Pedalando...

Primeiro Sergipe Adventure
(Paulo Boblitz - set/2008)


Primeiro Sergipe Adventure, um nome sugestivo e nem um pouco modesto... As coisas que se dispõem a ser grandes, já devem nascer grandes; assim, abrevia-se bastante tempo pelo caminho.

O Primeiro Sergipe Adventure contou com atletas de Maceió (Alagoas) e de Salvador (Bahia), além do grande número de atletas daqui de Sergipe. Foi uma prova, segundo os entendidos, ligth (que eu gosto de escrever láite), mas nem por isso deixou de ser difícil.






A subida da Serra de Itabaiana, uma coisa verdadeiramente linda, que em certos trechos nos dá a vontade de abandonar a prova apenas pelo desfrute da Natureza, não fica nem um pouco atrás da subida do famoso El Cebreiro, constante do Caminho de Santiago de Compostela.

A descida da Serra, mais radical ainda, de tão íngreme, pois é curta no sentido longitudinal, nos faz escorregar várias vezes nas milhares de pedras soltas.

Já próximo da largada, cerca de 1 Km depois, o primeiro obstáculo que me fez torcer o nariz, um pequeno córrego onde necessitaríamos submergir nossos tênis para a travessia, pois sei o que significa passar um dia inteiro com os pés molhados.

A prova inteira constou de uma caminhada que nos fez subir a serra (670 metros), acredito que ao seu ponto máximo, a julgar pelo número de antenas que encontramos, passando pelo ponto onde se pratica o rappel (um integrante de nossa equipe ficou lá para pagar este item da prova), enquanto continuávamos a descida para o ponto de transição, onde pegaríamos as bicicletas para um percurso de aproximadamente 40 quilômetros. Da prova ainda constava uma canoagem de 500 metros numa lagoa, e ainda uma pequena prova surpresa. Nossa equipe só não participou destas duas últimas, pelo adiantado da hora em que chegou ao local de chegada.

Durante a subida, precisamos ir até a Cachoeira do Cipó, próxima de uma gruta, com muitas raízes e muito limo; na seqüência, cruzamos com o Poço das Moças, onde deu vontade de mergulhar, de ficar ali sentado, embalado pela água corrente, mas o tempo costuma não esperar... No ponto mais alto, onde começamos a descer, vislumbramos a cidade de Itabaiana no lado oposto da Serra, e caminhamos sobre um pequeno brejo, nascente de algum daqueles riachos. Que Geologia formidável, água brotando do ponto mais elevado...

Cumprimos e passamos por todos os Pontos de Cortes, fossem eles obrigatórios ou opcionais, respondendo corretamente a cada uma das perguntas neles solicitadas. O mais difícil de encontrar, foi o Ponto de Corte Virtual número 5, bastante escondido, que depois nos fez submergir os pés numa lama preta de brejo, aumentando a umidade e permitindo que a própria lama nos incomodasse com suas pequenas partículas sólidas. Nele, descobrimos uma bela piscina natural, com corredeira e tudo.

No Posto de Corte número 6, finalmente pegamos as bicicletas e partimos pelo estradão, onde erosões e subidas não faltaram, cada uma com sua respectiva descida. Erramos e acabamos rodando alguns quilômetros a mais, felizmente poucos, mas produzindo atraso no que já estava atrasado. Nossa equipe tinha a garra necessária, mas não possuía o preparo, peça fundamental quando enfrentamos obstáculos, coisa que não faltou, do início ao fim da prova.

Foram mais de 9 horas de intensivo exercício para nós quatro da Equipe Sul, e ouso dizer, quando hoje me pesei, ter sentido a falta de 2,6 Kg. Ontem bebi cerca de 5,5 litros de água durante o dia, fora o que continuei a beber, depois que cheguei em casa.

Nossa colocação, se tivermos tido alguma, foi a de penúltimo lugar, mas o importante foi que chegamos, e confesso aqui que foi maravilhoso toda a vista que pude apreciar, todo o carinho que os habitantes dos vários povoados nos dispensaram, toda a torcida que recebemos pelo caminho.

