Alguns tiram férias para descansar,
não fazer nada e engordar...
Tirar férias para mais trabalhar?
Pois é; pedalar faz suar, faz a gente colocar a língua para fora.
Dá um trabalho danado para alcançar, cada chegar...
Cada um dos fins dos dias, vai nos acordando do sonho bom,
até que o pouso finalmente ocorre, e voltamos à Terra...
não fazer nada e engordar...
Tirar férias para mais trabalhar?
Pois é; pedalar faz suar, faz a gente colocar a língua para fora.
Dá um trabalho danado para alcançar, cada chegar...
Cada um dos fins dos dias, vai nos acordando do sonho bom,
até que o pouso finalmente ocorre, e voltamos à Terra...
Em busca do Ouro da Estrada Real
(Paulo R. Boblitz - set/2011)
Na partida:
- Mulher, você viu minha bateia? - perguntei para a esposa.
Ela me apontou o maleiro, peguei uma escada e logo saía com aquela espécie de chapéu chinês nas mãos, toda empoeirada. Ambos espirramos...
Guardei a escada, peguei a bateia e fui com muito carinho lavá-la. Estava fosca, oxidada por tanto tempo ali encostada. Quando eu começasse batear, ela ficaria polida, porque os pequenos grãos a lixariam com presteza, e se a sorte ajudasse, todos eles seriam dourados...
Para quem não conhece, bateia lembra um pouco aqueles pratos de baterias, situados acima dos tambores, ou com o címbalo, aquele instrumento que alguém sempre com cara de maluco, lá no fundo da orquestra, de braços bem abertos, faz força e bate um prato contra o outro.
Passei o dedo naquele amassado e tive triste recordação. Meditei por instantes, pois minha riqueza havia me abandonado, assim, num estalar de dedos... Passei os dedos novamente no amassado, larguei-a na cama e fui cuidar do resto dos alforjes, apenas para ser repreendido:
- O que faz esse troço todo molhado aqui no meu lado? - a esposa também não gostava da bateia...
- É com ela que novamente encontrarei o ouro...
- Pois sim... - deitou-se virando para o outro lado, quem sabe lembrando-se dos sonhos quando eram apenas bonitos...
Peguei o pequeno prato e o guardei num dos lados dos alforjes, onde coube apertado.
Já estava quase pronto e mais algumas horas, estaria pegando o avião para Belo Horizonte, eu, minha mula metálica e mais 5 amigos, cada um com sua própria mula, cada um com sua bateia, mas nenhuma igual à minha, porque aquela tinha história...
Abotoei o último botão da camisa, debrucei-me sobre a esposa e lhe dei um beijo de despedida. Pareceu-me ver uma lágrima rolando...
- Quando voltar, trarei um lindo presente... - lhe sussurrei com carinho.
Ela fez que sim e continuou do jeito dela, porque despedidas costumam doer...
Chegamos no aeroporto, despachamos as nossas bicicletas e fomos para o embarque.
Todo mundo enrolado, porque o raio-x apitou a cada prato que encontrou.
- Não podem levar essa bagagem a bordo - disse-nos o encarregado
- Amigo, somos um time de lançadores de discos. Basta pequeno arranhão, e o disco perde o rumo, e perdemos a competição... - ponderei.
- Discos..?
- É! Discos australianos...
- Ah..! Como os bumerangues..? - ele parecia entendido...
Fiz que sim com a cabeça e informei que representávamos o nosso Estado.
- Ok! Tudo bem... - e fez sinal para que nos deixassem passar.
Quando caminhávamos para o avião, Suzana, com um olhar zombeteiro, virou-se para mim e disse:
- Arremesso de disco aus-tra-li-a-no..?
- É! A gente joga assim, ó! - e fiz o movimento.
Fernando virou-se e disse:
- A gente vai acabar é sendo preso, por causa dele...
Acordei com o baque no chão e aquele rugido das turbinas, quando nosso avião pousou. Estávamos em Minas Gerais, terra das esmeraldas, dos diamantes e de muito ouro...
* * *
No aeroporto de Confins:
Márcio Batitucci, um bom mineiro, velho amigo da Petrobrás, já nos aguardava no saguão, junto com o rapaz da Van (Vip Locação), que havíamos contratado para nos transportar até Ouro Preto. Numa das mãos, uma sacola com a nossa encomenda: 2 kg de Fubá de Milho moído na pedra, uma outra espécie de ouro, que levaríamos para o Gustavo Corrêa (Quintal de Turismo Paraty), dono da outra Van que nos transportaria de Paraty para o Rio de Janeiro.
