Trilha de Paulo Afonso - Fazenda Lagoa Funda (i de ii)

Vencidos somos quando nos entregamos,

Vencedores somos, quando conseguimos,

seja lá em que tempo for...

A vida é uma trilha, com descidas e subidas.

Nas subidas é que nos descobrimos...



Trilha de Paulo Afonso - Fazenda Lagoa Funda (i de ii)
(Paulo R. Boblitz - jun/2010)


Quando eu era menino, todas as noites em Fortaleza eram escuras. Oito e meia ou nove horas da noite, Puff..!, tudo ficava escuro...

Era hora então de colocar a cadeira de balanço feita de vime e palha, na calçada, para ver o satélite passar no meio da noite sempre estrelada, pois não havia a chamada poluição luminosa...

Naquela época, início da década de 60, os satélites ainda estavam em sua fase inicial, e passavam em suas órbitas baixas, velozes como se tivessem mil foguetes. Foi a época dos sputniks, em que sonhar, era o que mais fazíamos...

Paulo Afonso começou então a ser falada, pois seria nossa redenção das noites apagadas, com o complexo que estavam a ampliar. Num belo dia, a caminho da escola, parei para ver os imensos transformadores, afundando o calçamento por onde as carretas especiais passavam, pois Fortaleza é toda em cima de areia...

Paulo Afonso já era sonhada por Dom Pedro II, quando em 1859, visitando o local, determinava estudos para futura geração de energia. Hoje não tem mais o privilégio de ser a única, pois depois surgiram Sobradinho e Xingó, produzindo trabalho e riquezas para o Nordeste, tudo o que a energia representa de progresso...

Já se vão muitos anos do tempo em que por ali passava com a família, a caminho do Ceará, sempre parando a admirar os cânions, a ponte alta que sofre um terremoto quando passa um carro grande, o mundo d'água espelhando...

Hoje piso novamente em Paulo Afonso, mas para trilhar diferente, sentir seus ares secos, seu calor intenso de uma grande panela...

A sexta-feira havia sido toda chuvosa, e partimos por volta da zero hora do sábado, debaixo de leve garoa. Enfim inauguraria meus pára-lamas... Coisa de 5 da manhã, entrávamos na cidade de Paulo Afonso, uma ilha, cercada pelo rio São Francisco por todos os lados.

A cidade dormia sob um friozinho gostoso e chuvoso, acordando sem pressa, as pessoas em busca de seus afazeres, dando vida ao local. Encontramos a única lanchonete que ficava a noite inteira aberta, e ali aportamos para o nosso café da manhã - muito suco de laranja, pães com ovo, alface, tomate, queijo e presunto, café puro, café com leite...

Esperávamos pela Ada, nossa amiga ciclista e anfitriã, que lá já nos aguardava desde o dia anterior, pois que os preparativos foram muitos - um carneiro de 42 quilos...

Precisávamos chegar no rio Moxotó, divisa entre Pernambuco e Alagoas, nosso ponto inicial da trilha, rumo à Fazenda Lagoa Funda, onde conheceríamos Seu Nesinho e Dona Leda, pais de Ada. Daríamos uma grande volta para quase chegarmos ao mesmo rio, apenas a 19,5 km em linha quase reta, na direção nordeste.

Fazia já algum tempo que a chuva havia parado, restando apenas as nuvens pesadas passeando por sobre nossas cabeças, aliviando o sol e o calor. Enfim partimos, algo próximo das 9h30, confiantes cheios de energia, após uma noite de sono leve no ônibus do Caldas - agora era pedalar...

Tomamos o asfalto e seguimos, atravessamos a divisa que o rio Moxotó sinaliza, já subindo, o que seria uma constante, subirmos e descermos até os 36,1 km, onde começaria de fato o nosso purgatório, ângulo pouco no início, acentuado logo em seguida...

O Sol deu as caras, obrigando-me a usar meu boné legionário, e nos acompanhou implacável até muito próximo do final, quando fechou suas janelas, deixando que as nuvens tomassem conta da água sobre nós.

