Trilhas em Garanhuns (primeiro dia)

Uma trilha, sempre cheia de novidades,

acaba se transformando em surpresas,

quando ainda não mapeada.

Termina ficando mais emocionante,

onde tudo novo, vira desafio...



Trilhas em Garanhuns (primeiro dia)
(Paulo R. Boblitz - abr/2010)


Não conheço nenhum despertador que seja simpático; quando o meu tocou às 3 e meia, acordou-me de um bom sono, ainda tudo muito escuro lá fora, pois acabamos de sair do verão.

Precisamente saíamos às 5 da manhã, em comboio, Ricardo Hsu, Marcelo, eu, e meu filho numa moto. Hsu levava a esposa Lu e os filhos Isabela e Felipe, e também a mãe, Dona Nancy, uma chinesa simpática semple solindo com seus pouco mais de 70 anos, a convessá alegle com aquele sotaque calactelístico dos chineses.

Perguntei-lhe se também iria pedalar, e ela prontamente respondeu:

- Non, non..! Eu pedala só péto de casa, pôco, né!?

Com Marcelo iam a noiva dele e o primo dele, o Juca. Comigo iam a esposa e nossa filha; meu filho levava a esposa dele na garupa da moto.

Por volta das 9 da manhã, nos instalávamos no hotel em Garanhuns, e algo próximo das 10 e meia, chegava o Adagmar com o Marivaldo, um Professor que havia vindo de Lajedo; o restante dos ciclistas não pôde vir, mas depois descobrimos o porquê...

Estávamos numa sexta-feira santa, e a cidade parecia dormir, de tão calma que nos estendia as avenidas, e logo tomávamos um estradão, novamente com o mesmo comboio, mas desta vez sem a moto, potente demais para trafegar sobre pedras soltas.

As casas cada vez mais isoladas, estavam todas trancadas; parecia que todo mundo havia se mudado, que atravessávamos um campo fantasma. Sexta-feira santa, dia da Paixão, todos recolhidos segundo a tradição, forte ainda nestes rincões; lembrei da Espanha, onde o dia parecia começar depois das 11 da manhã.

Segui no meu ritmo, com Juca mais à frente, e os outros 4 disparados lá mais adiante, Hsu, Marcelo, Adagmar e Marivaldo. Vez ou outra, Hsu voltava para me rebocar ou aguardava numa bifurcação, para que eu não tomasse o caminho errado.

Numa dessas interrogações, lá estava ele para pegarmos o caminho da esquerda, e seguirmos por ele, mas, preocupado com a direção que meu filho pudesse tomar, avisei ao Hsu que estaria voltando, mas ele não conseguiu me ouvir. A estradinha era estreita, com areia frouxa depositada onde as águas corriam, e quando estava a completar a curva, o pneu dianteiro ali afundou, travando, comigo travado nos pedais...

Parecia que havíamos marcado encontro para outra queda, minha segunda, no mesmo ponto do joelho direito, no mesmo palmar da mão esquerda, mas com uma novidade: o cotovelo direito.

Bici para um lado, eu para o outro, ambos em posições nada nobres; não deu nem tempo para um xingamento, pois bicho ligeiro é chão quando se aproxima da gente... Ainda sacudia a terra, quando Hsu e minha gente chegaram, a me verem lavar as feridas com a água de minha garrafinha.

Numa descida anterior (ela pode ser vista por sobre meu ombro esquerdo, entre eu e o Hsu), eu havia alcançado os 65,4 km/hora, mas agora, diante de uma descida ainda mais bonita, eu estava dolorido demais para algo mais brilhante, principalmente no pulso esquerdo, a receber as trepidações.

Foi um longo caminho até Saloá, onde encontramos um casal de velhos numa porta larga de um acanhado comércio, como a se utilizarem da garagem para a venda de biscoitos, refrigerantes, cervejas e outras coisas mais. Simpáticos, cederam o banheiro para as mulheres, enquanto eu pedia uma bem gelada cerveja, que Juca me acompanhou num copo.

Lu apareceu com uma caixa de remédios, e logo eu passava um algodão molhado com Água Oxigenada em minhas feridas, para em seguida pintá-las com Rifocina. Ali não havia nada para comermos, por isso nos despedimos e seguimos mais adiante, para uma outra porta parecida, onde saboreamos pequenos pães com queijo e presunto; era o nosso almoço, pois não havia nada por perto onde pudéssemos almoçar normalmente. Compramos água e fomos embora, em direção à cachoeira do Coema, mais conhecida na região como "O Cu do Bicho"...

Depois de uma trilha com muitos altos e baixos, bastante difícil para mim, chegávamos à última casa. À frente, a longa descida bastante íngreme até a cachoeira. Entreguei minha bicicleta ao filho, que ficou empolgado a descer com os outros, e já quer fazer as trilhas com o pai - seja bem-vindo, filho.

