Trilha é trilha, passeio é passeio...
Felizes os que conseguem misturá-los...
Bobos aqueles que pensam dominá-los,
pois que a beleza, só encanta a quem a vê,
e para vê-la, é necessário a humildade...
Trilha de Itabi - Cachoeira Poção de Pedras
(Paulo R. Boblitz - jul/2010)
A, e, i, o, u, ipsilone..., já cantava Luiz Gonzaga, o rei do baião.
E complementava: "o jumento é nosso irmão..."
Dizem que ele dá as horas no sertão, dizem que ele tem a cruz no lombo, porque Jesus ali teria feito pipi. Sobre o pipi não se tem documentos, mas que ele carregou Jesus, carregou. Carregou até na famosa entrada na cidade de Jerusalém, no Domingo de Ramos, o início de tudo...
O jumento é o camelo do Nordeste, e empaca porque não é burro, ao contrário, porque viu algum perigo iminente, assim dita o instinto...
Jumento, ou jegue, ou burrico ou jerico, carrega de tudo, sendo mais famoso pelo tamanho da ferramenta que possui, aliás, nesse item, todos sonham ser jegados...
Eles zurram, assim se fala quando estão a fazer róóooon-íhc!-róóoon-íhc!-róon-íhc!-róooooooonn...
Itabi, do Tupi-Guarani ita = pedra, e do Latim bi = duas, cidade sergipana que os venera, em setembro faz uma grande festa, onde todos eles ficam bonitos em suas fantasias, correm e ganham troféus. A exemplo de Riachão do Dantas, que tem sua homenagem ao Bode Bito, Itabi também tem sua praça com a estátua do Jegue, felizes manifestações aos animais que nos ajudam, e que não nos exploram...
Desta vez estava tudo muito atrasado, quase duas horas, pois alguns entenderam que só precisavam chegar às 6, lá no ponto de encontro. Assim, começamos nossa trilha mais tarde, depois de percorrermos um longo caminho com o Caldas, que inaugurava o novo reboque, agora com 2 eixos; um bom dia para se obter respostas, asfalto molhado, nuvens super carregadas nos ameaçando as cabeças, já chovendo pelos horizontes...
Não havíamos nem terminado de descarregar as bicicletas, já a chuva apertava, ventando e fazendo frio, mas não tinha importância, pois no dia anterior, um sábado bonito e porreta, comemorávamos antecipadamente o aniversário do Cabra Véio, 20 de julho, "58 anos nos côro", ao som de isotônicas e tira-gostos feitinhos na hora, onde ele todo orgulhoso, charuto fedorento fumacento nos lábios, nos mostrava sua netinha Olívia, apenas 3 meses de felicidades.
Antes da partida, houve a preleção do Omar, que nos explicava o porquê do nome, Ita em Tupi-Guarani sendo pedra, e Bi sendo duas, pois duas eram as pedras, quando o interrompi e lhe sussurrei:
- Caba Véi, se fossem três, seria Itatri...
Ele sorriu e foi complementando até chegar no Itapenta. Houve a Oração tradicional a solicitar proteção e partimos, uma boa descida até Itabi, leve garoa a nos molhar, cocô de jumento derretido ao longo da via, até que lembrei que não havia ligado o GPS. Assim, a trilha ficou desfalcada em 6 km.
Ao todo foram os 49,1 plotados, mais os 6 esquecidos, perfazendo 55,1 km de muitos suores, 834 metros de subidas acumuladas, belas visões de muito verde, muito milho embonecando, vacas tranqüilas pastando, alguns jegues pelo caminho, livres como nós, afinal era domingo...
Christiane em sua primeira trilha, Carniça foi ficando, mas demos, eu e Fernando, a força e a paciência que ela necessitava, pois não tínhamos compromissos, a não ser chegar na cachoeira, um belo banho tomar, um gostoso rugido a troar, uma volta pelo mesmo caminho...
E ela conseguiu. Somente na volta, depois de vencer o pior trecho de barro e lama, deu-se por vencida e foi para o ônibus, bom senso que têm, todos aqueles que reconhecem não estar ainda bem preparados.
Deixamos nossas bicicletas na casa humilde do Seu João Vieira de Souza e sua esposa Dona Isabel, 67 anos, calmo na pequena varanda a nos acolher, a nos dizer que Deus nos manda amor através do milho, do feijão, da macaxeira, da criação, das tantas riquezas plantadas para serem colhidas; levou-me em seu túnel do tempo, ao ano em que ali chegou, 1951; eu só nasceria 1 ano depois...
Mundo pequeno, compromissos marcados na agenda dos destinos, não importa a distância em que vivamos, ou que nasçamos, um dia sempre nos encontramos, sem razão, sem questão, sem apresentação, sem telefonemas. Simplesmente nos encontramos..., não importa os caminhos, os que nos trouxeram, os que nos levarão embora. Importa que fica a marca, a lembrança, encontro do sofrimento na terra, com a alegria dos pedais... - a memória, essa que nos enfeita o passado, é quem guarda os acontecimentos.
