Pelas terras de Santa Catarina (dia 15)

Quão distante, um dia sonharam,

nova vida, para mais distante ainda...

Largaram tudo, bens, amigos e famílias,

e começaram do zero, em terras estranhas...


Pelas terras de Santa Catarina (dia 15 – terça-feira)
(Paulo R. Boblitz - 18/set/2012)

(Rancho Queimado (Pousada Bauer) - São Pedro de Alcântara)

Acordei com o barulho de Dona Olga pela casa, logo bem cedo, lá pelas 6 e dez, com o dia calmo e claro. Com aquela força toda de ontem, o vento havia empurrado tudo para bem longe. Tomei meu banho e descobri um cheirinho de café que me ia buscar onde estivesse. O pão caseiro, o fui comendo com geléia de Physalis, uma frutinha que já vem embalada pela própria Natureza, azedinha, muito rica em vitamina C, experimentando também as de mamão e amora, mas o que mais gostei foram os dois ovos mal passados, das gemas bem vermelhas.

Dona Olga me contou que tinha ido "pescar" o varal que havia voado com todas as roupas, lá na lagoa, onde muitos peixes as estavam abocanhando pensando que seria alguma comida diferente. Felizmente as minhas roupas haviam sido estendidas no lado protegido, pois do contrário, eu as estaria agora também pescando, com cheiro de peixe pelo meio.

Montei às 8 e meia da manhã, clara e bastante iluminada, de um dia que eu achava que seria fácil. Não foi, pela quantidade de poeira que cheirei e engoli, mas o pedaço é muito lindo e cheio de tradição.

Peguei o rumo de Rancho Queimado, mas antes de chegar na Praça, enveredei pelo caminho de terra, contra a vontade de uma senhora alemã, que teimava e insistia que eu deveria ir pelo caminho mais adiante, asfaltado e mais fácil. Angelina seria meu próximo destino, ali onde Hila havia me falado tão bem de uma pousada das freiras, mas que eu deixaria para conhecer em outra ocasião.

À minha direita, um rio muito conversador, tal qual meu bagageiro que nem lata velha, a cada pedra ou buraco, reclamando. Acompanharam-me, não apenas ele o bagageiro, mas os vários rios que se foram revezando hora à esquerda, hora à direita, numa prosa incansável de águas e pedras que nunca chegam a lugar algum.

No início uma descida, controlada, fotos e mais fotos, pois que até chegarmos em Angelina, tudo é muito bonito. Como não existem facilidades que não dêem lugar às dificuldades, logo uma subida longa começa, e com ela a poeira, que me acompanharia até São Pedro de Alcântara. A subida termina e logo inicio uma boa descida, também controlada, porque tudo está ali há muito tempo: casas bem cuidadas, cheias de flores, o passado não muito distante, preservado...

Uma linda casa parece em ruínas e desabitada, mas as cortinas desmentem o pensamento. O trabalho e requinte na decoração daquilo que quase já não tem cor, remonta aos tempos áureos em que ela foi levantada, resistindo até hoje aos tantos insultos que cada caçamba deve lhe lançar... Tudo nela é bem desenhado, bem talhado; apenas aprendeu a conviver com a poeira, essa que se aproveita dos grandes pneus e tenta deixá-la feia.

Na torre da igreja, o João de Barro sai e me cumprimenta, e lhe devolvo um sorriso; ele entra em sua casa novamente, pois tem coisas mais importantes a cuidar, e eu estou somente a passear... Dou-lhe razão e vou embora, afinal outras belas casas estão a me aguardar, todas frutos do empenho, do prazer em tornar o lugar onde se vive, bonito com flores e decorações, pois cada reino é dirigido por uma rainha diferente, aquela do lar...

Foi um dia em que muitos amigos me cumprimentaram, como as ovelhas que ocupadas apenas gritaram Bééé´!, continuando a comer, como a vaca magra que me veio ver, chamando depois a amiga para não perder...

Foi um dia de muitas vistas bonitas, porque no campo não existem grandes formatos, porque o formato é simples e ao mesmo tempo grandioso, onde as vidas se entrelaçam e vivem o drama do dia-a-dia, quando o galo anuncia o trabalho, e o pôr do sol o descanso...

Angelina estava a apenas 11 quilômetros, os 11 quilômetros mais demorados que já percorri, não propriamente pela dificuldade da subida, mas por conta das tantas belezas que me obrigaram a parar para registrar em minha boa máquina...