De parabéns os Organizadores do evento, pela organização e cuidado, principalmente com o item Segurança. De parabéns todos os Participantes, pela alegria e disposição, inclusive pelo espírito, pois não raro presenciamos equipes ajudando outras equipes, incomum num contexto competitivo.

Outros Sergipes Adventures virão, e todos eles serão bem-vindos, e disputados, principalmente confraternizados...

Isso é que é o bonito de tudo: saúde e participação, envolvendo emoção com a sociedade, com o próprio meio ambiente que não viu lixo nenhum, agressão nenhuma de qualquer que fosse a equipe.

Parabéns a todos nós...

Observação: A foto é da nossa Equipe Sul, cansada e suja, recebendo o flash do fotógrafo amador (meu filho), como consolação...

* * *




As ladeiras do Araujo
(Paulo Boblitz - ago/2008)

Quinta-feira é dia de ladeira, como se o assunto fosse simples, assim como os outros dias que também são de alguma coisa.

Quem não o conhece, escuta mas não raciocina..., afinal tem dia de Distância, tem dia de Velocidade, tem o dia Light... Por que não pode ter um dia de Ladeira?

Ladeira é uma subida do que algum dia foi um morro, hoje pavimentada, com calçadas e transeuntes. Expectadores!

Eles até torcem, ao modo deles, pois que moram ali e somos nós que chegamos para alterar a rotina de uma noite que vai se repetindo a cada semana.

E a torcida começa: "vai Magrinho..!"; "vai Coroa..!", e outros incentivos e comentários menos incentivadores, pois logo aparece a turma do contra que especula...

Tem até um meio bêbado, que explícito bota a boca no trombone para quem quiser ouvir, inclusive a quem sobe, a quem já está com o coração perto da goela: "ezadaí o Coróa num güeenta..."

Se subir ladeira já é difícil, subir transpondo comentários negativos é pior ainda, e com isso também vamos aprendendo que devemos respeitar a opinião contrária, a cultivar a paciência, a guardar o silêncio quando queremos explodir, e de alguma forma a não escutar o que não queremos.

O fato é que vamos subindo e descendo, bufando por assim dizer, na medida em que a Ladeira é mais puxada ou não.

Araujo é um sujeito abnegado, que todas as noites aparece e nos espera, nos ensina e nos cobra muito esforço.

Nossas Forças Armadas se o conhecessem, brigariam para tê-lo como Sargento, aquele que mexe com a tropa, aquele que a deixa pronta para a guerra, aquele que lidera com a própria participação.

Assim começamos, num início que parece tranqüilo, por vias horizontais, subindo algumas pequenas ondulações, esquentando por assim dizer, aprontando a musculatura para o pior que está mais à frente, que logo chega e nos impressiona...

Alguns descem logo da bicicleta e a encaram na naturalidade; outros a tentam ultrapassar e param pela metade, colocando os pés no chão; outros a vencem como se ela não existisse...

Olho para aquela coisa deitada à minha frente, e ela não deve ter menos do que 45 graus. Como é que se constrói uma aberração daquelas? Carroça?, decididamente não sobe; caminhão carregado?, nem pensar...

Subo empurrando a minha bicicleta, não sem antes chegar até à sua metade; a descida é outra afronta a qualquer tipo de freio..., e vou regulando as duas manetes, pois que só o freio traseiro, ela arrastaria o pneu; se apertarmos o dianteiro com força, ela é bem capaz de capotar.

Descemos organizados, devagar, pois logo à frente tem um cruzamento... Seguimos em frente em busca de novas investidas, e enquanto vou rearranjando os casulos dos pulmões, vou pensando que o negócio é subir primeiro, pois assim, enquanto os outros vão subindo, poderei aproveitar para descansar, para retomar o fôlego em desordem.

