infiltra sem modéstia e sem consideração, por qualquer brecha que ela encontre. No caso, o que houve foi capilaridade, um efeito que vence até a Gravidade. Estendi aquilo que pude estender, não lavando nenhuma roupa nesse dia. Desci e arrumei algumas sacolas plásticas. Daquele dia em diante, tudo o que era meu e não podia molhar, andaria dentro de bolsas plásticas. É o que eu chamo de não dar sorte para o azar. Ainda peguei outras chuvas pelos vários dias do caminho, inclusive no meu último dia chegando novamente em Florianópolis. Nada mais ficou úmido...

Fui dormir com a esperança de que durante a noite, alguma coisa seria processada para resolver o problema das caçambas, e de fato foi. Acordei com uma boa idéia, com as roupas ainda úmidas, com a disposição impecável, pois que somos nossos principais inimigos...

Nesse dia extremamente molhado, foram 49,2 km, em 6 horas e 12 minutos, queimando 4.840 calorias, subindo acumulados 1.262 metros...

* * *

2 comentários:

  1. É isso: mesmo com alforges impermeáveis, sempre coloco as roupas em sacolas plásticas. Com isso, já caímos até dentro de riacho, sem molhar as roupas ensacadas. Abraços.

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  2. KKKKKKKKKKKKKK
    me mijei de rir com tua narrativa do banho espanta-frio. lembrei de mim em situações semelhantes.



    abraços

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