Trilhas de Paulo Afonso - parte iii de iii (Passeio em Paulo Afonso)

Água mole em pedra dura,

mais parece uma tortura,

vai, volteia,

esperneia,

vem, mergulha, até que fura...


Trilhas de Paulo Afonso - parte iii de iii (Passeio em Paulo Afonso)
(Paulo R. Boblitz - jul/2011)

Paulo Afonso amanheceu chovendo, num domingo bastante preguiçoso, como todo domingo, com chuva ou sem chuva, parece ser.

Oito da manhã e eu ainda estava na cama. Pelo corredor me chegavam os barulhos do dia que começava. Tomei meu banho e fui para o meu café, sempre complicado pelas tantas coisas que os hotéis nos oferecem. Não abusei...

Já estavam arrumando as bicicletas no reboque. Fui até lá e conferi a minha, bem presa entre mais algumas, sendo lavada no andar de cima, das poeiras que conquistou.

Pedalamos nos dias 8 e 9 de julho, na sexta feriado e no sábado, por 138,5 km, em 13 horas e meia. Conquistamos 2.035 metros em subidas, nada heróico, mas muito prazeroso, divertido, instrutivo, principalmente saudável, e isso só posso falar por mim, que por conta apenas do meu equipamento, queimei 6.923 calorias.

Com a fome que eu estava, com a sede que eu sentia, devo tê-las colocado todas para dentro, e mais um pouco, sem culpa, sem remorsos, pois que a cabeça é a que sempre leva a vantagem, a alma também, porque todos viramos poetas, mais amantes, mais solidários. Não há quem não descubra algo que nunca percebeu. Não há quem não se deixe levar pela emoção, ao ver uma vida em meio às pedras, e eu vi muitas, sorrisos em meio a fome, solidariedades em meio a tantas misérias.

Passeamos, nos divertimos andando pelos caminhos de nosso Pai, e nos comovemos a cada metro, porque não estamos com o espírito competitivo, onde só o ego se faz presente.

Passeamos, nos divertimos andando pelos caminhos do Criador, e vamos nos livrando de nossas maldades, nossos egoísmos, nossos poderes e pedestais.

Passeamos, nos divertimos, pedalando e fazendo força, em nenhum momento sofrendo, pois que quem quer sofrer arranja outras atividades, solitárias.

Passeamos, nos divertimos, somos bem acolhidos, pois em todos se vêem os exemplos, principalmente das vontades, das virtudes que acabam transparecendo, pois que nenhum espelho gosta de cicloturista.

Passeamos, nos divertimos, voltamos para casa mais leves, não das gorduras e suores, mas dos humores que escorrem para a terra.

Esse é o segredo que pouca gente enxerga, às vezes até montados em bicicletas bacanas, tecnologias de ponta, leveza em equipamentos e acessórios, mas extremamente pesados em vaidades, em hipocrisias e conchavos.

Passeamos, nos divertimos...

Desatrelamos o reboque do ônibus e embarcamos; já passava das 10 e meia. Paramos para pegar o Guia, antigo empregado da CHESF, hoje aposentado, Seu Antônio, que com orgulho nos foi contando como tudo aquilo aconteceu, embargando a voz sempre que utilizava o pronome "nós", porque foram eles que fizeram...

O complexo de Paulo Afonso é enorme, porque tudo ali é gigantesco, a começar pela força descomunal do velho rio, que espuma, farfalha, assobia, explode, ronca, estremece, vaporiza, corrói, martela e dorme calmo sabendo esperar.

Já de longe ouvíamos as trombetas, água martelando a rocha, criando asas e voando como leve fumaça, formando o arco-íris, mostrando como o Sol pode ser belo.

Aquilo tudo um dia já foi livre. O homem chegou e conteve, aliou-se à Terra que há muito já não mais resistia, construiu paredões, instalou comportas, fez zunir turbinas, e acendeu as lâmpadas do Nordeste, roubando os brilhos que as estrelas nos lançavam, como chuvas especiais de prata. Hoje elas só piscam em lugares ermos.

De início as águas ficaram confusas, pois o homem veio com brocas, explodiu rochas, cavou túneis, gastou cimento adoidado, pintou tudo bonito, e elas pararam de correr. Mal sabiam que era temporário, apenas enquanto enchiam-se os reservatórios.

Quando enfim voltaram a deslizar, soaram as fanfarras, todas as matracas estalaram, as engrenagens se encaixaram, e o homem apertou o botão. Alegres brincando de escorregador, ao som de um grande baião, as águas partiram branquinhas no xaxado das espumas, pois o mar já estava com saudades, e tudo aquilo que em silêncio havia ficado, nas entranhas desnudadas sem mistérios, voltou a encher...

Até hoje é folguedo e de vez em quando o velho Chico toma os gorós em farra, época que enche e transborda, faz da roça um belo quadro, pinta tudo de verde, dá o bom bocado. Vem água de cima, de mais acima, vem água até do outro mundo...

E homem nenhum, nem terra nenhuma, consegue segurar, tanta água que dança, que rodopia e sai cabriolando pelos rochedos mais arrancando, lascas e pedras, porque água brilha, e por onde passa, deixa tudo lustroso...

Abrem-se as comportas, os trovões ecoam, soltam o capeta que sai em disparada para queimar nos cafundós, porque a hora é da piracema, da pororoca, do milho que no São João vai virar canjica e pipoca...

Velho Chico, que de velho não tem nada, tão jovem e já tão santo, São Francisco de todos, o rio mais amado, mais maltratado, mais cheio de vida do Brasil...

Velho Chico, você é o doce, você é o leite, o sal e o mel, o viço e o oásis.

São Francisco, o recheio do vale, o sonho molhado, do matuto e da terra seca...

* * *

Um comentário:

  1. Essa região parece tão linda, deu vontade de visitar!


    Emmanuel M. Favre-Nicolin
    Blog Vitória Sustentável
    http://vitoria-sustentavel.blogspot.com/

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