Lembro que lá pelo meio da subida, íngreme e cheia de pedras soltas, eu estava a andar pelo trilho de alguma roda dos carros grandes. Nisso me vem descendo um pequeno caminhão, acho que da marca Ford, azul, seguindo os trilhos porque ele não era bobo, mas ele descia, enquanto eu subia bufando, a minha ladeira. Não arredei pé do meu caminho, pois havia muito espaço para ele, e quando estávamos próximos, algo em torno dos dez metros, olhei para ele com a cara mais feia que pude fazer, fazendo-lhe sinais que me saísse da frente. Ele pisou no freio, abriu para a direita dele, deixando-me o caminho livre, logo ele com quatro rodas, descendo numa boa, não podia trafegar dois ou três metros pelas pedras soltas?

Se desceu me xingando, eu não sei; só sei que não deixaria que me matasse a subida, pois existem pontos que se colocamos os pés no chão, perdemos tudo, desde a concentração, até o próprio apoio que o terreno vem precariamente nos fornecendo. Subi a ladeira inteira, não sem antes enfrentar uma parelha de cães que veio furiosamente sobre mim, o que até achei engraçado, pois correram pelo menos uns 300 metros desde lá de baixo da propriedade, subindo até se aproximarem de mim, com os caninos mais pavorosos que podemos encontrar.

Eu tomava conta deles enquanto corriam pela propriedade, e no momento em que pisaram na estrada, os vi pelo retrovisor; eles sempre vêm pela retaguarda. Deixei que se aproximassem até uns 20 metros e então parei bruscamente, sentindo-lhes também uma parada brusca, pois algo não estava a sair conforme os planos daqueles dois filhos de uma égua, ou de duas éguas... Voltei-me para eles com a bicicleta empinada e lhes lancei o latido mais horrível que pude encontrar, que sinceramente até eu fiquei surpreso com tamanho eco que produziu, pois que minha raiva desceu, creio pela montanha abaixo, e satisfeito, morrendo de rir, observei os dois abestados correndo ladeira afora.

Livrarmo-nos dos cães é de certa forma fácil; o problema é que eles nos matam as subidas... O esforço que despendemos para a retomada, não seria necessário se esses cães estivessem em suas propriedades, mas eles teimam em achar que as estradas são também seus territórios, e quem acaba pagando pela energia extra, somos nós. Lembre-se: todo cão se sente em desvantagem quando você coloca os pés no chão, quando ele vê que você não está a fugir dele, pois que essa é a estratégia dele. Pior ainda é quando você empina a bicicleta, e o conjunto todo se transforma em verdadeiro monstro de pés e rodas, grande e desajeitado o suficiente para colocá-los em pânico. Se o cão for determinado, aí sim mostre a ele que acabará se metendo numa grande confusão, pois a bicicleta estará entre ele e você...

Lá no topo enxerguei talvez o mais belo par de torres; lá estava Angelina, e agora era só descida. Almocei num gostoso e confortável restaurante, onde comi muito bem, peguei a sobremesa de pudim, e chupei dois sorvetes de chocolate branco. Dali parti para conhecer a gruta de Nossa Sra. de Angelina, subindo o morro por trás da igreja, onde um pequenino cão encrenqueiro latia para mim, corria à minha frente para novamente me insultar, assim fazendo até chegar lá em cima, onde parou e finalmente veio me cheirar. Antes de entrar no caminho da gruta, um senhor do alto de seu alpendre, me vendo parar para fotografar a igreja, aproveitou e me perguntou de onde eu era, de onde eu vinha...

- A gruta..! Visite a gruta...

Lancei-lhe um sorriso e fiz que sim, e ele satisfeito continuou a se balançar na cadeira que ia e vinha, sem sair do lugar, pois lugares ele deveria ter conhecido pela vida inteira, hoje orgulhoso da Santa que devia venerar...

Depois de uma boa subida, passando pelas 14 Estações do Martírio de Jesus, culminando com a décima quinta estação, quando ressuscitou, finalmente cheguei até a gruta onde jorra a água de uma fonte, que muitos a bebem pedindo graças, mas as graças que eu havia por Lhe pedir, não tinham nada a ver comigo, e assim deixei a água de lado, apenas orando. Nas paredes, centenas de placas em agradecimento às tantas graças alcançadas. O pequeno cãozinho encrenqueiro lá estava agora quieto, talvez entendendo que o momento seria solene e de prece...

Angelina foi um breve descanso, porém faltavam ainda dois bons topetes a serem subidos, e depois somente a descida até São Pedro de Alcântara, uma longa e gostosa descida, não fosse a constante poeira a nos engasgar. Passo por uma linda igreja, que nos mostra suas mensagens em alemão e português.

