Negão...

Trilha é alguma coisa um pouco mais complicada, sem as facilidades das obras de arte, que toda boa estrada tem.

Trilha lembra cavalos, que lembra carroças, que lembra as sendas por onde o homem anda e não corre...


A história?, aí embaixo...


Negão...
(Paulo Boblitz - ago/2009)


- Bate logo essa foto!, Negão..!

Acabáramos de sair do hotel onde havíamos pernoitado, reunidos na praça da planta de maconha, uma espécie de alegoria em concreto a enfeitá-la, representando um cacto verde estilizado, inscrito num círculo amarelo, que o João de Deus daquela forma batizou.

Estávamos ali para uma breve reunião, onde ouviríamos as últimas recomendações, e faríamos uma Oração ao nosso Pai, conduzida pelo pastor Raimundo. Se ele não for mesmo um Pastor, condensou muito bem todos os nossos desejos de um dia bom e feliz.

Haveria de ter a foto oficial, e depois que eu nela saí, posicionei-me para também fotografar.

E novamente, sob a demora de um bom enquadramento, agora o grupo inteiro me cobrava:

- Bate a foto, Negão..!


Foi o apelido mais inusitado que recebi, logo eu, branco rosado...

Já na partida, a descoberta de um pneu furado, pois Meire havia se encontrado com um prego. Após o reparo ágil, enfim partimos sob ameaças de chuva, com a temperatura entre os 10 e os 15 graus. Urgia que nos aquecêssemos.

Poucos minutos atrás, a descoberta do esquecimento do Omar, por ter deixado o GPS em casa, nada que fizesse muita falta, pois ele mesmo havia percorrido a trilha, duas semanas atrás. Mais à frente, num tranco mais acentuado, sua mini-filmadora de guidão saiu voando, o que produziu uma força tarefa a procurá-la, somente os melhores, pois teriam que retornar na trilha; foi encontrada sã e salva numa grota, ainda filmando.

Até ali tudo bem, até com o Sol querendo mostrar o sorriso. Estávamos em nossa primeira parada estratégica, com abastecimento de água, bananas, maçãs, e a revigorante troca de observações, somada aos sorrisos e às troças do caminho. Naquela altura, já estávamos significativamente respingados, da mistura água e barro...

Partimos sem a força tarefa que procurava a câmera, e a trilha foi ficando cada vez mais trilha, mais pesada, assim como pesadas já estavam as bicicletas, com tanta lama incrustada que, a cada descida mais vigorosa, pareciam-se com aquele cachorro molhado que se sacode, distribuindo pequenos torrões para todos os lados; chegaram a entrar em minha narina, em minha boca, e até nos cabelos...

A primeira grande vertente, todos tivemos que subir empurrando, pois até andando deslizávamos; barro mole se juntando nas tamancas, nas catracas, nas coroas, na corrente, nos pneus, e em nossos juízos...

Estávamos chegando em nossa segunda parada programada, onde havia um chafariz e uma fila enorme para lavagem das bicicletas... Já algum tempo que eu vinha subindo empurrando a minha magrela, e ali, atendendo ao corpo cansado, e recomendação do João de Deus, enfrentei o carro de apoio pela primeira vez.

Não é uma coisa boa; não nos sentimos confortáveis... Vamos ali para pedalar, e não para andar de carro, mas o lado prático da brincadeira é quem dita a regra, somado à responsabilidade de cada um, a conhecer o limite próprio, pois que no dia seguinte tem o trabalho, têm os afazeres, têm as pedaladas que, contundidos, não podemos fazer.

Brincadeira, ainda mais do tipo sadia, não é obsessão...

Em pouco tempo chegávamos no rio Capivara, um dos afluentes do Velho Chico, a correr manso sobre seu leito de areia lavada, esculpindo pedras, formando remansos, lugar de grandes enxurradas, por ser o escoadouro natural de tantas montanhas.

Ali paramos para remendar o pneu dianteiro do João de Deus, para o Omar perder as ferramentas, e para embarcarmos mais quatro bicicletas, afinal o carro de apoio estava lá para apoiar.

Dali em diante era só subida, looonga e empinada, que ninguém conseguiu subir montado, vencendo a trilha com mais lentidão. Nos encontramos no ponto mais elevado, onde bicicletas foram baixadas, cedendo lugar a outras avariadas. Ali eu larguei do apoio e segui em frente para mais outro trecho de subidas e descidas, onde Vovô, o mais velho do grupo, com 64 anos e uma disposição invejável, me acompanhava e perdia tempo, impaciente porque não pedalava...

Nessas alturas o Sol já dava as caras, quente sossegado a produzir muito suor. Juntamo-nos a mais dois retardatários e conseguimos chegar ao ponto de encontro, onde parte da turma já nos aguardava.

Ignorando o conselho de Vovô, bebi uns goles d'água, limpei o suor, e não subi no carro, dando início à mais longa descida desenfreada que já fiz; atrás vinha Vovô com os freios como se fossem buzinas, gritando queimando as tamancas, assim como eu também fazia, apertando com vigor aquilo que mais ou menos obedecia, soltando-os sempre que uma depressão maior aparecia, apenas para mais ganhar velocidade.

