Pelas terras de Santa Catarina (dia 6)

Pensarmos numa coisa e encontrarmos outra,

só a experiência, a vivência, nos possibilita,

tamanho sabor, diferente a cada um...


Pelas terras de Santa Catarina (dia 6 - domingo)
(Paulo R. Boblitz - 9/set/2012)

(Laguna (Hotel Renascença) - Gravatal)

Embora uma boa distância, eu considerava que esse dia seria ameno, e de certa forma foi. Faltando 2 minutos para as 9 da manhã, montava e começava a pedalar numa fria manhã, pela orla vazia... O céu estava bastante nublado; talvez chovesse naquele dia...

Segui o roteiro que me mandava dobrar quando encontrasse o canal. Dali em diante deveria ficar esperto para não perder a visita à casa de Anita Garibaldi, e ao Marco do Tratado de Tordesilhas, aquela linha imaginária e histórica que os brasileiros nunca respeitaram, empurrando-a para Oeste até onde hoje situam-se nossas fronteiras. Perguntando a um e a outro, consegui chegar na casa de Anita, heroína de dois mundos, cuja História é muito bonita, embora tenha morrido na flor da idade, com apenas 28 anos.

Encostei minha amiga debaixo da placa de bronze que informava a Casa de Anita, e bati-lhe uma foto. Quando coloquei a perna soleira adentro, escutei:

- Dois e cinqüenta por cabeça..! - a mocinha atrás da mesa, era apressada...

Virando-me para ela, sorri e agradeci, dei meia volta e fui embora... Coitada da Anita; foi para isso que ela serviu?

Ao lado existe a igreja matriz de Santo Antonio dos Anjos, construída em 1696, portanto nada tendo a ver com Anita, que só nasceria em 1821. Dali segui em busca do Marco do Tratado de Tordesilhas, que deveria ficar numa praça maior, onde a ênfase pertenceria ao monumento histórico que teve como mediador da questão entre Portugal e Espanha, o Papa Alexandre VI. Quem passa por ali, e eu havia passado no dia anterior, não faz idéia do que está a perder, do que está deixando de conhecer. Em minha infância quando vi pela primeira vez aquele desenho de uma linha imaginária, não podia imaginar que algum dia ela pudesse ser materializada num exato ponto geográfico, e o ponto era aquele...

Estava gostoso de pedalar, ventinho frio, Seu Sol de folga, afinal estávamos num domingo, e rápido cheguei novamente na ponte das Cabeçudas, novo inferno a ser enfrentado, pois que se na cidade não havia movimento, na estrada estava um carro atrás do outro. Descobri que meu inferno nesse dia seria menor, pois ao contrário do lado de quem entra para Laguna, que tem zero de acostamento, deste lado para quem sai, o acostamento ia até a ponte propriamente dita; meu inferno de hoje teria apenas 400 metros.

Devagar fui me aproximando e quando notei uma brecha, acelerei, fiz sinal para esquerda e entrei, posicionando-me novamente no meio da pista. O Corolla preto achegou-se, fiz-lhe um sinal de positivo com o polegar esquerdo, ele me deu duas buzinadas e conteve todo o comboio. Desta vez as minhas pernas estavam em ordem e consegui manter os 38 km por hora; faltando 20 metros para a ponte terminar, já avistando o acostamento que se aproximava, sentei, deixei a bicicleta correr na banguela, ergui o polegar esquerdo agradecendo e saí do meio. Recebi novas buzinadas como cumprimento, e mais outras de alguns carros que vinham logo atrás. Parei e recuperei o fôlego, pois iniciava-se uma subida.

Quanto mais eu me enfurnava sertão adentro, mais ia vendo os novelos de lã acinzentada pairando sobre as serras; aquilo só queria dizer uma mensagem: as coisas estavam caminhando para algo mais sério...

E era para o meio dessa seriedade, que eu estava indo...