Márcio, indiretamente, era o responsável por tudo aquilo, pois fora ele a me fazer a cabeça para percorrermos o Caminho de Santiago de Compostela, em 2008. Quem andou pelo Caminho de Santiago, praticamente já andou por onde existe para ser andado. Não havendo mais onde andar, descobri então a bicicleta...
Wagner Paulino, outro bom velho amigo da Petrobrás, também mineiro, estava viajando; nos encontraríamos em São João del Rei.
Embarcamos na Van e seguimos debaixo de um dia bastante abafado - fazia quase cem dias que não chovia na região. O céu era azul esmaecido de tanta fumaça, e pela rodovia, fomos cruzando com muitas encostas, antes verdes, agora cinzento-enegrecidas pelo fogo ateado. Por vezes, as labaredas nos brindavam com suas fúrias de consumir, onde a fumaça branca subia em regozijo do dever cumprido - matar o que fosse vivo pela frente...
Com tristeza, li numa das placas: O FOGO APAGA A VIDA
Em Ouro Preto, ficamos na Pousada Arcádia Mineira (café da manhã gostoso), onde Dona Ana nos deu as boas-vindas com simpatia. Montamos nossas mulas metálicas e descobrimos a primeira baixa: Suzana estava com a coroa maior toda empenada. Estávamos num sábado, já passando das duas horas da tarde, uma bronca, do tipo quadrada...
Consultamos o Guia do Antonio Olinto e Rafaela Asprino e lá estava: Kamikase Bike, coisa de 150 metros da pousada. Digno de nota foi a atuação, se não me engano, do Vicente, dono da bicicletaria, que se deslocou até uma outra cidade e conseguiu outra coroa igual.
Almoçamos com bastante apetite, pois a fome é sempre a senhora dos ânimos.
Ouro Preto é linda, muito antiga, tradicional. O ar ali ainda é o dos idos de 1700, quando os primeiros chegaram, procurando ouro e criando raízes. Criaram riquezas, muitas artes e principalmente muita História, como a Inconfidência Mineira.
Nossa pousada era uma antiga casa que foi crescendo para baixo, em escadarias ao longo da encosta. O assoalho, tabuado, lustroso estalava quando caminhávamos.
Em Ouro Preto, para onde você se vira, depara-se com uma igreja antiga, donde deveriam sair os dobrados chamando os fiéis. Lá fora tudo era calma. Aproveitei para caminhar e conhecer alguma coisa, aqui para nós, uma tarefa difícil, pois que se você descer, terá que subir, e se tiver que subir..., prepare as pernas, justamente delas que precisaríamos no dia seguinte.
Acho que o jeito calmo do mineiro vem dessas tantas ladeiras... Visitei a igreja Nossa Sra. do Pilar, muito rica em ouro, mas não podemos fotografar, uma desilusão, coisa feia e comercial, para que compremos CDs, DVDs e outras coisas mais.
Voltei para a pousada, claro que com uma bela subida a vencer, e a tudo de novo descer... Desarrumei os alforjes, coisa que faria pelos dias seguintes, porque dentro deles tudo fica enrolado ou embolado, dificultando aquilo que queremos escolher.
A noite desceu rápido, com as montanhas ajudando a esconder o Sol, e o friozinho gostoso se achegou. Procurei e achei, o mais próximo da pousada, o Bar Biz & Biu, onde beberiquei umas cervejas e provei da renomada cachaça artesanal Salinas, a R$ 5,00 a dose, um copinho minúsculo. Pedi rã à milanesa e repeti o prato. Estava pronto para o dia seguinte...
Fui para a cama, uma gostosa cama, do tempo em que o tempo durava muito...
* * *
Ouro Preto - Ouro Branco
Em nosso primeiro plano estávamos dispostos a pedalar até Congonhas do Campo, hoje apenas Congonhas, onde outro ouro nos aguardava - as obras de Aleijadinho. Por conta do Jubileu do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, de 7 a 14 de setembro, a cidade estava repleta de romeiros e turistas. Era nossa intenção pernoitar em Congonhas, partindo no dia seguinte, direto para Conselheiro Lafaiete, mas não encontramos vagas, o que nos fez apear em Ouro Branco, onde fretamos uma Van que nos levou e trouxe de volta. Foi o passeio mais insosso de nossa viagem, pois que encontramos uma multidão de gente, todas as obras interditadas, e um comércio livre a vender de tudo.
Como a boa conversa ainda ajuda muito, um dos Guardas municipais mostrou-me pequena capela onde a porta era vazada, de onde consegui pequena parte daquele ouro...
