Estripulias sem dificuldades,
é como comer papinha morna...
Bom mesmo é chupar cana,
assobiar e tocar piano...
Aracaju (SE) - Mangue Seco (BA) - Siribinha (BA) - Baixio (BA)
Lutam-se as batalhas - vencer ou perder, é mero detalhe... (iii)
(Paulo R. Boblitz - jan/2015)
Ao contrário da cama de Mangue Seco, em que encostava o corpo no estrado de alvenaria da cama, dessa vez o colchão fora firme, o sono mais confortável...
Há muito que as bombas não explodiam, talvez mais tarde voltassem a chamar fiéis, mas agora, tudo era calmo, até o sol estava meio tímido.
Tomei um banho, arrumei tudo e esperei pelo café da manhã às 8 horas. Tinha tempo, pois a maré naquele dia, permitiria um intervalo útil das 10 e meia da manhã, até as 4 e meia da tarde. Comi batata doce, inhame, banana frita, melancia, pão com bastante ovo, tudo acompanhado por um café forte, encorpado, sem açúcar ou adoçante, afinal, café sem doce, tem gosto de café...
Sofia, encostada na parede, não via a hora de partir; eu também não...
Conversando com Seu Perdigão, descobri que não poderia pedalar pela praia até o Sítio do Conde. Pedras por toda a zona de arrebentação ao longo do trecho todo, sobrando apenas areia solta onde não conseguiríamos coisa alguma. O Google Earth havia me dado outra rasteira; não era a primeira vez, mas isso é gostoso, muda os planos, muda a estratégia, até nos faz sorrir, porque nunca estaremos abandonados...
Não havia porquê esperar pelas 10 e meia, então às 9, partimos por uma estradinha de areia meio batida, onde por muitas vezes derrapamos por não termos terreno firme sob as rodas. Parei numa sombra e sequei um pouco os pneus de Sofia, aumentando assim a superfície de contato. Eram apenas cerca de 12 quilômetros até o Conde. Antes de partirmos de Siribinha, fomos conhecer o cais de madeira que nos atravessa numa passarela, pela largura do mangue até o rio; dali saíam os barcos com os turistas, rio acima, ou rio abaixo até a barra.
O sol parecia estar mais quente do que nunca, e o abafado nem se fala...
Até o Sítio do Conde, muitos carros em sentido contrário, e até dois ônibus, desses bonitões, refrigerados parecendo aviões; Siribinha iria ferver...
No Sítio do Conde, passamos em frente da simpática igrejinha, fechada àquela hora. Buscávamos o nosso caminho pela praia, e lá estava a nossa areia. Bebi dois cocos verdes, descansamos um pouco, até conversamos com alguns do bar; a praia estava cheia...
Sofia fez sinal impaciente. Tive de abandonar a conversa com um turista de Belo Horizonte, que dizia pedalar também; ele conseguia dar uma volta, junto com o filho, ali na minha frente todo orgulhoso, ao redor da lagoa da Pampulha, cerca de 18 quilômetros. Parabenizei-os e fomos embora, não sem antes incentivá-los a um pedal mais firme pelos campos de Minas Gerais; pareceu-me que ficaram pensativos...
Peguei Sofia e caminhamos até a areia durinha, molhada; eram 11 horas em ponto, e começamos nosso caminho, agora sem pedras.
Sofia, novamente encantada e romântica, ao ver uma rocha bonita, fez questão de ser fotografada; reparei que nuvens se formavam atrás de nós, daí a razão da quentura...
Até ali, tínhamos visto pescadores com suas tarrafas e varas, mas dali em diante, até Baixio, a praia estaria completamente deserta, selvagem, um mundo de areia a se perder de vista, lambido pelas águas em espuma, qual varanda de renda de uma fina rede de dormir...
Tal como acontecera na barra do rio Itapicuru, em Siribinha, aqui também a faixa de areia navegável foi se estreitando, sinal de que a barra do rio Itariri estava próxima.
Passava pouco do meio dia quando chegamos no rio Itariri. Não vimos nenhum barco, mas eu sabia que dava para passar a pé, com a Sofia nas costas. E nos ensinaram o lugar errado...