Em pouco tempo chegávamos ao acampamento da CHESF, entrada para Jatobá, onde reagrupamos e tiramos algumas fotos; já havíamos percorrido cerca de 16 km; mais 7 km, tomaríamos nosso banho no lago de Itaparica. Não tomei aquele banho, pois estava com muita coisa eletrônica nos bolsos. O Sol estava brilhando e aquecendo, e eu não tiraria a camisa. Saímos dali e nos abastecemos com água e isotônicos, o meu bem especial, uma latinha que produz "tisscchhh" quando lhe puxamos a alça; desceu revigorante espumante, matando a sede e suprindo amores...

Ainda faltava muito chão, principalmente dificuldades. Partimos em busca da antiga Petrolândia, hoje submersa pelas águas do lago. Ali não há o que se ver, a não ser quando as águas estão baixas, as ruínas querendo sobreviver... Seguindo em frente descobrimos pequena barraca onde experimentamos a mais doce das águas de coco; é o sal quem produz essa sensação. Quem quiser saber do que eu falo, é só espalhar uma pitada de sal sobre uma fatia de melão, e o sal fará o doce salientar, tornar-se mais presente. Uma vez escrevi uma de minhas favoritas: "O Doce do Sal" - está no blogue.

Dali dava para ver a longa subida ao longe; passavam três minutos do meio-dia... Montamos nossos alazões e partimos, pegando à direita para Tacaratu (Serras de muitas Pontas e Cabeças), onde o vento, parecendo ajudado pela grande vertente, nos bateu de frente, sem juízo, como se isso fosse alguma barreira...

Caldas nos aguardava e mais um isotônico espumante se fez necessário; há os que preferem as químicas... Olhei para frente, soltei um suspiro e parti decidido; não colocaria os pés no chão, a não ser para fotografar. Devagar todos foram me ultrapassando, menos um, o Marcelo, novato que as cãibras dominaram, dores infernais que nos querem virar ao avesso. Subiu a pé e lá em cima foi para o ônibus, onde respeitar os próprios limites é maturidade. Cândida, nos dois terços da empinada ladeira, preferiu dar um descanso, afinal, o apoio existe para isso mesmo.

Há muito que eu apenas via Vovô, Omar, João de Deus e Gilton, lá na frente, e eles não desapareciam, sinal de que a subida estaria terminada... Ao todo, foram 13,5 km, onde vencemos 427 metros, com vento forte frontal... Acho que paguei quase todos os meus pecados, se é que já não os tenha jogado fora em outras ladeiras passadas...

Vovô sempre vinha me buscar, aproveitando a vista do grande lago lá embaixo, um céu a se misturar e entrar na terra, a nos encher as almas de vibrações, transbordar nossos espíritos de Natureza, paixões que Deus Se alegra em nos ver experimentando, tanta grandeza que só Ele produz...

Foram dois patamares em que descobri que o fim ficava mais adiante, mais acima..., que finalmente chegou..., o Paraíso..., pelo fim do sofrimento, pela visão maravilhosa de quanto nossa terra é linda, onde se planta, colhe e se vive..., e eu ali, ainda vivo...

À minha frente, outra grande gostosura, uma descida cheia de curvas, onde minha máxima só não foi superior aos 64,8 km por hora, pois que uma carreta estava à minha frente, freando bem no meio da curva fechada... Descer é gostoso, e tudo o que é bom, sempre dura pouco. Tacaratu nos aguardava, enfeitada pelas festas juninas, onde visitamos a bela Igreja Matriz, onde, por alguns momentos, sentado sob a grande nave, agradeci ali ter chegado, pedindo para conseguir, vencer as outras quatro subidas.

Brincamos com uma espécie de mistura de Cacatua com Periquito, muito dócil e curiosa com o brinco da Ada, e partimos, agora o céu escurecia, pequena fúria a nos demonstrar, que ventos e temperaturas, quando se cruzam, produzem humores, a depois chorarem sobre nós... A primeira, de 62 metros, foi vencida, a segunda de 32 também, e a terceira e quarta, pequeninas, doloridas foram sobre o chão encharcado...

João de Deus ouviu um barulho e resolveu voltar; era o Caldas que ficara atolado ao atravessar o riacho, pois o reboque das bicicletas o fizera perder tração, dado o ângulo que adotara. Mais à frente encontrei Ada, Gilton e Vovô, acho que mais alguns, perdoem-me a memória, pois as pernas estavam quentes, muito quentes; os pés quase já não os sentia, a cabeça demorava a pensar...

