Mangue Seco - Siribinha

Se descobrir fosse fácil,

ninguém inventava...

Se decidir fosse difícil,

ninguém descobria...


Aracaju (SE) - Mangue Seco (BA) - Siribinha (BA) - Baixio (BA)

Deu errado? Improvise... (ii)
(Paulo R. Boblitz - jan/2015)

Se você é daqueles que se preocupam com tudo aquilo que pode dar errado, por certo que está agindo contra a natureza dos acontecimentos...

Claro que você não pode sair que nem um pomba-lesa; não exageremos...

Na noite anterior, depois do banho revigorante, sangue calmo a passear pelo corpo, equipamentos nas tomadas carregando, alguma coisa já organizada, notei leve coceira na virilha. Não era uma coceira das que coçam, mas um aviso do corpo que me indicava, com leve pimenta, o ardor da assadura. Em dado momento dei-me conta, justo quando não mais deveria haver preocupações, do leve incômodo que me importunava.

Afastei as coisas e tudo estava meio vermelho, ali me dando conta que esquecera do Hipoglós.

Não era nada sério, mas toda coisa séria começa desse mesmo jeito. Parei, pensei um pouco, assim como quando a gente pensa em amenidades, justo quando as soluções costumam aparecer, e ela estava logo ali na minha frente: meu baton...

Baton, do francês, literalmente bastão, é tão antigo quanto as pirâmides, porque naquele tempo, as mulheres já queriam ficar mais belas; Sofia me cutuca, interessada...

- Não, Sofia. Não existem batons para bicicletas.

Meu baton é baton porque tem a forma, o jeito, a embalagem, o funcionamento de um baton, mas é feito de manteiga de cacau, para aliviarmos as rachaduras nos lábios, depois de vários dias de pedal. Peguei-o, retirei-lhe a tampa, girei sua base, afastei novamente as coisas, e lambuzei aquilo tudo; Sofia me olhava de nariz torto...

Querem saber? Quando acordei, afastando as coisas para ver melhor, estava tudo novo, quer dizer, a pele não apresentava nenhuma irritação.

Meu segundo dia havia sido planejado com duas opções: 1) seguir pela estrada até o povoado Coqueiro, e de lá até Siribinha, passando pelo povoado Costa Azul, naquilo que eu achava que seria uma estrada. De fato é um caminho, mas para bugres; jamais para bicicletas, e 2) seguir pela praia, porém tendo que subir uma duna que já conhecia, passando pelo Farol de Mangue Seco, descendo do outro lado já à beira d'água. Havia ainda verificado a tábua de marés daqueles dias; dava para começar a pedalar pela praia, a partir das 10 da manhã, sol bastante alto.

Quando pedalamos por conta de marés, não podemos traçar um trecho comprido, pois o intervalo útil não é longo.

Diante de duas escolhas não muito boas, escolha sempre a menos dolorida, e a minha foi escalar a duna, areia solta, Sofia carregada. Tomei meu café, que começava a partir das 8, batata doce, inhame, banana cozida, melancia, bastante ovo mexido no pão, fechei a conta e fomos embora, preparando o espírito para o esforço, e se querem saber, insano e que eu já conhecia de outros lugares.

Assim, chegamos na praça da pequena igreja, onde seis crianças jogavam bola. Parei na sombra, enxuguei o suor, bebi um gole d'água e gritei:

- Podem parar com esse jogo!

Eles pararam, e um mais atrevido me olhou com cara feia, perguntando:

- Pur-quê!?

- Pra ganhar dinheiro... - respondi sorrindo.

Todos os cenhos num instante ficaram leves, dentes brancos de sorrisos, e se aproximaram...

- Negócio é o seguinte: eu empurro e guio aqui na frente, e vocês vão empurrando aí atrás. Lá em cima eu pago! Que tal?

E todos ficaram alegres, mostrando os polegares para cima; eu estava salvo...

Sofia é que não gostou, quando sentiu aquele monte de mãos a empurrando, justo nas intimidades de sua garupa. Alisei-lhe a mesa do guidão, seu lindo pescoço, e cochichei: são crianças...

Descansamos em três paradas; a montanha de areia estava a ser vencida...

Por fim chegamos, bati uma foto de Sofia com a gurizada, fiz o pagamento, não antes de fazê-los prometerem que não haveria briga na partilha...

Dali para a frente era só descida e conseguiríamos dar conta do recado, ainda mais embevecidos por tanta vista linda; Sofia suspirou alegre...