Na descida, muitos mandacarus e muitas urtigas; Adagmar descuidou-se e por elas foi fisgado nas duas coxas. As urtigas, os cansanções, são as águas vivas da mata, que nos cravam, ao primeiro contato, milhares de minúsculos espinhos urticantes e vesicantes, a nos deixarem a pele em fogo.

Finalmente chegamos ao ponto mais baixo da cachoeira, agora num simplório lamento, por lhe faltarem águas mais estrepitosas, o que somente ocorrerá com o advento das chuvas, quando maio chegar. Magnífico rochedo folhado, onde a água com paciência, vem lhe arrancando imensos matacões, depositando-os inertes e vencidos, aos pés da montanha.

Marivaldo, Adagmar, Marcelo e meu filho, malucos subiram pelas pedras escorregadias e tomaram banho; Hsu, Juca e eu, ajuizados, preferimos bater fotos. Chegamos à cachoeira por volta das 3 da tarde, e algo em torno das 4 e meia, já estávamos prontos para o retorno, uma longa subida mais íngreme ainda, pois o pneu do Hsu continha um grande espinho de Jurubeba, e não havia nem reparo e nem bomba, pois tudo estava lá em cima, no carro de apoio. Segurei na roda dianteira, o Hsu na traseira, e começamos a subir como verdadeiros cabritos, escorregando, agarrando-nos nos arbustos, vez ou outra o bar-end nos freando, por atracar-se com alguma rama ou cipó. Quando cansei, o Felipe, filho do Hsu, assumiu e seguiu em frente.

Mais um pouco estávamos na casa onde ficaram a mãe do Hsu e minha esposa, onde os moradores, simpáticos e hospitaleiros, forneceram cadeiras às duas, e água para todos. Enquanto Hsu remendava o pneu, eu partia com Adagmar, adiantando o serviço, mas logo todos eles já nos ultrapassavam, pois pedal é o que não falta a todos eles.

Com meu rendimento caindo mais e mais, falei para o Adagmar seguir em frente, pois ao chegar na rodovia asfaltada, eu daria minha trilha por encerrada, afinal os outros lá na frente também estariam precisando do apoio do carro, já que não estávamos com as lanternas nas bicicletas.

Aos 48,8 km, enfim embarcava no carro de Lu, não sem antes experimentar duas cãibras, que me fizeram saltar do carro ligeiro. Seguimos em frente e logo encontramos o Juca empurrando a bicicleta; também estava cansado, no meio de uma ladeira que se estendia morosa e cansativa, por longos 6 km. O mais engraçado é que não lembro dele colocando a bicicleta no teto da Doblò; eu devia estar zureta, termo que aprendi de uma mineira, quando ultrapassamos um longo esforço.

Mais à frente, Adagmar e Marivaldo se renderam ao cansaço, cada um pegando bigu em uma janela da Doblò, enquanto durava a subida, largando a carona e juntando-se na descida ao Hsu e ao Marcelo. O frio da noite já castigava, trazido numa viração tranqüila. Mais um pouco chegávamos num posto de gasolina, onde descobri que minha nora passava mal, fruto de fome, calor e esforço. Novamente Lu se achegou com sua pequena farmácia, entregando a ela uma pomada chinesa, para cheirar e passar nas têmporas.

Comemos alguma coisa e logo partíamos em direção a Garanhuns, ainda muito longe...

Uma trilha desconhecida para nós, portanto sem planejamento, mas vencida por quase todos, Hsu, Marcelo, Marivaldo e Adagmar, que chegaram a pedalar algo em torno dos 92 km, muito chão num dia só, considerando os obstáculos, as subidas, o frio, o sol, enfim, a má alimentação e cerca de 4 horas dirigindo, de Aracaju até Garanhuns.

Seja como for, foi um dia maravilhoso, mais um... Chegamos ao hotel por volta das 8 e meia de uma noite bem gostosa, a ser dormida com muitos sonhos, deglutida em só descanso, pois dia seguinte mais rumores, pedais em ciclos pelos caminhos, que Adagmar cheio de orgulho, nos mostrava e contava a História, sua história como povo...

Essa parte fica para depois...

* * *

Um comentário:

  1. Ótimo texto do primeiro dia Paulo!

    Rachei de rir com a resposta de Dona Nancy!!!

    Teve um episódio legal do primeiro dia que gostaria de comentar. Quando voltávamos, logo após pegarmos o asfalto, já era noite, fazia frio, eu e Ricardo estávamos bem adiantados e sozinhos num breu danado, então falei com ele: -Hsu, vamos esperar um pouco o pessoal, pois está perigoso para nós esta estrada vazia e sem acostamento, e ele respondeu: - É mesmo, vamos só terminar de subir essa ladeirinha que agente pára. Era muito escuro e nossas lanternas não mostravam que essa ladeirinha tinha 6kms. Depois rimos bastante deste episódio!

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