Pelas terras de Santa Catarina (dia 10)

Acho que no Céu é cheio de nuvens,

a paz é silenciosa,

os pensamentos são ruidosos...

Assim como o Sol ofusca a vista,

o nevoeiro esconde os horizontes,

e os sentimentos afloram...


Pelas terras de Santa Catarina (dia 10 – quinta-feira)
(Paulo R. Boblitz - 13/set/2012)

(Urubici (Pousada de Dona Celia) - Morro da Igreja)

Acordar cedo nesse dia não foi problema, embora o cansaço estivesse ainda visível, pois não há quem consiga continuar dormindo quando as Curucacas estão por perto conversando e fofocando. Pássaros grandes, com grandes bicos retorcidos para baixo, acompanharam-me desde Bom Jardim da Serra, hora convivendo com o gado, hora socializando-se nos telhados por onde eu passava.

Iguais a elas, lembro apenas das araras lá no Amazonas, que logo cedo e ao final da tarde, produziam semelhante algazarra...

Tomei um banho, me arrumei e encontrei o café da manhã bem farto sobre a mesa. Havia pelo menos uns três tipos de geléia, alguns pães de forma variados, bolos, suco, banana, leite, café forte e amargo, e dois tipos de mel, gelados para passarmos no pão, além da tradicional nata e a própria manteiga. O mel comum, ou seja, das floradas comuns, estava cristalizado pela temperatura, mas o mel bem escuro, este estava apenas mais um pouco consistente do que se estivesse à temperatura normal. Provei dos dois, mas apeteceu-me mais o mel escuro, que é o conhecido mel da Bracatinga, uma árvore típica de Santa Catarina que, quando atacada por brocas, de dois em dois anos produz uma seiva ou resina que lhe escorre pelo tronco, talvez como defesa, bem doce que atrai as abelhas. O mel é considerado medicinal, e até os diabéticos dele podem utilizar, pois não faria mal.

Provei e o achei bem característico, sabor de muita personalidade, leve sabor de carvão, delicioso e diferente. Experimentei a geléia caseira de kiwi de Dona Celia, azedinha, também muito saborosa. Comentei que nossos kiwis lá no Nordeste não tinham um sabor bem definido, e ela descascou uns dois para que eu comesse. Não tinha nada a ver com os que comemos lá por cima, e ela me explicou que são arrancados ainda verdosos para o transporte.

Recolhi minha roupa sequinha do varal de Dona Celia e terminei de me arrumar. Fiz questão de bater uma foto com ela, bastante simpática e hospitaleira. Quem passar por Urubici, não tenha medo de lhe bater na porta, porque o conforto é muito bom, e a acolhida melhor ainda.

Faltando 10 minutos para as nove, parti para o Morro da Igreja. Nesse dia não era necessário seguir o roteiro, pois que a entrada estava bem sinalizada. O início é plano e logo experimentamos algumas descidas, mas logo retornando ao nível anterior, até que um leve aclive nos leve até a entrada do Morro da Igreja, lá onde fica a antena do CINDACTA II, o ponto mais alto do sul do Brasil. Enquanto não começava a fazer força, o frio tomava conta e fazia a festa, e eu tremia...; navegava por volta dos 900 metros de altitude.

Meu hodômetro lentamente ia chegando na marca dos 12 km, onde iniciaria meu segundo bicho papão do passeio, subir pouco mais de 900 metros, praticamente uma ladeira só. O plano era deixar os alforjes na Pousada Cabanas Cascata Véu de Noiva, cerca de dois terços do caminho já subido, onde eu almoçaria e subiria mais leve.

Passei por uma placa que indicava a Serra do Corvo Branco, outro destino lindo que dali a dois dias eu conheceria. Noutra direção, indicava o Rio dos Bugres, que por mim seria cruzado já bem próximo de Santa Rosa de Lima, depois que eu descesse a Serra do Corvo Branco. Apesar do sol bonito, o topo das montanhas estava sob nuvens; isso só queria dizer uma coisa: frio e nada de paisagens...

Cheguei na marca tão ansiosamente esperada e dobrei à direita, iniciando a subida. Quando já havia vencido quase 100 metros, um carro que descia me fez sinal e parei:

- Não suba...; lá em cima só tem chuva e nuvens... - disse-me, querendo poupar-me do esforço.