Gilton e Vovô retornaram e seguimos em frente, pois o trator, Ada necessitava mandar. O trator foi, mas Caldas, com a ajuda dos que haviam retornado, desatrelou o reboque e conseguiu sair; Caldas ainda se perdeu, por desencontros que nunca são programados; encontrou-se novamente quando retornou e ali juntou-se ao trator, que aguardava.

Enfim todos chegamos à sede da Fazenda Lagoa Funda, casa do Seu Genésio Campos, Seu Nesinho como é conhecido, e de Dona Leda, pais da Ada que orgulhosa contava que havia vencido as ladeiras inteiras; não era só ela, eu também estava...

Seu Nesinho, com quase 85 anos, aposentado há quase 33 anos, de outro tanto trabalhado na CHESF, viu tudo aquilo do começo...; viu o homem domar a Natureza, produzir riqueza, mudar toda uma região, influenciar pelo Nordeste inteiro, quando eu ainda menino, ansiava pela eletricidade, antes só dos geradores...

Acho que já eram 4 e meia da tarde e, enquanto preparavam a mesa do almoço, tudo de carneiro, Buchada, Sarapatel, Costela Assada, Carne de Sol, Pernil, Pirão e mais o Arroz, o Feijão Tropeiro e as Verduras cozidas, Omar curioso perguntou ao Seu Nesinho se lá fazia muito frio. Seu Nesinho então respondeu:

- Não..., ele já vem feito... - e olhou sorridente para o Omar, que já explodia em sonora gargalhada, devidamente acompanhado por todos nós.

Gilton me mostrando uma casa de marimbondos no madeirame da varanda, perguntou ao Seu Nesinho se eles eram do tipo que mordiam...

- Não..., eles são do tipo que ferroam, mas só se mexermos com eles... - e de novo rimos da juventude do Seu Nesinho, cabeça boa, disposição e orgulho dos filhos que tem, do quanto já produziu, pelas tantas histórias que nos contou, enturmando-se rapidamente como se fosse mais um ciclista, mais um trilhador pelos caminhos de Deus, que ele com a família, trilham há muito tempo.

Falou-me do milharal, dos pés de feijão, do gado leiteiro, do poço salino, e prometeu me fazer uma visita, quando eu começasse a explorar o milho hidropônico para engordar boi; vou cobrar essa promessa...

Ao todo foram 73,2 km percorridos, em 7h19min11seg, 1.010 metros de subidas acumuladas; queimei 4.628 cal, tudo segundo a precisão do GPS Garmin, às minhas costas, que marcou cada segundo de nossa trilha, meu novo amigo nas horas duras... Descobri que o Caminho da Fé será mais forte do que o raciocinado, mais ou menos uma trilha dessas por dia...

Chegou a hora de partirmos, já de noite, pois pernoitaríamos em Paulo Afonso, distante dali cerca de 84 km. Desatrelamos o reboque, já devidamente com nossas bicicletas embarcadas, para que o Caldas pudesse manobrar. Num dado momento, convém aqui explicar que todos já triscados pelas cervejas, aqui não mais isotônicas mas por farra mesmo, Omar dá um grito por mim e o Gilton, cobrando-nos maior participação:

- Vamos empurrar essa geringonça... - o reboque necessitava vencer pequena rampa...

Enquanto empurrávamos, o Omar puxava, ganhando a parada, pois a rampa o ajudava...

- Péraí..! É pra empurrar ou pra puxar? - perguntou o Gilton.

- Eu acho que tanto faz... - creio ter respondido..., afinal já estava chamando de Ada, a Sara, irmã de Ada.

Parece mesmo que quem achou ruim, foram o João de Deus, o Fernando e o Vovô, lá na frente tentando guiar o que nossas resultantes daqui de trás produziam...

Enfim chegamos em Paulo Afonso, algo por volta das 10 e meia da noite, já meio dormidos e famintos. Nos instalamos e saímos todos, a pé, atrás de comida, pizzas com chopes cheios de espuma; houve quem tomasse coca-cola, enfim, há gosto para tudo...

O dia tinha sido cheio...

A trilha? Foi a mais bonita e simpática que fizemos até hoje...

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