Pegamos uma estradinha úmida por entre o mangue, e pedalei; estávamos os dois, muito alegres, e já eram quase 10 da manhã, enfim o previsto começando a se acertar. Pegamos mais uma subidinha de areia frouxa, paramos, olhamos para trás e Mangue Seco com seu Farol, já era passado. Sofia pediu um pouco de sombra, e aproveitei para me recompor enquanto repassava as marcas do Roteiro. Olhamos a grande faixa de areia e sorrimos; o mundo era nosso, e nos convidava...

Sofia é temperamental, romântica e muito alegre - estacou de repente porque queria conversar com um camelo.

- Sofia!, aquilo não é um camelo! É uma ovelha, e se você chegar perto, vai levar uma marrada...

Ela me olhou desconfiada, perguntando:

- Tem certeza?

- Absoluta...

Liberou então suas tamancas e partimos, mas logo, resoluta, parou novamente. Queria uma foto de lado, como recordação.

Chegamos num ponto em que a tristeza só aparece quando a maré está baixa, quando num dia a sorte resolveu passear, abandonando-os. Sobraram apenas os escombros de antiga embarcação ali encalhada, que durante a Segunda Grande Guerra Mundial, foi torpedeada. Uns dizem ser um submarino alemão, outros, um vapor brasileiro. Fosse o que fosse, as ondas nesse tempo todo ali batendo, criando cracas, por certo ainda abafam os gritos de terror e dor daquele dia. Costa Azul estava a 6 quilômetros apenas. Olhei o relógio, consultei meu Roteiro e já havíamos pedalado cerca de três quartos do trajeto; estávamos adiantados; almoçaríamos...

Sofia, à sombra, tirou leve cochilo; ela não ronca...

Pedi uma Pescada inteira com arroz, farofa e vinagrete. Não tendo pirão, veio feijão...

A moleza começava a atacar, misto de comida gostosa com fome boa, sombra e vento repleto de oxigênio. Antes que Sofia desabasse em sono profundo, chamei a amiga com carinho:

- Sofia!? Vamos?

Ela fez que sim, espreguiçou e já estava pronta. Voltamos para a areia dura e partimos, não sem antes pararmos numa daquelas bandeirolas que vínhamos observando ao longo do caminho. São ninhos de tartarugas, catalogados, protegidos por uma tela para que a raposa não consiga escavar, protegidos por Lei ambiental, e se você for pego mexendo num deles sem autorização, vai em cana sem perdão.

E querem saber? Estão certos, certíssimos, até fizeram um excelente trabalho de conscientização junto aos nativos pescadores, que hoje são colaboradores, não mais predadores. Você quer ovo? O supermercado está cheio deles, todos baratinhos...

Quando vocês pedalarem pela praia, sempre que se aproximarem da barra de algum rio, a faixa de areia tenderá a se estreitar, pelo menos foi assim nas três barras por onde passamos. Também podemos notar uma descontinuidade na paisagem, como se houvesse uma curva, quando você deixa de ver a praia e só vê mar. No meu caso era a barra mesmo, do rio Itapicuru, a separar-nos de Siribinha, em 2,5 quilômetros. Estávamos com sorte, pois um Pescador jogava sua tarrafa em dia de peixe pouco. Ao avistar-nos, levantou o polegar satisfeito e fez sinal para a outra margem; respondi que sim...

Sorrindo, logo encalhava na suave areia para nos transbordar para o outro lado; agora já podíamos ver as casas de Siribinha. Indicou-nos a pousada dos espanhóis, que na verdade são portugueses, Dona Tina e Seu Perdigão.

Chegamos em tempo, pois a maré já enchia a plenos pulmões às 3 e meia da tarde. Como a nos saudar, bombas estourando próximo da igrejinha. Estavam chamando para a procissão do Bom Jesus dos Navegantes, que aconteceria à noite, com mais bombas me acordando.

Banho tomado, coisas afastadas para ver como andava a pequena assadura..., baton de manteiga de cacau milagroso...

Visitei a igrejinha, perguntei sobre alguma casa de massas, e o jeito foi comer um sanduíche com ovo, afinal havia almoçado meio tarde.

Já na minha cama a escrever as memórias do dia, observava Sofia quieta, minha bandana sobre ela a secar, como se um pequeno véu em formosa dama; dormia sossegada, mulher guerreira, mulher de paz...

Relaxado, degustava um saboroso vinho do Tejo, recomendação do Seu Perdigão, até que o sono também embaralhou os dedos, as memórias e as rezas...

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