- Vou tentar a sorte... - respondi-lhe sorrindo, e ele me desejou uma boa subida. Estava com a esposa e a filha. Olharam para mim, saudaram-me e foram embora. Eles não entendem que não procuramos facilidades, mas sim o prazer de conquistar caminhos...

Parado aproveitei para tomar um gole d'água, enxugar o suor do rosto e consultar meu GPS, e pensei: já vi muitas fotos da Pedra Furada, e a que eu batesse, não seria muito diferente das já conhecidas, mas subir até onde eu pudesse nesse morro, seria a primeira vez, e eu subiria, com chuva, com sol, com nuvens ou com frio. Eu subiria...

Foram duas horas até eu chegar na Pousada Cabanas Véu de Noiva, onde dois cães enormes e um pequetito me recepcionaram, aos latidos amigáveis, pois que os rabos balançavam. Desci da bicicleta e os dois maiores vieram me cheirar, enquanto o menorzinho, metido a encrenqueiro, continuava injuriado, mas, vendo que os dois maiores não davam mais bola, aquietou-se e me seguiu.

Encostei a bicicleta na varanda de madeira, e logo o que mais tarde conheceria como Piá, veio recepcionar-me.

- É o Seu Paulo? - perguntou.

Fiz que sim com a cabeça e ele me informou que a patroa estava enganada achando que eu só chegaria no dia seguinte, mas que ele havia visto a data certa na agenda, e era hoje.

- Pode entrar que o almoço está gostoso...

Era um restaurante amplo, com mesas grandes, algumas pequenas e individuais, e lá dentro várias pessoas, um grupo de Oficiais da Força Aérea, um grupo de jovens, e um casal. Cumprimentei a todos e fui me assear, passar bastante água na cabeça, lavar o rosto e as mãos; não imaginam como é gostoso baixar o fogo...

Enquanto comia, o grupo de jovens demonstrou interesse no que eu iria fazer, no que informei que após o almoço, subiria. Aproveitaram para me dizer que lá em cima fazia muito frio, e passava uma leve garoa também. Agradeci e continuei a comer.

Terminado o almoço, Piá levou-me até minha cabana, onde deixei tudo o que podia deixar, mantendo apenas as caramanholas, a bolsa de guidão, e prendendo no bagageiro, um agasalho para chuva. Antes que a preguiça me tomasse, montei e segui para o topo. A subida inteira, desde lá de baixo quando abandonei a rodovia, me consumiu 5 horas e 14 minutos, para chegar nos 1.869 metros. Foram 970 metros para cima, o meu segundo dia a pedalar por entre as nuvens. Em termos de subida, considerei-a mais difícil que a da Serra do Rio do Rastro. Em termos de belezas, não chega aos pés da do Rio do Rastro, porque ela é muito objetiva, muito reta por ter tido o espaço necessário, enquanto a do Rio do Rastro foi obrigada a sair rasgando a rocha das encostas, mostrando-nos seus precipícios formidáveis.

Todos os avisos infelizmente estavam corretos, e as nuvens logo me encobriram, e mais um pouco a umidade me tomava conta, como se no meio de uma fina garoa. Guardei a máquina fotográfica, tirei os óculos escuros, liguei as sinaleiras, desta vez em cada lateral do bagageiro, e fui subindo devagar, como se num balão, lento e para cima a caminho do céu. Alguns carros passavam por mim, e logo os via descendo, sinal de que lá em cima não havia nada para ser admirado.
São esses momentos que puxam pelas nossas razões, e deles sempre me admiro, porque às vezes, a paisagem nos diverte, nos atrapalha quando de nossas conversas particulares, pois que nos desvia a atenção, e acabamos perdendo, também, instantes preciosos e singulares, quando poderíamos olhar para dentro, nessa imensa Catedral de Deus.

Se olhar para os horizontes não adiantava, então sobrava olhar para o pneu dianteiro, cambaleante que devagar vencia cada metro, quando olhamos e não enxergamos, por ser o filme de quadros iguais, a mesma imagem que se repete a nos hipnotizar, o mesmo som a se arrastar, como se um mantra de uma nota só... Foi um silêncio gostoso, apenas quebrado vez ou outra pelos carros que me cruzavam, como que a me acordarem do sono diligente, pois não havia vento, apenas a brancura a me envolver...