Havia sido um dia muito cansativo, como sempre o é todos os primeiros dias. Logo no início, ao meio da subida íngreme da perigosa Curva do Vento, que sobe ao lado da velha Estação, onde o precipício nos espreita com vontade, meu pneu dianteiro furou. Durante a viagem no avião, com os pneus secos, o Mr. Tuff conseguiu arrumar maneira de se dobrar, perfurando a câmara de ar. Ele ainda a furaria novamente, furando também o traseiro, quando os arranquei. Esse mesmo tipo de anti-furo foi o responsável pelo furo do pneu traseiro da Suzana.
Iniciamos um cicloturismo, verdes, e vamos amadurecendo aos poucos enquanto ele dura. Isso quer dizer que o primeiro dia é sempre o pior, mas pior ainda é o último, porque o sonho acaba...
Assim, verdes e ainda não adaptados, passamos a enfrentar nossos primeiros 300 metros de subida, onde os pecados foram sendo largados juntos com as gotas salgadas que nos inundavam os poros. Meu GPS, aflito e nervoso, gritava a respeito do meu pulso, como se eu pudesse parar de subir... Cada curva passa a ser um porto de esperança, mas, o que fazer quando a contornamos e descobrimos que a subida continua?
Até vi miragem... Gilton era o que estava à minha frente, e vestia uma camisa amarela. Quando o avistei mais acima parado a me esperar, criei um novo ânimo com a meta estabelecida: ali seria um ponto de descanso. Cheguei ao ponto e descobri que o Gilton era uma placa indicando uma curva fechada à direita. Sorrindo, agradeci ao Gilton, digo, à placa, e ali enxuguei os suores e bebi água, recompondo a respiração. Tirei o GPS do bolso traseiro na camisa e conversei com ele, numa boa:
- Você vai calar essa boca, ou não vai!? - estava aos 170 bpm, quando só posso chegar aos 140.
Enfim chegamos num bar e restaurante às margens da rodovia. Estávamos na estrada de Itatiaia e logo começaríamos a descer para Ouro Branco, quando tomaríamos uma bifurcação à direita para o Mirante da Serra do Ouro Branco, que o amigo Márcio nos garantiu que veríamos, a bem falar, metade das Minas Gerais, mas alguém nos ensinou a sair do asfalto, como atalho em direção ao Morro do Gabriel, o que nos fez dar uma grande volta e ficarmos apenas a 3 km do Mirante, de onde não veríamos absolutamente nada, tamanha poluição por fumaça das queimadas. Ao abandonarmos o roteiro, demos uma grande e penosa volta, mas não perdemos o espírito da coisa, que é pararmos em algum lugar e verificarmos os "esses" da pequena estrada, subindo nos levando a mais encantos, onde as cores nos embalam...
Ficamos alojados na Pousada Estrada Real, apartamentos amplos e modernos, onde o Seu Guilherme nos havia arrumado a Van do Seu Fádel, gentil mineiro e bom de papo, que a caminho de Congonhas, nos mostrou e nos aguardou que jantássemos uma boa refeição num bom lugar. Não reclamamos do café da manhã e a recomendamos aos que por ali passarem.
* * *
Ouro Branco - Casa Grande
Casa Grande era um nome sugestivo para encontrarmos o nosso ouro que buscávamos. Peguei minha bateia e alisei aquele amassado, que me havia custado muito...
Num belo dia, já voltando para casa, minha mula Gertrudes, carregada com pedras preciosas e muito ouro, empacou em determinado trecho, por certo perigoso e traiçoeiro. Fiz de tudo para que ela seguisse adiante, afinal haviam sido muitos os dias de trabalho de garimpagem e eu estava louco para chegar em casa, mostrar e poder comprar todos os cetins, cristais e pratas que minha amada merecia.
Gertrudes me olhava profundamente e não se mexia. Determinada estava a não seguir avante, para meu desespero.
O sangue subiu-me à fronte, peguei a bateia e com bastante vontade, dei-lhe uma palmada na garupa que a fez saltar, desequilibrando-se caindo no precipício, indo parar no caudaloso rio que corria mais abaixo. De onde estava, podia ver a pobre mula meio tonta, junto com minha riqueza, sendo levada rio abaixo...
Nunca mais vi a pobre coitada, restando-me apenas a bateia, agora amassada em minha mão insana, junto com o amargo sabor da perda. Chegaria em casa de mãos vazias, quando elas estiveram cheias de preciosidades...
Alisei novamente o amassado, e a vontade, aliada à garra, prevaleceu. Eu estava pronto para seguir adiante, experimentar as descidas que nos embriagam...
