Segundo dia - Trilhas em Garanhuns

Não há cansaço que não vá embora,

depois de um bom descanso...

Não há coragem que não retorne,

depois que esquentamos nossos motores...



Trilhas em Garanhuns - segundo dia
(Paulo R. Boblitz - abr/2010)

Garanhuns, segundo o sítio oficial da cidade (http://www.garanhuns.pe.gov.br/um_pouco_garanhuns.php), está a 842 metros acima do mar, rodeada por 7 colinas, um número mágico...

Acordamos cedo, tomamos um bom café e partimos para o que seria o nosso segundo dia de trilhas, apenas 17 km, para compensar a lida anterior. Paramos no Relógio das Flores e batemos uma recordação. Seria um tapa, pensei...

Logo pegamos o caminho para Santa Quitéria das Frexeiras, um pequeno vilarejo onde se situa o polêmico santuário, na verdade pagão, em litígio com a Igreja (http://acertodecontas.blog.br/atualidades/santuario-no-interior-e-causa-de-briga-juridica-entre-a-igreja-catolica-e-familia-proprietaria-de-imagem/); a subida era suave e nos descortinava o lindo vale ao longe, quadriculado cheio de cores, pastos e plantações. Soprava um ar gelado e perigava uma garoa...

Marivaldo não estava mais conosco, pois precisara voltar na noite anterior para Lajedo, onde reside, não sem antes nos lançar um convite para pedalarmos lá na cidade dele. Vamos fazer o possível...

Havíamos descoberto o porquê do ninguém aparecer para a trilha da Cachoeira do Coema, nosso primeiro dia... - eles já conheciam as dificuldades de se chegar até o "Cu do Bicho", como aquela depressão é conhecida na região.

Uma trilha não se mede pelo número de participantes, mas sim pelo tamanho da qualidade com que seus integrantes interagem. Assim, não importa a distância a se percorrer, mas sim a quantidade de sorrisos e solidariedades que trocamos ao longo dela.

Trilhar, do lat. tribulare, significa moer, marcar com pegadas, palmilhar por um caminho, onde tribulação, também querendo dizer aflição, nos remete às reflexões, pois tudo à volta, grandeza e pobreza, riqueza e beleza, nos contrasta os corações, nos remete aos significados, nossas íntimas verdades... Trilhar, portanto, é manter o elo da união, o comungar das mesmas expressões, dos mesmos sorrisos, dos bons momentos em que cansados a uma boa sombra, filosofamos em curtas histórias...

Pedalávamos devagar, como a saborear o caminho molhado de uma fria manhã, quando Adagmar, de repente irrompeu em explosão, naquele siga-me quem puder, mergulhando numa sensacional longa carreira ladeira abaixo, ar gelado nos cortando as peles, piso úmido socado, nossas idéias desgrudando-se para trás...; meu punho ainda doía... - deslizei sem o ímpeto de todos eles, apenas a sentir o vento, a ouvir os pneus, o ranger da suspensão...

Desembocamos numa pequena praça, numa pequena feira - estávamos em Frexeiras, onde o dinheiro se mistura com a fé, os dois se corrompem... Crédulos aparecem de todos os cantos, a indústria do fervor se estabelece, Deus é escarnecido...

Visitamos o museu, há vários deles, onde riquezas foram deixadas, de um pobre povo a quem Deus nada Exige...; levaram coisas caras, algumas até caríssimas, quando bastava que levassem apenas o amor...

Visitamos o santuário, onde o mercador, dono por sinal, lembrava dos "pagamentos" das promessas, ali com a mão pronta, sócio da Santa, guardião dos valores que Quitéria não reclama... Meus olhos cruzam com os dele, mas dos meus logo eles fogem...; ele sabe que eu o conheço, pois o encaro com desprezo...

Rojões explodem como mais um ato, da peça que se encena, chamarizes para mais crédulos, que trazem seus dinheiros, suas ignorâncias e temores, levando de volta para casa, bobagens que a feira explora, lembranças que a Razão não levaria...

O ar é pesado e vou embora, não antes de ser interpelado, pois o dono é curioso, quer saber quem somos e de onde viemos, agora já do lado de fora, daquela grade que guarda os dinheiros, ritual da arrecadação interrompido. Não lhe deixamos nada...

Lá fora fotografo uma barraca de embromações, gororobas e pomadas, placebos, apenas isso... Minha bicicleta pelo Juca é derrubada, mais um pouco, uma garrafa de gororoba cai no chão, pintando a pedra de castanho; acidentes... Não me querem por ali...

Vamos embora, numa nova descida suave, mais verdes ares se achegando, até que numa encruzilhada nós paramos...

Adagmar pergunta:

- Voltamos pelo caminho mais longo, ou pelo caminho mais curto?

- Pelo caminho mais bonito... - respondemos todos, como se estivéssemos combinados.

O mais bonito era o mais longo, e o mais complicado..., aquele da esquerda, logo ali naquela represa estourada... Parei para fotografar o Hsu e o Marcelo, descendo montados um degrau de quase metro e meio; Adagmar amarelou... Enquanto me posicionava, uma cobra fugiu de mim, pequena e marrom escura, enfiando-se na turfa seca. O lugar inteiro não era bom...; meu Anjo da Guarda era mais forte...

Depois da represa arrebentada, uma longa subida sombreada..., afinal havíamos escolhido o caminho mais bonito, até que ela terminou e posamos para a posteridade, um mundo todo às nossas costas...

Chegamos onde Adagmar todo orgulhoso, nos mostrou o que parecia só deles ser: Barrigudas...

- Parecem ser Baobás..! - expliquei, interrompendo o sorriso do Adagmar, que refletiu que elas também existem em outros lugares.

Estávamos próximos de São João, onde buscaríamos água, pois já estávamos todos secos. No caminho, uma descida de dar água na boca, um suplício de subida, felizmente bem longe de nós, fora do nosso caminho...

Em São João, Juca descobriu melancias; queria comer uma inteira, água pura... Hsu, martelando-as com os dedos, aos sons ocos que devolviam, escolheu a mais gostosa; preferi a minha cerveja, que Adagmar acompanhou, ficando entusiasmado, a recitar poemas... Era hora de partirmos...

Descendo mais um pouco, chegamos na antiga e abandonada estação de trem de São João, onde Adagmar nos deu uma aula de História, contando como os escravos trabalharam, na antiga exploração inglesa; eles ainda nos exploram...

Seguimos até bem próximos de Garanhuns, pela antiga linha férrea, hoje sem trilhos e dormentes, cercas de um lado e de outro, pelo meio areia fofa em cumplicidade com o Sol, que naquela hora nos castigavam...

Pegamos o asfalto e mais subimos, chegamos finalmente em Garanhuns, os 17 km transformados em 31, prontos para um banho e um almoço, onde vi pratos em alvoroço, tamanhas fomes que reclamavam, das energias que se foram...

Missão cumprida, tirei o resto da tarde em cochilo... Acordei com as vozes no corredor; estavam a combinar uma outra trilha, comida chinesa ou brasileira? Consultei a retaguarda e preferimos umas pizzas; dia seguinte soube que a comida chinesa estava salgada...

Acordamos num domingo bem calmo e ensolarado. Eram 7 e meia quando meu filho e a esposa dele partiram na moto; meio dia nos ligaram, tinham chegado bem, porém debaixo de muita chuva...

Almoçamos e fomos embora, sem pressa, sem demoras...

Chegamos em casa já de noite, já temos muitos planos... Adagmar já nos cobra, novo passeio em outra hora...

Paciência, que voltaremos...

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