Estava num outro mundo, sem barulhos de águas, sem pássaros, a vida bem distante e bem abaixo, e vez ou outra os robôs metálicos de quatro rodas, modificavam minha atitude...

A Oração costuma sair linda, porque simplesmente comungamos com a Natureza que nos cerca...

Nossa conversa é em linha direta com o Pai, a Quem pedimos e agradecemos, porque o Templo, simplesmente não é terreno, não foi construído pelo homem. As nuvens nos transmitem a imponderabilidade, porque nos envolvem com seus véus, e somos só nós, com os nossos próprios mistérios...

Andar ou pedalar por entre as nuvens, não pertence a este mundo de concretos e asfaltos, sinais e placas, instruções e convenções; nos transpõe para outro nível, nos eleva relembrando que não somos daqui, e que um dia voltaremos à casa do Pai...

Passear de carro, trem, navio ou avião, não deixa de ser gostoso, mas andar ou pedalar, nos encosta ao chão, nos relembra de nossa pequenez, de que nossas asas há muito tempo foram cortadas, que a Gravidade nos domina, que o Tempo nos controla, que a noite nos escraviza, que o dia nos cobra o pedágio... Andar ou pedalar por entre as nuvens, simplesmente nos aviva a memória, nos diz que somos especiais...

Este seria o último dia em que experimentaria minhas raízes, há muito perdidas e esquecidas pelo ter que viver e cuidar da vida, eu no grande palco natural, apresentando-me para mim mesmo, ao som de minhas reflexões, envolvido pelo fog que percorre a arena...

Parei no portão do CINDACTA II, onde a entrada é proibida, mas um soldado veio até do lado de fora e me fotografou três vezes. Na descida, o frio cobrou passagem e vesti o agasalho, mas foi o mesmo que nada, pois o vento nos rouba tudo quanto é de calor. Enquanto descia, vi um casal estacionado com o pisca-alerta ligado. Parei e perguntei se havia algum problema. Eles informaram que era pneu furado, e que não estavam conseguindo abrir a tampa da mala. Sorri lembrando de minha esposa, pois que a mala dela tem o mesmo problema. Encostei a bicicleta, peguei a chave e com paciência fui experimentando cada ângulo na fechadura, e logo ouvia o pequeno estalo, abrindo. Perguntei se dali para a frente, o rapaz daria conta do recado, no que ele informou que sim, e fui embora; conspirações da vida, que não entendemos...

Não perceberam? Não entenderam? Eu confesso que também não entendo muito bem, embora suspeite de alguma coisa muito boa que sempre nos está a acompanhar, porque simplesmente não sei o que faz um cicloturista cheio de frio, conhecedor de uma ínfima particularidade, encontrar-se com um casal repleto de condições, no meio do nada?

Anjos da Guarda, no caso os deles, que me fizeram parar para que eles conseguissem trocar o pneu murcho...

Não conheço o meu Anjo que me Guarda, nem sei o nome dele, mas tenho absoluta certeza de que, como Guia, livra-me de coisas ruins, e aproxima-me de experiências e de pessoas boas...

Se vocês tomarem consciência de seus Anjos, terão muitas experiências...

Contente por ter bem ajudado, segui em frente com novo frio que de mim se apoderou, e novamente nos encontraríamos lá embaixo, onde eles pararam para comer alguma coisa, e eu pegaria a moto do Denilson, dono da pousada, que a me emprestara para dar um pulo até Urubici para tirar dinheiro, pois eu descobrira que no dia anterior, depois de todo aquele aperto, havia esquecido de passar no Banco. Eu estava na pousada, sem dinheiro! Pior ainda, eu estava sem dinheiro para meus próximos dois dias! Denilson e Dona Andreia me pouparam ter que voltar até Urubici no dia seguinte, apenas para tirar dinheiro.

Vêem? Novamente meu Anjo da Guarda, me guardou e protegeu...

