1a. Trilha noturna (ii) d'Os Zuandeiros, Propriá - Brejo Grande - a continuação...

E o que a alma sente,

nunca mais nos sai da mente...,

nem do coração...



1a. Trilha noturna (ii) d'Os Zuandeiros, Propriá - Brejo Grande - a continuação...
(Paulo R. Boblitz - jan/2010)


Quando fui percorrer o Caminho de Santiago, a pé, um amigo aconselhou que o importante não era o chegar...

Achei que havia entendido, e até acabei chegando, afinal estou aqui escrevendo, não estou?

Quando terminamos uma trilha, nossas expressões de certa forma se entristecem, embora por dentro estejamos todos radiantes. É o cansaço misturado com as dores, com a fome, com a sede, com a sombra gostosa, com a roupa molhada do suor, com o sangue a correr mais devagar, o coração voltando ao pulso normal, a respiração se adequando sobre uma cadeira qualquer...

Hora de arrumar equipamentos, guardar a tralha, tirar os tênis, as meias, a camisa; hora de se refrescar...

Chegamos...

Se vocês ainda não me entenderam, poderia ter trilhado o meu caminho em apenas 27 dias, mas levei os 31..., porque eu não queria chegar...

Dormia com frio, acordava com frio, passei dois terços do caminho debaixo de chuva e sobre lama, o outro terço debaixo de muito sol, lábios rachando, bolhas aparecendo, dores sendo trocadas por outras, banhos gelados, camas ruins, roncos nos mais variados tons, nas mais variadas importunações a não nos permitirem dormir, os mesmos bocadillos de sempre, a roupa sempre suja, fazendo e desfazendo a mochila todos os dias...

Mesmo assim, quando me dei conta, comecei a me tapear, andando menos...

O que eu não queria, era que acabasse, pois que chegar é isso mesmo...

Assim, como não entendia como lá corriam tanto para chegar nos albergues, aqui também não entendo por que corremos tanto para que a trilha acabe...

Estamos apenas chegando...

Está na hora de revermos esse termo Carniça...

A trilha noturna foi tão bonita, que o João de Deus não quis chegar; entendo bem o que isso significa, cumprir a obrigação ou amar o que se está fazendo. Quero que ele saiba que sou solidário a ele, pois ambos não gostamos de chegar...

Sempre seremos os Carniças, mas ouviremos os pássaros, observaremos as pedras, delinearemos os galhos não como empecilhos, mas como portais que se movem quando passamos, teremos tempo para cumprimentar as pessoas, admirar a infindável beleza ali na nossa frente, capturar o tempo e enclausurá-lo num instantâneo, objetivo maior de nossa presença, e somente após, para nos transformarmos em poetas...

Com o café reforçado já fazendo efeito, há muito no rio banhados, já especulávamos sobre nossa embarcação ali em frente, pois que cá de fora, não parecia caber essa ruma de gente...

Um a um fomos embarcando, sentando no melhor lugar, a cada barriga maior, o barco balançando e pendendo...

Têi - têi - têi - têi - têi - têi-têi-têitêitêitê..., o pequeno motor foi ganhando giros, se estabilizando no têi-têi-têi de cruzeiro...

E lembrei do susto que levara do Omar, quando ele pedalando ainda meio escuro, passando por mim, começou a cantar num têi-terei-têi-têi parecido... E lá estava ele de volta, agora com um coro acompanhando..., do motor e de Zuandeiros...

Levamos pouco mais de uma hora para chegarmos na foz, onde os dois gigantes se misturam, Velho Chico e Atlântico...

Lá ao longe, o velho Farol a exemplo da torre de Pisa, onde um dia já foi povoado, há muito pelo oceano reclamado, na luta que ele ganhou do rio...; um dia também ganhará do Farol, ou o Farol, aliado às obras do homem, como essa mais nova da transposição, a sugar o resto do Velho Chico, faça com que o mar enfim se acalme...

Ali ainda fica o que restou de uma antiga colônia de pescadores, Cabeço; ainda existem Resina e Saramém, todos povoados com muitas histórias e belezas. Sugiro uma visita ao sítio:

http://www.overmundo.com.br/guia/banho-em-saramem-e-na-resina-sob-as-bencaos-de-sao-francisco

Atracamos no Pontal do Peba, Alagoas, hoje uma área de preservação onde só vemos palhoças para abrigo de botes, reparos de redes, bóias, e sabe-se lá mais o quê...; também vimos palafitas e outras palhoças mais recuadas, onde crianças brincavam de corrida de barquinhos a vela, imitando os mais velhos que ganham a vida no mar, preparando-se desde agora, nos segredos da navegação ao tempo...

Desembarcamos numa areia alva e solta, onde o vento era o Senhor...; mais ao longe, ilhas naturais e a arrebentação suave, cúmplices num paraíso...

Enfim fomos para a água, amena e calma, convidativa a nos entreter com suas pequenas marolas. Fazia uma hora em que vínhamos navegando tomando cerveja, e continuávamos...; uma hora sem saber que o barco tinha banheiro...

- Pessoal, para que lado está correndo a água? - perguntei enquanto entrava no rio, já que era zona de influência de marés.

- Para o mar..! Por quê!?

- Porque tenho que fazer xixi...