Até chegar em São Pedro, o passado foi de novo se apresentando, às vezes bem cuidado, às vezes descuidado, mas estava tudo lá, de pé. Já perto de São Pedro, os bairros com seus nomes foram aparecendo nas placas sobre nossas cabeças; só não entendi o que seria, nem o porquê do nome do bairro ser Campo de Demonstração, mas eles deviam ter suas razões.

Chegar em São Pedro foi muito gostoso, pois que vi a cidade toda enfeitada com o preto, vermelho e amarelo da bandeira alemã, pois estavam comemorando a Oktobertanz, que aconteceria nos próximos dias 22 e 23 de setembro. Estranhei o oktober, pois ainda estávamos em setembro. Depois fiquei sabendo que o oktober referia-se à abertura da temporada dos festejos de outubro, por isso a festa era realizada no final de setembro, que traz muita gente dos municípios vizinhos, inclusive de Florianópolis. Foi uma pena não ter participado daqueles dois dias onde acontecem jantares-dançantes, comidas típicas, desfiles oficiais, danças típicas, competições, muito chopp e diversas bandas apresentando-se.

Permitam-me apresentar um linque que bem descreve toda a alegria: http://www.youtube.com/watch?v=4fNe6QcF7Yw

Logo na entrada, a Árvore da Primavera, um poste de madeira gigante, e pendentes em galhos de aço, cada brasão de cada família que ali chegou em 1829, para uma nova vida de muito trabalho e suor, pois tudo ainda necessitava ser desbravado, ser limpo e plantado com as sementes que haviam trazido de sua terra natal. Com certeza, não foi nada fácil levar 5 meses atravessando o Atlântico, para depois enfrentar a selva da Mata Atlântica, suas chuvas e seus frios, pois que tiveram que começar do zero... Por certo, tiveram muitas razões para amar nossa terra, pois que a cuidaram, a cultivaram, a construíram, e hoje seus descendentes perpetuam esse amor...

A Colônia Alemã, como assim foi chamada no início, teve tudo para ser um desastre, por falta de estrutura do próprio governo que os recebera sem estar pronto para isso. Para quem tiver um interesse maior, vale uma visita ao endereço: http://www.tonijochem.com.br/col_saopedro.htm

Próximo da Árvore da Primavera, uma homenagem aos primeiros imigrantes, estátuas representando o pai com a enxada, o filho menino que já o ajudava, a mãe que está a segurar uma menina no colo; no plano inferior, uma criança que ainda devia engatinhar, dentro de um cesto de vime, e aos pés do pai e do menino, um cão que deve ter sido a alegria da meninada. Contaram apenas com seus braços, suas tradições, enfrentando um mundo novo...

No centro da pracinha, uma bela árvore a também contar muitas histórias que viu passar. De frente para a igreja, a casa de Dona Dalva, que tão bem me recebeu, improvisando um jantar que ficou muito gostoso. Nos postes de eletricidade, circundaram-nos com as cores da Alemanha, integradas com as do Brasil, ou seja, o preto, o vermelho, o amarelo e o verde...

Falando em cores, eu estava marrom de tanta poeira. Conversei com Dona Dalva e ela jogou tudo dentro da máquina. Eu chegaria em Florianópolis com tudo limpinho e cheiroso.

A igreja de São Pedro de Alcântara é muito bonita e domina a cidade inteira. Ela já foi cor de rosa, e hoje é cinzenta. Seu interior é bem cuidado e a porta estava apenas encostada. Mexi na maçaneta e aquela prancha enorme começou a deslizar sobre um rodízio; olhei para o chão e não vi marcas...

Seu interior é simples, mas nem por isso deixa de ser belo e elegante, sóbrio com farta iluminação natural e excelente ventilação. Sua abóbada é em azul celeste, culminada por oito vitrais. A madeira nobre dá o tom marcante com muita personalidade, ao altar, ao púlpito, aos santuários menores, ao piso que se intercala em cores claras e escuras.

Ali agradeci tudo de bom que me acontecera durante meus dias pelas terras de Santa Catarina, e fui dormir pensando no meu amanhã, que enfim chegaria ao fim...

Quando saí e fechei a porta, notei a mariposa que não estava lá quando entrei; tinha a mesma cor da rosácea que enfeitava a madeira, duas manifestações simples, uma da Natureza, outra de homens artesãos...

Foram 50,1 km muito bonitos, em 7 horas e 49 minutos, queimando 7.493 calorias, onde subi acumulados, 995 metros.

* * *

Um comentário:

  1. que bom que tu gostaste dessa região de rancho queimado, angelina e são Pedro. É a região que mais gosto na grande Florianópolis e não me canso de pedalar por estes lugares e sempre recomendo a quem me pergunta sobre passeios de fim de semana.

    abraços
    hmm..fiquei no desejo da geléia de fisalis

    hila

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