Araujo lá na frente interrompe o trânsito para passarmos, e logo retoma o ritmo, não sem antes vir fazendo chamadas: "vamo Fulano!", "vamo Sicrano!", "vamo Beltrano!", "vamo Blitz!, força!!"

Com o sangue quente, juro que penso feio...

- Vamo pra onde?, se eu já não tenho pernas..? - vou pensando meio atravessado, enquanto ele vai passando para liderar de novo, e de lá ainda se virar e cobrar um novo "vamo" para mais alguém...

É nossa reação que busca mais energia...; nossa revolta que transforma nossa vontade..., nos fazendo subir como pudermos, pois sempre terminamos agüentando, de uma forma ou de outra, afinal nossos corpos não gostam de conhecer limites, não gostam de se entregar, e reagem dormentes com mais oxigênio e raiva, enquanto o suor escorre abundante corpo abaixo...

As ladeiras vão se alternando, as mais brutais no começo, uma quase impossível pelo meio, e todas as demais intercalando, sendo vencidas, montados ou apeados...

Há poucos instantes passamos pela última ladeira... Paramos numa sorveteria, mas prefiro continuar; junto-me aos que vão para onde vou, despeço-me dos que ficam, agradeço ao Araujo, que amanhã estará lá de novo, para mais um dia de alguma coisa..., mais um dia de Sargento exigente... O sujeito não cansa...

Abro a boca com sono...; é o sangue esfriando..., e essa noite será bem dormida...

* * *

Sem pedal...
(Paulo Boblitz - ago/2008)


Alguém já ficou sem pedal? Quem já ficou, sabe bem do que falo...

Temos o motor, mas marcha nenhuma a ser engatada...

Assim fiquei no meio da rua, apenas com um dos pedais, pois o outro caiu deixando-me aquela sensação de uma perna pesada demais...; é como sem dentes, tentarmos assobiar... Até que sai algum som, mas..., música nenhuma dentro da afinação...

O parafuso do eixo central foi-se para sempre, escafedeu, fugiu e encontra-se foragido escondido em algum lugar por esses caminhos que pedalamos... Ficamos frustrados, impotentes com um dos pés sem poder fazer força..., algo estranho abaixo dos joelhos, sem aquele contato que nos une à terra, que norteia nossos movimentos, nossa impulsão...

Na verdade aqui me refiro ao pedivela, aquele pequeno braço, um para cima e outro para baixo, que movimenta a coroa dentada, que põe a corrente a girar a roda traseira; o pedal é apenas a terminação, o estribo como se estivéssemos montados num cavalo... Sem ele, parecemos uma biruta sem vento..., uma fita adesiva sem cola..., um nó cego bem apertado...

Pedal e pedivela na mão, algo ainda mais estranho, pois normalmente os utilizamos com os pés, saímos à custa dos pés, desta feita a pé, empurrando um monte de alumínio que gira, que deixa de ser bicicleta para ser uma carga qualquer.

Alguém já empurrou uma bicicleta? É mais ou menos como carregar a mala sem a alça... As pessoas olham e continuam olhando, pois os pneus estão lá, cheios locupletados de vento comprimido, as rodas girando, a corrente no lugar, nenhum defeito aparente...

Alguém já tentou pedalar com um só pedal? É como tomar sopa com garfo... A gente até consegue, mas é ridículo..., muita energia despendida, sem nenhum resultado, mesmo que pífio...

E dizer que apenas um parafuso segura toda a nossa barra..., um mísero parafuso cheio de rosca, bastante apertado...

E toda uma tecnologia, e uma sofisticação, sejam elas quais forem, deixam de funcionar por causa de um simples parafuso.

É certo que ele é robusto, mas pode significar uma derrota, um passeio interrompido, um longo caminho a pé..., uma volta inglória..., um acidente sério...

Parafusos..., do mesmo jeito que apertam, acabam se soltando...