Na verdade o erro foi meu, pois deveria ter me demorado mais, perguntado mais, tirando a média. Agora sentado depois do sufoco, lembro que poderia também ter acabado com alguma diversão de algum moleque, para que ele fosse, como sondador, descobrindo com suas pernas o lugar mais raso, mas é que aquele senhor, empolgado e disposto a ajudar, achegou-se e prontamente saiu a me indicar o caminho, e até que chegou a fazer tudo certo, mas, ao fim da travessia, andou mais para a esquerda, induzindo-me a pensar que a profundidade era uma só.
De onde estava, fazia-nos sinais de que tudo estava limpo. Peguei Sofia e a suspendi, enganchei seu Selim no ombro, agarrei-a pelo Quadro, bem próximo do Central. A outra mão a segurava pelo Garfo, que a Bolsa de Guidão teimava em tornar o conjunto instável.
Com cerca de 30 quilos pessimamente distribuídos, iniciei a travessia, e a água de repente começou a escalar minhas pernas, meus joelhos, minhas coxas, minhas coisas, passou da cintura e minha agonia só aumentou com aquele vai e vem que a água nos empurra e puxa, tirando a base de sustentação. Pensei em voltar, mas aquele senhor, notando minha aflição, correu em meu socorro, quase pondo tudo a perder, pois o instinto dele era levantar a roda dianteira, o que faria com que os alforjes mergulhassem n'água, mas entendeu a tempo e correu para a traseira, levantando aquilo que eu pensava já estar encharcado.
Terminamos a travessia, nos despedimos, eu e Sofia nos afastamos um pouco do burburinho e esperei meu coração acalmar. Passei as mãos pelos alforjes e tudo estava seco. Restabelecida a calma, andamos um pouco, quando descobri que meus tênis estavam cheios de areia; seguiria assim mesmo, pois tentar tirar aquela areia, nem pensar, exatamente porque seria em vão.
Areia durinha novamente, montei e seguimos viagem. Fiz as contas e só faltavam cerca de 15 quilômetros. Dídio, o Pescador que me atravessaria na barra do rio Inhambupe, já em Baixio, havia me alertado que a faixa de areia daquele último trecho, era muito ruim para se pedalar, e não tardou a descobrirmos que ele havia falado a verdade. Ao contrário das praias por onde vínhamos passando, essa agora era mais inclinada, os grãos de areia, mais graúdos.
Enquanto desse para pedalar, pedalaria...
E seguimos em frente, aqui e ali notando que os pneus de Sofia afundavam mais, momentos em que mais força era necessária, até que chegávamos onde não tinha jeito; era descer e empurrar. Notamos que em determinados trechos, obra ou capricho da Natureza, alguém parecia nos empurrar, tornando-se Sofia mais leve, momento em que montava e retornava a pedalar, até quando novamente desmontava e começava a empurrá-la.
Virei para Sofia e brinquei com ela, dizendo que quando ela se tornava mais leve, teria o meu Anjo da Guarda pulado da garupa e começado a andar, momento em que conseguia pedalar, e quando não mais conseguia, era ele de volta, cansado, na garupa dela.
Sorrimos os três, eu, Sofia e meu Anjo da Guarda, mas chegamos num ponto em que não houve jeito de continuar montado. Querem saber o que eu acho? Acho que meu Anjo da Guarda chamou o Anjo da Guarda de Sofia, e os dois montaram em sua garupa. Foram os 10 quilômetros mais infernais de todo o passeio, pois que mesmo na areia molhada, Sofia sendo empurrada, afundava na areia...
Andávamos tão devagar, que o hodômetro marcava zero velocidade. Bater fotos?, nem pensar...
Para piorar, agora a espuma vinha lamber Sofia, o que fazia com que a areia escorresse por entre as tamancas e começasse a frear Sofia, aumentando o peso. Quando nos livrávamos daqueles grãos intrometidos, outra espuma lambia Sofia, e tudo novamente começava...
Falando em Anjo da Guarda, o meu já havia me mostrado, lá em cima, faixa de mato entre a areia e a cerca da propriedade, mas não o havia escutado, bobagem minha que gosta sempre de seguir os primeiros impulsos, porque quase meia hora depois, ele a apontou novamente para mim.
Ali parado, sem ver ninguém às minhas costas, sem ver ninguém à minha frente, sem noção onde poderia estar a maldita barra, encarei os cerca de 40 metros de subida na areia solta, solta mesmo, como se tivesse repelente à borracha, abrindo-se, escancarando-se para que os pneus mais afundassem...