Deu medo entrar numa curva molhada escorregadia, noventa graus na medida em que a descobria, sentindo o lado oposto em franca aproximação, para mais um colher em distração, roubá-lo da pista em acidente, e despencá-lo sabe-se lá em quais trambolhões... Lá mais embaixo, descobri que outros também tiveram o mesmo apuro.

Uma descida que de tão longa cansou os braços, as mãos, o conjunto como um todo, pois tudo era liso cheio de argila mole, entremeado com pedras soltas e fincadas, valas cavadas pelas enxurradas, veios de rochas desnudadas, até que o Capivara mais embaixo nos aguardando, cedeu lugar numa ponte de um carro só. Se nossas bicicletas estavam enlameadas, tornaram-se limpas pelo efeito da trepidação, da centrífuga que não cansava de acelerar.

Uma descida em que tantas crianças nos acenaram, fazendo festa como se fôssemos de algum circo, nos declarando em vibração como se fôssemos algum programa ao vivo. Sorriam admiradas e encantadas, mais felizes por uma tarde diferente, num ermo onde nunca acontece nada...

Porto da Folha enfim era realidade, com seu povo pelas calçadas, pelas praças em bate-papos, a nos mostrar o caminho certo, cumprimentar em solene tom, a nós cavaleiros em cavalos estranhos...

Ali a última parada programada, apenas nove quilômetros nos separando do Velho Chico, das águas muitas depois de cruzarem quase um Brasil inteiro, palco eterno de grandes polêmicas, a mais recente a transposição... Mais bicicletas subiram para o apoio, por cansaço ou por algum defeito.

Nos hidratamos e seguimos adiante, leve descida à frente, onde uma mulher gorda à porta, num bom conselho nos avisou:

- num tômi cuidado nus freio não, viu!?

Mal acabou de nos avisar, já estávamos em plena curva à esquerda, onde o calçamento acabava junto com nossos sorrisos. Aquilo não era uma descida...; aquilo era uma longa rampa de lançamento, onde no final só nos faltaria sair voando...

Descemos, pois que não havia como pararmos..., e iniciamos finalmente o último percurso, com vento forte de frente, como se estivéssemos em franca subida, marchas sendo solicitadas, mas para tudo existe um limite; eu já não estava mais sentindo os pés; as coxas estavam em brasa, e o Negão vermelho que nem camarão...

João de Deus fez um sinal para o carro e, utilizando-se de sua liderança, pediu para que eu embarcasse, afinal faltava só mais um pouco, e aquela última subida mais à frente não faria muita diferença. Obedeci e nele embarquei, completando o quinto carona, seguindo devagar em frente, parando em mais um com problemas, bicicleta de pernas para o ar em algum reparo. O carro de apoio nos deixaria no rio e retornaria, assim foi determinado.

Chegamos todos em segurança, e apenas uma queda leve foi relatada. As quatro mulheres demonstraram ser feras, lá na frente entre os melhores.

O Velho Chico à nossa frente, a correr majestoso suave a levar vida, dadivoso sempre por onde passa, gerando energia, gerando lagos, gerando vidas em plantações mil, produzindo amor em quem dele se aproxima, aconchego em quem dele necessita, sossego em quem dele retira o sustento.

Tomei um belo banho gelado, num dos rios mais famosos do mundo, pois que o São Francisco só perde para o Nilo, porque nunca teve uma Cleópatra. Rio da unidade nacional, corre por 2.700 quilômetros, corta 5 estados brasileiros, banha mais de 500 municípios, empresta vida a mais de 14 milhões de habitantes, que em troca desmatam suas margens, despejam agrotóxicos, erodem como mineradores, roubam-lhe a água sem o menor pudor, do monstro que despeja em média no mar, cerca de 3 milhões de litros por segundo.

Almoçamos por volta das três da tarde, uma lasanha bem polpuda e recheada, um arroz todo fantasiado de coisas vermelhas, camarões gigantes chamados Pitús, fritadas, peixe frito e peixe cozido, pirão, saladas e legumes, frango cozido e as outras várias carnes, tudo ao som de muita conversa, muitas risadas, muitas histórias com outros detalhes, pois vários foram os personagens...

O cansaço se traduzia em calmaria; a façanha se expressava em bonito orgulho; a comida, devidamente temperada pela fome, descia extremamente saborosa, e o dono do restaurante em regozijo, demonstrava sua agilidade abrindo garrafas, fazendo saltar tampinhas a certa altura, até uma cair no copo da Cláudia, espirrando refrigerante como se fosse uma fonte.

Bicicletas arrumadas, conta devidamente paga, esclarecimentos preocupados do Sr. Caldas, proprietário do ônibus que nos transportava, partimos sonolentos para mais uma longa viagem, onde a camaradagem e a alegria continuaram, lentamente abafadas pelo silêncio, daqueles que se rendiam ao sono justo.

Enquanto escrevia, bebericava comemorando, o bom vinho presente do filho.

Já fui convidado a pedalar neste feriado da pátria, de Maceió (Alagoas) para Recife (Pernambuco), três dias à beira-mar, sem lama ou grandes subidas, sem pressa e sem horários, a curtir o sol, o vento, o cheiro do mar...

Ainda estou pensando se vou, pois todos eles são um pouco malucos, a começar me chamando de Negão...


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