A beleza pouco se importa com os acontecimentos, porque são os nossos olhos que a enxergam... Não entrando no mérito das desgraças, qualquer fúria da Natureza, é linda e singular... As nuvens pareciam lamber os cumes, e vez ou outra lançavam seus braços como vírgulas, em carícias pelas encostas... Talvez seja por isso que somente nós, paramos e nos quedamos observando tudo aquilo que achamos que tem beleza, pois estamos sempre protegidos. Aos outros animais, restam as tocas, as folhagens mais espessas, porque quando a Natureza resolve agir, ela simplesmente não tem pena. Sim, somos privilegiados, os únicos que à superfície, valem-se de processos engenhosos de proteção, enquanto todos os outros, encolhem-se, enroscam-se, escondem-se, pois contam apenas com os agasalhos naturais com que nasceram...

Somos os únicos a vermos beleza, naquilo que todos os outros enxergam apenas terrores...

Que meus todos amigos Ateus me perdoem, mas todos vocês estão errados...

O caminho até Gravatal foi sem novidades, até mesmo na fome do tipo cavalar que nos acode, e eu já estava calejado nesse negócio de ficar sem almoço. Assim, antes de pegar o caminho para o Sítio do Vô Juca, tratei de procurar lugar onde almoçar, só no Termas de Gravatal, hotel de luxo, mas o almoço era baratinho. Gastei entre ir e voltar, 5 km a mais em meu roteiro nesse dia, estabeleci as devidas diferenças entre meu hodômetro e as marcas do roteiro e segui em frente.

A Matriz de Gravatal é diferente, possuindo uma bateria de sinos que deve ser interessante e bonito quando tocando. Estava fechada e não pude ver os vitrais pelo lado de dentro, deixando a luz passar. Passei pelo Memorial de Santa Paulina, atravessei pequeno riacho e comecei a subir o morro onde ficava o Alambique do Vô Juca, quando relâmpagos começaram a traçar o céu sobre minha cabeça. Era um atrás do outro, e minha subida só ficava mais íngreme, impossibilitando-me de um maior progresso. Particularmente não gosto de grandes voltagens passeando sobre minha cabeça, estando eu montado sobre metais, pois os pneus são finíssimos se comparados com a massa toda. O jeito era rezar e tocar para a frente.

Mais um pouco a chuva começou devagar, aumentando com o passar do tempo. Guardei a máquina fotográfica e continuei. Em 5 km, subi 250 metros, metade debaixo de chuva e de relâmpagos, mas logo encontraria o portal acolhedor, onde já estaria em casa e poderia relaxar, porque tudo o que eu queria era sair da chuva, do frio e das descargas. Aquela subida em dia limpo, deve ser alguma coisa sensacional, pois as vistas, mesmo envoltas em névoas, eram de tirar o fôlego. O conjunto de curvas, árvores, pedras gigantes desafiando a Gravidade, como sentinelas cuidando do vale que guarda sua pequena igreja. À medida em que subo, também me acompanha o riacho que vive a teimar com as pedras, em eterna discussão, até que um dia, debaixo de fortes torrentes, faça alguma rolar...

Gravatal lá embaixo como se fosse de brinquedo. Foi difícil guardar a máquina fotográfica, mas outras visões ao longo do caminho, com certeza também me encherão de pensamentos, pois que somos os únicos a sentir prazer diante de algo tão maravilhoso e majestoso. Todo o restante da vida em nosso planeta, apenas olha para a comida...

Dona Edite e Seu Miguel aguardavam-me na varanda, pois o pequeno cão já havia me anunciado aos quatro cantos. Fui para a varanda também, saindo da chuva, e logo desancava minha tralha. Indicaram-me a pousada, toda de madeira e antiga, do tempo dos avós de Seu Miguel, daí o nome do Vô Juca. Enquanto Dona Edite arrumava as roupas de cama, Seu Miguel descia comigo até o andar de baixo da pousada, onde ficava o Bar. Molhado e com frio, fui aceitando cada amostra de licor e de cachaça, e já estava mesmo ficando alegre, pois que há muito, aquela subida havia consumido o meu almoço. Por fim, deu-me um pequeno cálice para que eu experimentasse do seu Campari.

- Mas é Campari! - informei virando-me para ele.