Subi na moto e parti, mas cada máquina tem as manhas do próprio dono. Ela estancou, pois além do tempo frio, a embreagem era baixa demais. Dei no pedal novamente e ela pegou; acelerei mais forte e fui soltando devagar a manete esquerda, e ela partiu tó-tó-tó-tó-tó caminho à frente, subindo por entre as pedras, sempre elas, ladeira acima até chegar no asfalto que desceria. Estava muito acostumado com a bicicleta, pois apertava insistentemente a embreagem, como se ela fosse meu freio dianteiro...

Na ida não senti muito frio, até porque o sol ainda estava a dar seu ar da graça, mas na volta, contra o vento, fui baixando a velocidade e terminei a 20 km por hora, como se eu estivesse em minha bicicleta. Atrás de mim, na garupa, uma caixa de papelão com bastante água mineral.

Meu jantar foi um filé de truta delicioso. Numa pequena estante à minha frente, descubro fatias de maçã desidratadas e compro um saquinho; cairiam muito bem no dia seguinte...

Agora em minha cabana, enquanto escrevo sob as cobertas, pois faz frio à beça, vou escutando uma orquestra que deve estar tocando alguma sinfonia lá fora, com músicos sapos, rãs, jias e sei lá mais o quê...

O frio bate pesado e na madrugada acordo com ele, produzindo-me incômodo em calafrios. Puxo o cobertor que eu havia desprezado, e tudo esquenta como um bom regaço de qualquer mãe, e é gostoso voltar ao sono novamente, afinal, amanhã será um dia de só moleza...

Ao som daquela orquestra que já executava alguma obra, junta-se agora ao coro, o chamado de Dona Vaca, atrás do bezerro que foi apartado. É interessante, mas vamos conseguindo separar cada som, que voltam a se embaralhar à medida em que vamos adormecendo. Deixo o mundo físico e mergulho no dos sonhos, onde outros mundos, à velocidade da luz, interagem coloridos. É bom, ser filho de Deus...

Acordei cedo aos berros do filhote bezerro que havia sido apartado. Chego à minha janela e vejo a vaca mãe a dar chifradas nas outras mães que estavam lá há mais tempo; é a Natureza compensando as perdas através das reações... Mais alguns dias, essa aflita mãe terá esquecido a própria cria, e nada mais terá razão...

Váácááá! - ainda escuto o filho de Piá, de talvez uns 5 aninhos, a ralhar com a Dona Vaca, mandando-a parar com toda aquela agressividade...

Tomo um banho, adianto minha arrumação, mas ainda faltam minhas roupas no varal de Dona Andreia. Denilson me estende uma caneca grande, ao tempo em que pergunta se já conheço o Camargo. Olho para a caneca, olho para ele e me vem à cabeça que o único Camargo que já ouvi falar, é o Camargo Mariano. Ele vê que não faço a menor idéia e me manda segui-lo. Chegamos num pequeno curral onde a ordenha mecânica já está a pleno vapor, não sem antes ele ter enchido minha caneca até o meio, com café amargo, bem quentinho. Pediu minha caneca e a levou até o peito da vaca, espremendo-o até que a caneca estivesse cheia de um espumante leite morno.

Orgulhoso a retornou para mim, esperando que eu a tomasse para ver minha reação, no que aprovei, tamanha delícia diferente e natural...

Ali conheci o que era um Jacu, ave silvestre e protegida, uma espécie de mistura entre galinha e faisão, toda preta, mansas pelo quintal de Dona Andreia.

Enquanto o café da manhã era preparado, fui até a Cascata Véu de Noiva, água a escorrer por uma grande rocha obesa, e me perguntei como seria aquilo na estação das chuvas... Algo simplesmente grandioso e belo a nos encher a vista e a alma, da calma simples que a Natureza imprime aos elementos, construindo e destruindo, moldando ao som das realidades...

Sim, também voltarei lá, antes de morrer...

Foram 39,8 km de muito pedal, em 6 horas e 4 minutos, 4.923 calorias, em 1.353 metros acumulados. Não foi muito duro, mas também não foi muito fácil. Digamos que foi mais ou menos...

* * *

Um comentário:

  1. maravilhoso relato, divino!!

    subi o morro da igreja várias vezes, só duas vezes estava com visibilidade boa, mas também achei lindo estar pedalando entre brumas e vendo elas ascenderem entre as montanhas. é...a maioria das pessoas nào conhece este sabor especial do desafio e da conquista.
    abraços
    hila

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