essa coisa se chama Desafio...
É gostoso quando o aceitamos.
É gostoso enquanto o vamos cumprindo.
É gostoso quando o damos por terminado...
Vira bom passado, boa lição,
mais uma história a ser contada...
Itaberaba - Lençóis
(Paulo R. Boblitz - 5/jan/2013)

Ainda escuro, as poucas pessoas que me viam de bicicleta, carregado e piscando, permaneciam com estranheza me olhando. Por certo, isso não é lá muito natural...
Em pouco tempo eu passava por baixo do viaduto da rodovia que nos levaria até Lençóis. As carretas madrugadoras já enchiam de barulho e de fumaça, a pacata madrugada fria e gostosa, bem diferente de quando o sol reina em seu esplendor de assar nossos quengos.
O sol já ia alto quando Rogério e Aldo me alcançaram, escoltados pelos Diretores da Associação dos Ciclistas de Itaberaba, Ivan, Gilvan, Fredson e nosso anfitrião Francisco Neto. Levantaram bem cedo ainda madrugada para nos fazer tal cortesia. Pedalaram conosco por cerca de 25 quilômetros, até o entroncamento que leva até Boa Vista do Tupim, quando paramos debaixo de uma bela sombra e nos despedimos; eram quase 7 da manhã...
Seria um dia difícil, o mais longo, o que teria mais metros em subidas acumuladas, mas por incrível que pareça, e apresentarei pequena tabela no final, quanto mais exigimos dos nossos corpos, mais ele se condiciona como máquina perfeita e quase perpétua, pois está a se regenerar incansável enquanto trabalhamos e descansamos, perfeição divina...
Meu machucado, aquele belo pedaço escalpelado do braço esquerdo, em cinco dias com o metabolismo acelerado, estava completamente seco e cicatrizado. Pensando bem, até nossas bundas estavam aquietadas, quem sabe calejadas e caladas por saberem que não pararíamos enquanto não chegássemos...
Tato e Rogério, com seus ritmos acelerados, partiram à frente, enquanto eu e o Aldo pedalávamos atrás. Nossos ritmos eram bem diferentes, mas pouco importava, pois sempre chegávamos juntos, sempre estávamos juntos reunidos nalgum lugar, exceção de Santo Estevão, que como bom santo daquela terra, talvez tenha tido algo a nos ensinar...
Só aos 70 quilômetros percorridos é que encontraríamos outro oásis, onde novamente paramos para abastecimento de sucos e de águas. Descanso? Que nada! Estávamos ainda na metade do caminho daquele dia...
Montei e comecei a pedalar, e mais um pouco chegava no Bar do Bode, onde apeei diante dos olhares dum baiano pitoresco, moreno escuro, olhos azulados, que sorridente perguntou de onde eu vinha. Pedi uma porção de bode assado, de preferência as costelas, mas estas estavam poucas. Devagar fui me despindo do capacete, das luvas, da balaclava que me protegia as orelhas, da fralda de bebê que me recolhia os suores da cabeça, da testeira que tentava impedir o suor de entrar nos olhos, e sentado a conversar, vi chegar o Tato, mais um pouco o Rogério, e pouquinho tempo depois, o Aldo.
A porção de bode já estava servida, e com farinha foi sendo absorvida por todos, uma delícia... Quando saímos de lá, de novo na estrada, Rogério avistando um jegue, nos mostrou o "bode" que acabáramos de comer, mas não lhe demos atenção, pois bode ou jegue, estava delicioso...