E mijamos nas calças, sem nenhum pudor...; por instantes, a temperatura fica louca, mas logo, logo, tudo se estabiliza..., uma situação interessante, pois não precisamos das mãos...

Como o Sol não é muito meu amigo, disfarçando retornava para o barco, para de lá observar e fotografar todos no banho, claro a fazerem também xixi nas calças em grupo. Acho que desci do barco umas três vezes, mas agora eu já sabia para onde a água corria...

De lá, levantamos âncora e rumamos para outra praia, desta vez subindo o rio, onde rio e lagoa competem pelo bom banho, num local com mais estrutura, por conseguinte mais turistas; vimos um barco cheio de japoneses, todos sérios, calados e compenetrados, um contraste com todos nós, pois enquanto eles sorriam para dentro, nós sorríamos para fora; compramos cocadas de todos os tipos, todas saborosas com leve gostinho de carvão.

À nossa volta, um pequeno cão enlouquecido a correr em todas as direções, tentando cheirar os pequeninos Guaiamus (espécie de caranguejo), que entravam e saíam de suas tocas, assustados. Alguns tomaram banho na lagoa, mas a preferência foi pelo banho no rio; mais uma entrada eu precisei, e já foram me apontando para onde a água corria. Adoro gentilezas...

Passamos cerca de duas horas e meia, tomando banho, conversando, rindo muito, bebendo cerveja ou guaraná, fazendo xixi, até que algum chato nos lembrou da hora, pois teríamos, agora contra a correnteza, quase duas horas de têi-têi-têi-têi, aquele insistente barulhinho de um cilindro só.

Não sei se descobriram somente ali na volta, ou se foi para acordarmos o Edson a todo instante, recostado sobre a porta do banheiro... O fato é que se estabeleceu uma procissão, cada um sendo fotografado, principalmente na saída; aplausos e elogios, tanto na ida quanto na volta, fez do banheiro um palco iluminado...

Não lembro a hora, mas em dado momento, Fernando, o Lentinho, munido de uma pequena garrafa de água mineral, parado à minha frente e virado para todos, iniciou discurso inusitado, e quando consegui entender, já era tarde, já estava batizado com a água santa do São Francisco. Solenemente entregou-me a garrafa, solicitou que a enchesse, e que eu fizesse um outro discurso escolhendo alguém para o mesmo batismo.

Impressionante como para a folia, as coisas se resolvem rápido; mal me preparava para encher a minha garrafinha, já me davam outra, cheia..! Todo mundo nesse mundo deveria ser gentil, e esse mundo seria bem melhor, como na hora quando fomos guardar as bicicletas, sendo a minha tamanho grande, necessitando ir no segundo andar; quando a erguia para entregá-la ao Raimundo, descobri estar sem forças, pois era eu levantando a magrinha, e o Gilton a puxando para baixo, pelo pneu da frente...

Escolhi o cantor Omar, aquele do têi-terei-têi-têi - têi-têi..! Dei-lhe um banho que salpicou na Meire, e lhe entreguei a garrafa.

Um a um foi sendo batizado, escapando só a Marília, que se protegeu com a máquina e se trancou no banheiro; o Comandante José Bento, dono do barco São Bento, também foi poupado.

Mais um pouco, atracávamos em terra firme, bem defronte do restaurante do Mangabeira, donde os aromas já saíam misturados; almoçamos às duas e meia da tarde, o almoço mais eclético já visto, onde reinaram os Guaiamus engordados em cativeiro com farinha de milho, o Pirão de Guaiamu, Frango Grelhado, Carne disso, Carne daquilo, Salada de todo jeito, Arroz, Feijão Tropeiro (que tem uma ruma de coisa dentro), Pescada frita em postas, Batata Inglesa cozida, e é bem provável que mais algumas coisas, pois a cerveja estava a comer no couro...

Reparando, vai ver é por isso que a maioria é barriguda, pela cerveja ou pela comida; eu pensava que pedalando com eles, fosse emagrecer, mas acho que estou engordando...

Sempre tem um chato que lembra a hora, e mais uma vez estávamos notificados... Demos adeus ao Velho Chico e partimos; perguntei as horas e me responderam quatro e meia...; reclinei o encosto, fechei os olhos e deixei que todas as vozes ao mesmo tempo, se misturassem com minhas idéias, momento não recomendável para fazermos poesias...

Mais um pouco, o Sol do finzinho da tarde vinha me cutucar, como a também se despedir, agradecer por tê-lo deixado nos acompanhar.

Em Laranjeiras, um pulo só de Aracaju, Caldas, o Seu Canoas, fazia uma parada técnica para esticarmos as pernas, encolhermos as bexigas inflacionadas, e comermos alguma coisa...

Já no ponto onde tudo havia começado, nos despedimos e fomos embora; enquanto aguardamos uma outra aventura, uma trilha pesquisada pelo Raimundo, dia 21 de fevereiro, da cidade de Lagarto até Simão Dias, estaremos pedalando, mantendo os motores aquecidos, as magrinhas em movimento, o juízo no canto certo...

Assim, nunca chegamos...

* * *

Um comentário:

  1. Sensacional!!! Esse pedaço do rio está cheio de simbolismos. Te convido para conhecer o nosso projeto Os Chicos, que está em busca de documentar a cultura oral da população ribeirinha do São Francisco. DÊ uma visitada em nosso site: www.oschicos.com.br

    Abraço

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