Seu Miguel, contente e orgulhoso por ter-me enganado, fez que não e me disse que era cachaça com Losna. Dia seguinte eu levaria de presente, uma garrafinha de licor de laranja, o que mais havia gostado. Ele explicou que usa a laranja, com casca e tudo, inteira, como se fosse uma rolha para o vidro de boca larga, onde a cachaça irá aspirar toda a reima daquela fruta. Busquei o significado de reima no dicionário, e tem a ver com os humores, portanto, sem corte algum, a laranja acaba cedendo seus ácidos e aromas à cachaça.

Rindo à toa com tantas experimentações, achei que aquilo que eu via era um pé de café. Seu Miguel confirmou e me disse que aquele pé era para os passarinhos. Estranhei, porque na minha cabeça, café é algo amargo. Novamente ele sorriu e pediu que eu pegasse um frutinho maduro, dos vermelhos. Em expectativa aguardava que eu fizesse algo, mas não fiz, porque eu não sabia o que fazer. Com a mão ele imitou colocar o fruto inteiro na boca, e o imitei também. Jamais me passaria na cabeça que o café maduro fosse uma frutinha tão doce...

Notei uma porção de cabaças penduradas uma ao lado da outra, e de metro e meio, em metro e meio, apenas uma continha uma abertura. Perguntei o que era aquilo e ele me respondeu que era para os passarinhos virem fazer ninhos. A distância entre aberturas, estabelecia uma espécie de território, para que cada passarinho, da mesma ou de outra espécie, não se sentisse ameaçado, não precisando nesse caso, brigar por território.

Seu Miguel tinha simplesmente gaiolas a céu aberto, e nas épocas de acasalamento, uma verdadeira festa de cores e cantos, tudo em liberdade, onde cada pássaro decide a hora de vir e de ir.

Antes que ficasse bêbado, subi e fui tomar um banho, vestir uma roupa seca para poder jantar o que Dona Edite preparava, um frango caipira ensopado, costelinhas de porco, couve cortada em tirinhas ao vinagre, folhas de alface lisa também ao vinagre, arroz, uma farofa gostosa, e o que mais apreciei, uma polenta feita com milho moído na pedra, tudo criação e plantação dali mesmo. Ao sentarmos para jantar, Seu Miguel virou-se para mim e disse que iria me dar uma "cachaça do patrão", aquela que ele guarda especial num pequeno alambique escondido na despensa. De fato, era diferente de todas que ele havia me dado para experimentar. O cheiro era suave como se fosse um bom perfume, e o sabor, ah..., esse não ardia e permanecia por algum tempo a impressionar nossas papilas.

A Cachaça do Patrão estimulou o apetite e comi com gosto, com prazer, nem me importando com os trovões que lá fora, já noite, ribombavam sem pudor...

Já de volta ao meu quarto, passando pelos corredores, tudo rústico em madeira, o assoalho antigo range cantando passados, cada tábua com sua nota em que os pregos as esticam... Minha janela abre para o telhado; as telhas de barro iniciam quase no peitoril, onde cada gota brilha diferente ao passar pelos raios de minha luz. Lá fora na escuridão, a chuva se mistura aos sons de sapos e jias, e de cada folha a receber seus pingos. O frio aproveita a brecha e se insinua janela adentro. Fecho a janela e vou escrever um pouco...

Lembrei de Dona Blanda em São Martinho, que perguntou se antes de eu morrer, eu voltaria? Respondi que sim; no Sítio do Vô Juca, também...

Foram 58,5 km até ali chegar, em 6 horas e 20 minutos de pedal, 3.513 calorias derretidas, 936 metros em subidas acumuladas; um dia bem gostoso...

* * *

2 comentários:

  1. muito lindo!

    quando falaste do sítio do vo juca pensei que era um amigo teu kkk.
    olhando as fotos do interior da pousada, tudo de madeira, deu vontade de ir.
    vou aproveitar algum feriadão prá ir lá. peguei o link
    http://www.acolhida.com.br/destinos/gravatal/sitio-vo-juca.html

    só nào vou poder provar todas as bebidinhas hehe

    admirável a integraçào deles com a natureza!




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