* * *




















Os pedais das terças à noite...
(Paulo Boblitz - ago/2008)


Aracaju pode ser uma cidade pequena, mas pensa grande que nem as grandes. Pacata e organizada, plana e hospitaleira, reúne todas as semanas, um grupo grande de ciclistas que sai a pedalar pelas ruas, cada semana uma diferente, onde as pessoas que nos vêem param e pensam: “bem poderiam ali estar também...”

Em fila dupla, por mais de 300 metros de comprimento, saímos piscando noite adentro, conversando e rindo, pedalando queimando excessos, revigorando um monte de coisas, da cabeça aos pés, visitando bairros, dando exemplos, praticando saúde pelo simples prazer de praticá-la. No último passeio, fomos 154 ciclistas...

O percurso é sempre secreto, e vamos descobrindo-o na medida em que vamos avançando, escutando os avisos que são passados como ecos, da frente para trás, aos gritos de quem primeiro avista: "buraco à direita!"; "buraco ao meio!"; "carro parado!"; "ciclista na contramão!"; "lombada adiante!", até um "ôôô!!!" quando a fila vai parando sem aviso prévio, para que os de trás não atropelem os da frente...

O Departamento de Trânsito nos escolta e abre alas, fechando sinais ou interrompendo vias, tornando nosso grupo mais visível, oficial, algo a mais na segurança, pois via de regra somos respeitados e até recebemos buzinadas em cumprimentos, saudações encorpadas de empolgação, aprovação explícita para nossa boa pedalada...

É a sociedade que participa no social, prazer para nós, cumplicidade deles que não estão participando, mas aprovando com admiração, quem sabe mais um conquistado para a próxima semana, mais um a engrossar a fila dos que se mexem e não se entregam...

Os Monitores e Instrutores nos alertam, nos mandam subir ou baixar uma marcha, nos aconselham a prestar mais atenção, nos repreendem se não nos comportamos bem, nos rebocam se ficamos para trás, se revezam nas posições, sinalizam o bom pedal, nos socorrem diante de um acidente de uma corrente solta, um pneu furado, e assim vamos, crianças e jovens, meias-idades e bem mais velhos, em ziguezague pedalando, fazendo a roda girar, aprendendo e exercitando... São incansáveis, pois acabam pedalando o dobro do que pedalamos, num vai e vem da frente para trás, de trás para a frente, estando em todos os lugares como anjos não alados, sempre de prontidão.

A todos eles a nossa gratidão..., pois que garantem a nossa segurança o tempo inteiro.

Esse é também o dia em que todas as rivalidades coexistem, apesar delas não existirem, pois os vários grupos se unem num só, no Aracaju Pedal Livre, onde os vários estilos se tornam únicos, e os que não formam grupos também, numa tremenda minhoca que serpenteia sobre rodas, que pisca em vermelho e branco pelo asfalto: Pedal Suado, Zuandeiros, e Pedal do Zé, numa mistura de camisas e uniformes, e de outras roupas informais, abrilhantando a festa que três lojas patrocinam: A Bimocar Bike, Magazine Bike Show, e Pedalando Bicicletas.

Duas horas de bom exercício, uma parada obrigatória onde a água de coco repõe os sais, mata a sede e torna a reunir, desta feita em alongamentos, em pernas estiradas, gente sentada a descansar, quem sabe uma paquera acontecendo, novas amizades se consolidando, outras apenas iniciando. Vale a pena de longe enxergarmos tamanho grupo não coeso, nenhuma regra ter que seguir, a não ser a de bem pedalar, sempre em fila de dois, de capacete e boa disposição...

Duas horas por semana, uma boa academia ao ar livre, um bom motivo para relaxar, muitas conversas a por em dia, planos de alguma trilha, algum asfalto a pegar...

O apito nos traz de volta, nos sinaliza a retomada, o chega de festas e todos em posição!, pois a grande minhoca quer andar, quer pedalar...

Assim, mais um pouco chegamos no nosso ponto inicial, onde o grupo se desfaz, onde cada um volta cansado para casa, uma boa noite trabalhada, uma reunião gigante sem bebidas, sem tira-gostos e frituras, onde bafômetro nenhum mete medo.