Sete e meia da noite, passando por uma vila, a última antes de chegarmos em Lençóis, no entroncamento que levava até o aeroporto. Olhei para o GPS e a mensagem que ele me remetia era desalentadora: faltando 20 quilômetros para o final, ele estava disposto a me abandonar. Procurei uma tomada elétrica para pequena carga, mandei todos seguirem à frente, pois depois os alcançaria, e por 15 minutos descansei, tempo suficiente para que meu trajeto fosse concluído.
Meus filhos, emparelhados, aguardavam-me. Que eles seguissem para dar apoio aos que iam na frente, pois logo os pegaria, como os peguei. Na subida forte perto pouco antes de chegar em Lençóis, lá estavam o Fernando e o Rogério me aguardando, lugar de pouco progresso numa bela subida, já bastante cansado, curva à esquerda, outra curva à direita, o céu a mostrar a Via Láctea cheia de estrelas, pedacinho de Deus nos encantando com sua alvura cintilante, estrelas, milhões delas nos informando que vivemos num cantinho especial, nossa Terra pequenina e azul, onde todos os dramas acontecem, onde todos os esforços, como os nossos, representam nada para a vida, que segue impávida semeando vida e morte pela frente, mas que nós, diante das mesmices dela, resolvemos fazer algumas diferenças.
Estava escuro que nem breu. Há algum tempo eu vinha sentindo cheiro de fumaça, e numa das tantas curvas daquela última subida insana, vi o fogo rasteiro e pequenino, afinal era noite e ele procurava se manter às próprias custas para não extinguir-se, pois que tudo nessa vida é para valer, inclusive o fogo que queima, pois uma vez aceso, cumpre o próprio papel que lhe cabe...
Já em casa descansando, vejo a triste notícia que ele arde na Chapada, queimando vidas, a tudo transformando em cinzas, matando tudo, para que tudo renasça na primeira chuva...
Meu filho Fernando, ao longe é o baliza... Suas duas lanternas vermelhas nos indicam o horizonte, subindo ou descendo, quando o conseguimos acompanhar, porque a Gravidade assim nos incentiva. Ele, por certo, nos vê pelo retrovisor, ligando o pisca-alerta quando enxerga ao longe, dois faróis arrogantes, quatro rodas sustentadas por muitos cavalos de potência, a nos chegarem por trás com velocidade, que sem bem entenderem a inusitada figura de duas pequenas lanternas traseiras vermelhas piscando, diminuem a velocidade, passando bem ao largo em segurança para nós.
Loucos..!, deviam exclamar seguros em suas carlingas climatizadas, onde o pé, assim como os nossos, impõem a velocidade. A diferença dos pés reside nos cavalos: enquanto eles tangem os deles empurrando os pés para baixo, nós tangemos os nossos que são extremamente pesados conforme as subidas vão nos cobrando, em ciclos, primeiro um, depois o outro, quando a corrente, em rangidos, vai transformando nossos desejos em metros, nossas forças em lentos avanços, nossas vontades que bem acompanham nossas mentes, senhoras de músculos e metas...
A bela subida enfim terminou, bela porque toda subida é conquistada, e começamos a descer, nada de pedais, somente freios, ventos e paisagens, no nosso caso as riscas no asfalto, que seguíamos à risca, pois elas nos indicavam a direção do bem seguir. Mais um pouco e vislumbrávamos a cidade de Lençóis, bem lá embaixo como se num buraco; o limite estava findando...
Nossa última curva nos fez ultrapassar uma ponte. Em seguida, a cidade nos apresentou nossa última subida, onde duas crianças nos acompanharam, até que no topo nos despedimos. Lençóis em seu esplendor, cidade que de dia dorme, que de noite acorda, pois que de dia todos estão nas trilhas, e de noite todos estão em festa...
Tato nos fazia sinais, e lá encostamos. Aldo havia ido até a pousada e junto voltou trazendo Dona Iracy, nossa Hospedeira nos próximos dois dias, que também pedala num grupo só de mulheres, há 10 anos, o Grupo Ciclista Feminino Pedal Brilhante, cerca de 105 integrantes. Suas trilhas sempre são acompanhadas por Bombeiros, um Mecânico, além de um carro de apoio. Por favor, visitem a notícia da última trilha:
http://revistapolicial-deltapapamike.blogspot.com.br/2012/09/cippalencois-faz-caminhada-ecologica.html
Novamente todos juntos, cansados, muita sede, doloridos mas muito, muito mesmo, todos felizes, partimos para a pousada, tomarmos um banho, encostarmos as bicicletas, enfim curtir Lençóis, a começar pelos macarrões, e mesmo assim quase que não pegávamos, porque já estava muito tarde e a casa precisava fechar. Chegamos em Lençóis passando 5 minutos das 9 horas, depois de 15 horas e 57 minutos pedalando...

Em momento algum tivemos carro de apoio, quando pusemos nossos Anjos da Guarda para trabalhar, nossos únicos apoiadores, além de nós mesmos com nossas brincadeiras, nossas rabugices, nossas teimosias, nossas lideranças, nossos improvisos, enfim, nossa convivência que ao mesmo tempo foi fácil e não muito fácil, pois em grupo existem as divergências, as concordâncias, as preferências, tudo aquilo que encontramos em nossos dias, multiplicado pelo somatório de todas as adrenalinas envolvidas, sempre altas como nossos giros...
Satisfeitos e felizes, agora fartos com comida, voltamos para a pousada. A noite era de bom sono...

Meus filhos foram conhecer as grutas e cachoeiras pela região; eu fiquei para me organizar, separar o sujo do que era limpo, arrumar a tralha espalhada. Aldo, Rogério e Tato já haviam descoberto um bar, e para lá me fui chegando, não sem antes comprar um chapéu que me separasse do sol queimador. Cheguei enfim até o bar, mas achei-o meio quente, quando o atendente nos levou até os fundos, local onde corria leve brisa, debaixo de uma gostosa sombra de abacateiros. Nessas horas, qualquer macarrão vira prato nobre, e o austríaco dono do bar, caprichou nas nossas macarronadas, molho branco supimpa, porções fartas para famintos.
Comida na mesa, todos calaram e ficaram sérios, afinal agora era a hora do mastigar. Mais cerveja para mim e Tato, mais sucos para Aldo e Rogério. Terminamos e voltamos para a pousada. Resolvi tirar um cochilo e só acordei no dia seguinte, coisa de 5 e meia da manhã, hora de recolhermos tudo e prepararmos a nossa volta.

Alojamos as bicicletas na Saveiro, os alforjes no Citroën e partimos. Seria um longo dia de estrada...
Gostaria que analisassem a pequena tabela que construí em Excel, pois conforme os dias vão passando, o cansaço acumulando, as dores fazendo-se sentir, o condicionamento interno vai melhorando. Por favor, verifiquem que os dias vão piorando, as calorias queimadas aumentando, mas o coração numa boa, bomba bem calibrada, calmo e tranqüilo cumprindo seu fiel papel.
Essa é a dádiva de qualquer esporte, o de melhorar a saúde sempre sem pestanejar, mas um bom aviso: qualquer exagero é venenoso. Assim, antes de iniciar qualquer atividade, consulte seu médico, verifique seus limites, não importa a idade que você tenha.
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