Enfim, atravessamos aquela terra de ninguém; agora faltava escalar uma parede de quase um metro de altura. Parei um pouco, baixando o fogo, bebi um pouco d'água e enxuguei o suor; suava até pelos ouvidos... Parar é bom, ajuda a você colocar as estratégias em ordem, clarifica a mente e suaviza o espírito.
Olhei a hora: 2 e dez da tarde, em ponto. Havia combinado com o Dídio, entre 2 e meia e 3 horas; o medo era que ele pensasse que eu não estava indo, e fosse embora...
Assim, quando suas opções são ir ou ir, vá. Respirei fundo, ergui Sofia como se fosse colocá-la na caçamba do carro, e a depositei, de pé, sobre o mato. Sem peso, galgar o paredão foi moleza, porém o coração insistia em querer sair pela boca.
O mato não era assim tão mato, e lembrei que toda serra é bonita, quando a olhamos de longe, porque quando vamos nos aproximando, tudo o que é mazela vai aparecendo, desmatamentos, queimadas, erosões, deslizamentos etc. Assim estava aquele mato, visto agora de perto. Na verdade eram pequenas moitas, onde enroscava meus pés de vez em quando, mas davam certa firmeza aos pneus de Sofia, que agora andava, empurrada, como se fosse uma linda camela pelo deserto, subindo e descendo, lenta e calma, ao som do Bolero de Ravel... É, o sol estava maltratando...
Falando em sol, agora só faltava ver miragens, e falando nelas, ao longe pareceu-me ver alguém andando. Não era, e em pouco tempo nos achegávamos até ele, um Pescador.
- Amigão!, onde está essa barra do cabrunco!? - perguntei irritado
- Ahhh, tá looonge..!
Eu gelei...
- Mas o sinhô pode ir pela estrada de barro aí do otro lado...
- Qual estrada? - perguntei com os olhos brilhando.
- O sinhô sobe, e já vê ela...
- O senhor pode me ajudar a atravessar a bicicleta pela cerca?
- Pricisa não..! Ói lá o arame cortado...
Mandei-lhe um sorriso escancarado e sumi dali; Sofia também sorria, e meu Anjo, por certo que também deveria estar a sorrir...
Mais areia solta, mais subida dura, mas o premio estava logo ali, debaixo de minhas ventas... Montei e com redobrada coragem, imprimi ritmo forte, afinal agora era como andar no asfalto... Bem, a bem da verdade, não era, mas foi como se tivessem tirado o bode da sala...
Faltando 5 minutos para as três, cheguei no fim da estradinha, bem no pé da cerca da propriedade, que dessa vez não tinha nenhum buraco. Desmontei, encostei Sofia num coqueiro e liguei para o Dídio, pois onde estava, ele não conseguiria me ver e saber que já havia chegado. Conversamos, desliguei o telefone e ouvi ligeiro rugido; era o barulho de uma acelerada que o Segurança havia feito em sua moto, antes de desligar-lhe o motor. Montado, olhava para mim bem sério...
Arrumei um sorriso e me dirigi até onde ele estava, cerca de uns 30 metros:
- Moço, eu vinha pela praia e me ensinaram esse caminho, pois a coisa tava difícil de progredir
- Precisa se explicar não; pelo jeito, o sinhô é um homem de bem... - e perguntou:
- Sei!, na barra do Inhambupe..!
- O sinhô sabe o que tem depois dela?
- Baixio...
- E cumé que o sinhô vai passá pro otro lado?
Então ele abriu um largo sorriso e falou:
- Péra aí...
Pegou o telefone dele e ligou para o Dídio:
- Dídio!? Cadê você, homi!?
- ... ...
- Ó! aproveita e traz água pro moço, mas vem logo!
Havia ainda um pequeno problema a ser resolvido: passar Sofia para o outro lado da cerca.
- Né pobrema não. Vem comigo...
Desceu da moto e me guiou por dentro do mangue, àquela hora seco, terra preta cheia de pegadas de garças, e ficamos os dois esperando o Dídio que chegou numa canoa estreita, emprestada, porque o barco dele estava preso encalhado. Atravessamos a barra, a canoa balançando lateralmente por conta do CG deslocado por Sofia, enfim estávamos em casa, mas precisava almoçar.
Às 4 e dez da tarde, desligava meu GPS e sentava para fazer meu pedido de camarão ao alho e óleo. Liguei para meu filho, que já estava na pousada me aguardando; havia vindo me resgatar...