O envolvimento acaba contagiando, e quando menos esperamos, estamos participando de outros pedais, pois cada grupo tem um estilo próprio, uma modalidade diferente, e cada pedal acaba se transformando em instrução. Descobrimos que bicicleta é coisa séria, tem técnica apurada e jeito certo de ser conduzida, seja no asfalto ou na trilha...

Se você não pedala, por que não experimenta? É um bom investimento...

* * *

Cruzando com um Calango
(Paulo Boblitz - jul/2008)


De pé, no alto da colina, um pé displicente apoiado no pedal à frente, vejo ao longe o Sol aparecendo... Sou um dos primeiros nesse dia, a ser banhado por seus raios...

Uma leve brisa escorre meus pensamentos, leva consigo minhas saudades, enquanto quieto apenas contemplo, o vale abaixo completo de nuvens, cheio de sombras, cheio de frio da noite que ainda não foi embora...

O céu acima já está azul, algumas manchas brancas devagar, em desfile seguindo o caminho, todo dia um dia incerto, todo dia ficando maiores até que resolvam chorar, dar vida à terra, que nos dá o gosto do dia-a-dia...

À minha direita a trilha continua, pedras soltas aguardando movimento, que pneus e pés imprimirão, as tirarão por segundos dos marasmos, quem sabe depositando algumas aos pés de alguma planta, um bom lugar à sombra para um descanso, a ver tantos passando.

Mais abaixo, a primeira curva a nos oferecer o mistério...; não deixa ver o que vem, não deixa ver o que guarda...

Uma curva é sempre uma surpresa, uma cortina que se abre, um espetáculo que se mostra, ou tudo igual como era antes...

Toda curva é suave, mesmo aquelas mais agudas...; depende apenas da velocidade, assim como costumamos olhar as coisas, demorado ou de relance, degustando ou engolindo...

Um calango aparece e nos dá bom dia, balança a cabeça em cumprimento: tudo bem com ele..!, e com a gente?

A mochila alfineta as costas, avisa que também está por ali, quer também ver um pouco dessa beleza que nos encanta, ver o mundo de cima, de cima donde viemos...

Solto as fivelas e as amarras se afrouxam, retiro-a recostando-a com suavidade numa pedra, enfim ela está lá de frente e não vê nada. Eram minhas costas reclamando, oferecendo uma coceira em troca de um descanso...

Bebo um gole d'água e aproveito, lavo a garganta seca, umedeço a alma e me hidrato.

O Sol agora já mais alto, posso sentir o suave morno; mais um pouco, será intenso o calor, implacável raio que queima, que resseca e envelhece, nos rouba a cor...

Respiro fundo e sinto o cheiro da terra, cheiro molhado que sobe, de plantas e orvalho, de suores de tantas coisas vivas que à noite em descanso transpiram... Não há cheiro igual ao da Natureza, que de tudo um pouco mistura, utilizando-se de todas as energias...

Desmonto e subo numa pedra, fico mais alto ainda, domino mais visões ao meu redor, mas o que quero é apenas recostar, receber as gotas de nossa grande estrela, aquecer o corpo como o calango mais abaixo faz, agora assustado com meu movimento.

A bicicleta está imunda, a mochila empoeirada, as botas cheias de carepas secas, as meias manchadas de lama, a pele em escamas, o corpo dolorido e cansado, um arranhão ali, outro mais embaixo.

Fecho os olhos e cochilo, sonho com meus sonhos escondidos, recupero a esperança que a pausa oferece, enquanto o sangue arrefece, desfazendo-se das energias que se concentraram... O tempo passa e a calma aborrece, sento-me olhando ao longe, viro-me para donde vim, uma longa subida estreita e torta, como se um bêbado a tivesse riscado...