O Homem da terra, a Mulher da terra, têm marcas da vida por tanta lida, essa mesma que nos oferece, o belo e o suave, o marcante, naturezas lutando contra a Natureza, incansável labuta de todos nós, alguns mais afortunados, outros menos favorecidos, juntos num mesmo instante, num mesmo sorriso, numa mesma igualdade...
Seguimos pela senda espinhosa e fechada, lugar de poucas andanças, e finalmente chegamos ao nível do riacho, mundo pequeno em que o improvável tem seu reinado; encontrei o Miranda, um sujeito grandão petroleiro de Piranema, conhecido no Pedal até Mangue Seco - ele acabara de descer fazendo rappel; agora lutava para acender o carvão, um churrasco a dar água na boca em quem já sentia seus humores...
Procurando melhor ângulo para as fotografias, olhando onde pisava de sapatilha nas pedras lisas, fui barrado por aquela mão: era o Zuchi, meu amigão petroleiro Petrobrás, que na Nova Zelândia saltou para o vazio, experimentou o que é ver a Terra de ponta-cabeça num bungee jumping - ele confessou que estava criando coragem para descer pela cachoeira. Desceu...
A cachoeira está ali há um tempão, água de roldão que escava, que racha, que corrompe o duro granito em polimentos, grãos que se chocam trocando energias: o que vem é o que vai, arrumando companhia...
Não tomei banho, não descalcei minhas sapatilhas cheias de água e barro - preferi sonhar, ver a linha do tempo desenhar cada aresta, formar o cânion, deixar-se vestir pelo verde da vida, essa que se aninha em qualquer fresta, determina seu reino, convive com a fria realidade, no fim cobra o seu preço, pois pedra não alimenta - já era hora de eu ir embora...
Encontrei Christiane que havia tido a mesma idéia, e subimos juntos; num dado instante ela perguntou, enquanto apontava:
- Sabe que árvore é essa?
Eu fiz que não, e ela continuou:
- Na minha região, a chamam de Clorofila. Observe seu caule esverdeado, pois que sem muitas folhas, foi obrigada a se defender...; ela faz fotossíntese pelo tronco.
Fiquei olhando a árvore estranha, num tom amarronzado parecendo cheia de espinhos, e lhe disse:
- A gente, quando quer, também tem a natureza bonita...
Atrás de nós vinha o Pedro Viégas, e dali partimos decididos a pedalar antecipados, ganhar tempo em relação aos melhores preparados...; em pouco tempo chegavam Vovô, Omar e Daniel, e num instante todos estavam pegando suas bicicletas.
Aos poucos, fomos sendo ultrapassados; Omar ensinou a um novato, como nas catracas se comportar, e dali em diante não o alcançamos mais...
Itabi se aproximava, e quando finalmente nela penetrávamos, Omar e Daniel ficaram para trás, ainda gritaram por mim mas não ouvi, afinal a subida era escorchante - foram ver as pedras e eu segui, sozinho, até que olhei para trás e não vi ninguém, algum pneu furado, pensei, mas atrás deles ainda vinha gente, me protegi quando pensei em voltar... Parei, enxuguei o suor, bati fotos de Itabi lá embaixo, ganhei tempo mas ninguém aparecia...
Segui devagar, preocupado, ainda mais quando Gilton e Cândida me alcançaram...
- Cadê o Omar e o Daniel?
- Não vimos ninguém - eles disseram...
Estávamos próximos da chegada, aquele mesmo ponto de partida pela manhã, e qualquer coisa, algum carro os buscaria. Gilton informou que Fernando e Ada também vinham lá atrás. Mais alguns minutos, chegavam os quatro: Omar e Daniel haviam ido visitar as pedras, mas o local estava em reformas. Para mim, foi como ter ido a Roma e não ter visto o Papa. Não faz mal..., depois eu volto com a esposa e conhecemos...
Fizemos fila para um banho bem gelado, almoçamos e fomos embora; o sossego sempre chega depois da trilha, não importa se o filme apresentado tenha sido Femme fatale, um filme maluco, assistido entre cochilos...
A chuva resolveu novamente apertar e não paramos, a não ser para irrigar, em amoníacas mijadas, o pé da cerca de algum afortunado.
Trilha passada, nova trilha a ser sonhada; Os Zuandeiros estarão divididos: a maioria seguirá para Alagoas, mas, Boblitz, Gilton, João de Deus e Omar, para São Paulo, para o Caminho da Fé pela Mantiqueira em Minas Gerais, uma trilha do Fio do Cabrunco...
* * *
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário