Competição em alto mar
(Paulo Boblitz - dez/2005)
Natal de 1984? 1985? Não lembro mais, pois já faz muito tempo...
Estávamos embarcados em pleno natal e ano novo, e alguma coisa haveria de ser feita. Morávamos em contêineres à bordo da Balsa de Serviços 3 da Petrobrás, balsa grande por sinal, que ficara ancorada ao lado da Plataforma de Curimã 2, irmã menor da Plataforma de Curimã 1.
Era gostoso sentar no último cabeço das amarras, e ficar observando as ondulações daquele convés comprido, ao sabor das ondas que nos passavam por baixo. Que construção maravilhosa, viva acompanhando o ritmo da dança ondulatória, em flexões ventrais... Quantas forças não estariam conversando naqueles momentos?
Estávamos montando as facilidades de produção da grande PCR-1, e tudo aquilo parecia com um estranho formigueiro, espécie de mistura de formigas com cupins, e mais abelhas, todos interagindo sem confusão, pelo menos, sem grandes confusões...
Trabalhávamos ali as turmas da Perfuração da Sonda Modulada 4, a da Operação, que seria a herdeira de todo o sistema, e todos nós da Engenharia. O maior contingente era o da Engenharia, entre Fiscalização e Empresas de montagem contratadas.
Quando a Perfuração resolvia lavar o convés superior, os serviços de solda eram interrompidos, e boas cachoeiras começavam a jorrar lá de cima.
Quando ligávamos os geradores extras, acordávamos o pessoal da Operação. Quando necessitávamos embarcar material, a sonda estava recebendo lama, cimento, água e outras coisas mais.
Nunca chegamos de fato às vias de fato, mas tivemos boas discussões, pois cada um tinha em mente somente o próprio serviço em questão. Não há nada como dificuldades, para exercerem fascínio sobre os homens, nascendo soluções. Quem mais atenazava, era o Segurança Industrial, pois em tudo ele tinha que dar o pitaco, dizer se podia ou não podia, e do jeito que tinha que ser. Pior, era quando não podíamos nem usar os rádios de telecomunicação, quando estavam a perfilar um poço, quanto mais produzir alguma vibração...
Ficávamos então, todos absolutamente sem fazer absolutamente nada. Somente esperando.
São as horas de ócio, que produzem as mais vibrantes imaginações.
Num dado instante, arrumamos tinta amarela, vários pincéis, várias vassouras, um monte de rolos de fita crepe, e outro tanto de trapos, e distribuímos equipes para tudo: a da pintura, a da varrição, a da medição, a da administração, e a da confecção.
Afastamos os guindastes para os extremos, e logo entrou a turma da varrição, e em paralelo a turma da medição, pois nossos trabalhos sempre foram precedidos de bom planejamento. Sem muita discussão, que uns bons nomes feios não resolvessem, demarcamos todos os quadrantes, e a turma da pintura logo atrás, pintando ver, tudo de amarelo...
Reservadas à sombra, as equipes da administração e da confecção, trabalharam também acelerado. Em pouco tempo estávamos com as regras definidas, as várias bolas de reposição, e um magnífico campo de Futebol de Balsão.
As regras eram simples, definindo data e horário das partidas. Seria permitido o jogo com as botas de serviço, até porque o Segurança não permitiria o contrário, e logo foi designado um juiz que não fosse ladrão.
Bolas na água seriam bolas perdidas, pois gandula não seria permitido. Foram construídas umas dez bolas de uma vez, sinal de boa precaução. As equipes teriam de se apresentar até dez minutos antes de qualquer partida. As seleções seriam as das empresas envolvidas, incluindo-se a própria Petrobrás. Os torneios seriam dois, um no natal, e o outro no ano novo, pois estes eram os dois únicos dias do ano em que se trabalhava apenas meio expediente.
Chegado o dia certo, dia de natal, equipes distintamente uniformizadas, se é que podíamos chamar aquilo de uniformes, mas o fato é que havia clara distinção, apresentaram-se para a contenda. Foi a tarde inteira de peleja, não com o trabalho, mas com a bola, e equipes foram sendo selecionadas, umas por derrota, e outras por sagração, até que restou somente o último jogo do dia, o de campeão e vice...
Nove bolas já tinham sido perdidas...
Daí, alguém mais preocupado, lembrou logo da reposição. O sujeito da Qualidade fez que não, pois não haveria fita crepe para o dia seguinte, dia de trabalho sim senhor. Foi respeitada a voz do dono das fitas, afinal ele é quem sabia onde mais doía, e assim, dada a largada com o apito inicial, começou o jogo mais insosso de um final de campeonato, sem bola alta, sem chute forte e sem grandes divididas, pois a bola era frágil, e sendo a última, todo o cuidado ainda era pouco...
Mas o que era tão temido aconteceu..., a bola na água mergulhou..., e todos em uníssono fizeram Ohhh..., e todos olharam para mim, pois a regra da bola perdida era de minha autoria. Hoje eu posso contar, pois já se passaram vinte anos, e nesse tempo, qualquer crime já prescreveu...
Uma decisão rápida precisava ser tomada, pois a correnteza já carregava a bola. Eu não ficaria com aquela responsabilidade, de que por minha causa, um campeonato não teria sido concluído. Rápido gritei:
- Quem já foi pescador?
E logo uns vinte braços se ergueram. Ia ter pescador assim na Cochinchina...
E tornei a insistir:
- Eu quero saber quem foi pescador de verdade...
Aí, apenas um braço levantou, bem sério ele me olhou, e entendi no brilho daquele olhar, que ele sabia mesmo nadar...
E balancei a cabeça fazendo sim, e ele que nem um moleque saiu correndo, lançou-se no ar como torpedo, fechou os braços sobre a cabeça em submissão, e espetacularmente fez um Tchibummm!, saindo mais além tomando ar, e com três braçadas chegou na bola...
E gritei novamente:
- Rápido, uma bóia salva-vidas!
E apareceram mais de dez. Se fosse um exercício, talvez não tivesse aparecido nenhuma...
E foi nomeado um gandula, e nomeada uma equipe de resgate. A coisa evoluía...
A bola de trapos e fita crepe já não tinha mais aquela personalidade que toda bola oficial tem. Ora adotava forma oval, ora saía molhando todo mundo, e um mais abusado chutou para fora...
O gandula mais ágil que um gato caiu na água, logo retornando. Mais um pouco, bola fora de novo, e o gandula adorando ser o festival...
Outra bola fora, e mergulha o gandula e mais um ajudante de gandula. Aí já era demais, pois até a bola não era mais bola, parecendo aquelas múmias soltando tiras...
Puxei ligeiro o encarregado de manutenção da balsa, e pedi a antecipação do grande banho, surpresa do final. Ele entendeu e fez sinal para um ajudante, e logo um jato da mangueira de incêndio aparecia, molhando todo mundo com água salgada, tornando o campo impróprio para um futebol.
Houve invasão de campo, e jogadores e torcida começaram um belo banho, logo esquecendo-se da bola, que saiu rolando junto com a correnteza para o mar.
Naquele dia não houve perdedores, pois estavam, na hora da interrupção, devidamente empatados, e como o jogo havia sido paralisado por motivos alheios às duas equipes, as duas sentiam-se vitoriosas. Sempre há uma primeira vez, e daquela vez, tivemos dois campeões, resultado digno de uma peleja, balançando no meio do mar...
Ceamos cansados naquela noite especial, devidamente confraternizados, sem trocas de presentes, apenas o gargalhar, o tira-teima do lance, o chute bem colocado, o artilheiro do certame, o goleiro mais frangado, e outras tantas troças que cada um gosta de fazer com o outro. Mais ao fundo, o pescador calado, de vez em quando um cumprimento, o salvador do campeonato...
Dia seguinte desembarcaram quatro, houve fila para banhos de luz, compressas e bandagens, gente mancando à beça, fruto de um jogo com botas...
O que não se faz embarcado..?
* * *
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