Já com o sol querendo ir dormir, cheguei na pousada, lavei Sofia, tomei um banho, liguei para casa, desci e fui à cata de algum bom vinho; meu filho jantava uma pizza...
O dia tinha sido bem duro, e quanto à batalha, bem..., acho que todos empatamos, ninguém ferido, ninguém vencido, mas, tão cedo não quero saber de areia...
A cor do vinho era tão bonita, quão bonita era a quilometragem daquele dia, 44,9 quilômetros, um dia difícil, não pela distância, mas pela personalidade do lugar...
Dá um orgulho quando olhamos o passado, como quando olhamos lá embaixo da ladeira braba que conquistamos...
Fica a minha homenagem
A todos vocês que pedalam, ou que andam, ou que escalam, ou que voam, enfim, a todos vocês que fazem o diferente, o meu testemunho que por vezes, não é fácil...
Sofia domada...
Na volta, Sofia, devidamente amarrada, que também quis ver por onde havíamos passado no dia anterior, lá ao longe na estreita faixa azul, lá onde todos os azuis se encontram, se mesclam, onde ela brava, reinou e encantou...
Remate
Faço meus Roteiros com calma, já passeando, já pedalando com a mente por aqueles caminhos. Utilizo o Google Earth com seus tantos zoons e ferramentas, e o outro Google para pesquisar hotéis e pousadas.
Meu plano era sair no dia primeiro de janeiro, aproveitando o feriadão. Seriam 4 dias que me levariam até Porto de Sauípe, aqui esclarecendo que havia balizado meus percursos pela praia, por conta dos intervalos das marés, em cerca de 40 km, uma distância cômoda a ser percorrida em 4 horas.
Marés quebram, barras de rios, desconhecidas, podem nos produzir surpresas desagradáveis, praias nunca antes percorridas, podem nos apresentar obstáculos, acidentes geográficos inesperados, até uma areia com grãos mais desenvolvidos, o que prejudica a compactação confortável para se pedalar.
O vento seria, como foi, um aliado, pois descendo para o sul, o vento nos empurra.
Deu tudo certo em todos os dias, embora o último tenha dado muito trabalho, justo quando faltava pouco para terminar.
Quando trabalhei no mar, ele, o oceano, ensinou-me que batalhas devem valer a pena. Ensinou-me que pressa e insistência, não combinam quando os elementos se unem contra você. Então, quando traçar planos para passear de bicicleta, reserve uma parte para um plano B, pois que de carro, basta mais apertarmos o acelerador, e o motor não reclama. Cansados, não temos acelerador nenhum a ser apertado, momentos em que os maus lençóis acabam sempre nos envolvendo, salvo se você estiver carregando uma barraca.
Assim, foi bom não ter conseguido ir até a praia de Porto de Sauípe, trecho em que deveria atravessar 6 barras, pelo menos uma das grandes, e uma escondida por uma nuvem espessa que não nos permite avaliar. Isso não quer dizer que as outras 4 barras não sejam importantes, afinal o programa nos mostra imagens antigas, e sabemos que a Natureza modifica tudo sem nos dar satisfações.
Entre Baixio e Porto de Sauípe, existe apenas Subaúma. Meu problema estava depois de Subaúma, justo nas barras que teria que atravessar. Quando estou procurando por respostas, algumas fotos me dão informações valiosas; paciência, é o nome correto para quem procura, e tais fotos já me ajudaram bastante em outros passeios, pois elas dão pistas, às vezes até telefones.
Sem querer, e procurando respostas, deparei com as fotos da praia de Massarandupió, justo uma praia de nudismo. Aquilo era um problemão, pois não havia como contorná-la, a exemplo daquela em Santa Catarina, no Circuito Costa Verde & Mar.
Deixariam-me passar? Uma resposta que só teria quando lá chegasse. Contei para a esposa, que assustada, perguntou:
- E você vai tirar a roupa!?
- Se tiver que tirar, eu tiro, mas o capacete, de jeito nenhum!
A razão do porquê não fiz tal roteiro? Porque todas as pousadas, de Mangue Seco até Porto de Sauípe, só aceitavam vender pacotes de 4 dias no mínimo, ou seja, pernoitar uma noite apenas, nem em sonhos. Por isso meu ano começou no dia 9, e por conta disso, tive que perder um dia, o dia em que talvez tivesse que pedalar pelado...
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