Levanto e me espreguiço, miro as curvas que se seguem, imagino meu futuro descendo, pedrinhas soltas estalando e voando, a corrente rangendo entre tantos dentes, a suspensão bufando com os solavancos, músculos tensos amortecendo, freios em eterno castigo, pneus em constantes escorregões, o chão passando firme e ligeiro, como firme é quando nos recebe, nos descontando em dores a ousadia, nos arranhando e sangrando em desafio, nos perguntando se nos levantamos ou desistimos...

Melhor descer devagar...

Visto a mochila, coloco o capacete, verifico os pneus e num pulo já estou pedalando. Olho para trás e dou adeus para o calango; ele balança a cabeça e educado me cumprimenta: comigo vai tudo bem..., e com você?

* * *


Glossário:

- Calango: pequeno lagarto cinzento, comum no Nordeste brasileiro, que vem ao Sol para aquecer o corpo, cujo balançar da cabeça, como se estivesse sempre concordando, é característico.

* * *


















Pedalando...
(Paulo Boblitz - jul/2008)


Se andar faz bem, pedalar ainda faz melhor...

Eu pensava que chegaria com pernas resistentes, depois de caminhar os quase 800 quilômetros do Caminho de Santiago, mas na primeira pedalada forte, as coxas reclamaram e descobri que os músculos trabalham diferentes.

De fato, meus mocotós ficaram mais grossos; minhas batatas das pernas também, mas as coxas nem quiseram saber...

Isso não quer dizer que eu não tenha conquistado mais resistências, pois caminhando e subindo montanhas com uma mochila nas costas, acabamos trabalhando até os pulmões.

Caminhar só é gostoso se estivermos a trilhar alguma coisa, num caminho qualquer, com um objetivo bem distinto, participando da Natureza. Andar numa calçada, não deixa de ajudar, mas não é a mesma coisa - falta o tempero da ação, o sabor da visão, a música da audição, os aromas diversos que a terra nos lança, sobrando apenas as esquisitices de transeuntes em cima da moda, com celulares e musiquetas nos ouvidos.

Pedalar é pegar uma estrada, seguir um rumo decidido, comportar-se com segurança, usando os equipamentos de proteção e sinalização que todo ciclista deve usar.

Pedalar é sentir o vento contrário, ou o vento de lado que faz a gente andar torto a compensar; é andar na banguela aproveitando a descida, é esconjurar a ladeira e passar as marchas que puder, e se ela não te der chances, não te envergonhes em saltar e terminar a subida empurrando a magrinha...

Pedalar é sentir o corpo molhado de tanto suor, como se tivéssemos saído de um banho naquele instante, gotas marejando testa abaixo querendo arder nos olhos, tentando penetrar nos lábios, fazendo o gosto do sal se pronunciar.

Pedalar é respirar mais fundo e ir buscar no baú dos pulmões, aquele último restinho de ar, que o faz vencer o obstáculo, um pouco mais devagar é bem verdade, dando-lhe um certo prazer quando você dá uma pequena parada e olha para trás.

Pedalar é calejar a bunda, pois não há acolchoamento bom que dê resultado, nem selim que promova aquele conforto que sonhamos, seja ele de que gel for construído, onde só o costume resolverá. Sobre os calos, não serão propriamente calos, e sim uma pele um pouco mais grossa. Além do mais, trata-se de uma região anatômica que nunca será bonita...

A atividade física tem uma coisa muito gostosa: quando paramos exaustos e suados, com a cor diferente esperando o sangue esfriar, parece que todo o nosso corpo está se renovando. Sentimos uma outra fluidez, um outro pulsar, e não raro, nos quedamos a olhar para o horizonte em reflexões...; nos sentimos parte da paisagem...

Vencemos a nós mesmos mais uma vez, nos superamos em alegrias, e tudo isso sem competir...

Equipamento guardado, depois do banho a paz começa a reinar; a respiração é mais plena; entramos de fato, num relaxamento..., o sono é gostoso e reparador...; o corpo agradece como se recebido um prêmio...

Pedale, faça a roda girar, escolha um rumo apenas com o olhar, e siga em frente vendo a vida passar...

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