Em Ouro Branco saímos um pouco tarde, porque fomos até a agência dos Correios para despachar alguns mala-bikes para Paraty. Fui junto porque precisava me livrar dos 2 quilos do Fubá de Milho que havia carregado de Ouro Preto até Ouro Branco. Parecem pouca coisa, mas influenciam muito, nas pernas e no coração. Dois quilos a menos, sobrava-me agora a boa margem de água que precisava.
Partimos, não sem antes uma discussão, porque parte queria seguir por um caminho, e outra parte queria seguir pelo roteiro. Venceu a do roteiro.
Passamos pela Casa de Tiradentes, batemos fotos e novamente partimos para chegarmos na Gameleira, uma grande árvore onde ficou dependurado um quarto de Tiradentes, que havia sido esquartejado e precisava servir de exemplo aos que não queriam recolher os impostos ditados pela Coroa portuguesa. O "quarto" a que me refiro, trata-se de uma perna inteira, pois que o esquartejamento desmembrava o corpo, onde cada cavalo e seu cavaleiro eram amarrados a cada uma das extremidades daquele corpo, partindo cada um em sua pré-determinada direção, arrancando de forma bruta e desproporcional, cada parte amarrada. Era necessário um grande exemplo, que a longo prazo, funcionou como um "tiro pela culatra".
A cabeça de Tiradentes, embora posta para exibição em Vila Rica (Ouro Preto), foi roubada e nunca mais aparecida, fortalecendo uma teoria de que quem realmente morreu, não foi Tiradentes, por este ter assinado em Paris, alguma Ata de participação. Um dia, a verdade prevalecerá...
Almoçamos em Conselheiro Lafaiete e partimos. A pressa pelo ouro nos faria errar novamente o percurso; um erro enorme... No Sítio Tize, diante da porteira de ferro, ainda chegamos a discutir sobre o real caminho que o roteiro nos indicava, mas dois integrantes haviam seguido reto. Decidimos por acompanhá-los em seus erros e precipitações, chegando finalmente em Queluzito, onde retomaríamos o caminho correto até Casa Grande, onde me hospedei na Pousada de Dona Irene, que me recebeu como se fosse da família. Todos os outros ficaram numa pousada mais abaixo, antes de chegar em Casa Grande. Jantei um "quentado" de fogão a lenha com boa prosa, onde comi dois ovos caipiras mal passados misturados ao arroz, que antes já havia servido de acompanhamento ao saboroso feijão, bem curtido naquele fogo brando e perene, a esquentar a casa inteira.
Dona Irene me recebeu com muita simpatia e calor, prestando-me um bom auxílio com minhas roupas que precisavam ser estendidas para secar. Passando em Casa Grande, não deixe de conhecê-la.
* * *
Casa Grande - Prados
Uma boa viagem, principalmente se dependente de nós mesmos, requer um bom planejamento. Assim foi feito desde que me decidi a fazer a Estrada Real, onde confrontei cada item do Guia do Olinto e Rafaela, com os caminhos que podemos enxergar no Google Earth. A rota do verdadeiro ouro estava sendo desprezada, e foi necessário uma posição: eu seguiria a rota do ouro, e não a do verbo, quando saímos perguntando pelo mundo.
Determinado, saí bem cedo, munido de laranjas, muita água e disposição. A cidade ainda dormia sob o fino frio que fazia, envolvendo a tudo com seu manto em névoa. O céu prometia um sol forte, pois não se viam nuvens cinzentas e preguiçosas.
Quando cheguei na Fazenda do Vau, naquela vereda ladeada por eucaliptos enormes, pude ver o marco da Estrada Real mandando tomar à direita, quando o correto seria atravessar o caminho de eucaliptos, dobrar à esquerda e seguir pelo caminho que subia em direção aos muros de pedra da Fazenda do Engenho Velho dos Cataguás.
Parei por instantes, limpei o suor, bebi um pouco d'água e sorri com tristeza: aquele ponto seria mais um divisor...
Segui em frente, pois a jornada ainda estava longe de terminar. Abri e fechei porteiras, muito suei debaixo de um sol implacável, esquecendo das laranjas que havia comprado. Passei pela velha fazenda com seus tantos muros de pedra e cheguei em Bandeirinha. Meu percurso até Bandeirinha foi irretocável, mas eu tinha o nome Lagoa Dourada na cabeça. Depois, com calma, o descobri logo no início do roteiro daquele dia, trezentos metros depois de sairmos de Casa Grande. Sozinho, bastante cansado, deixei-me seduzir pelas obsessões e não dobrei à esquerda para Prados. Cego, rumei direto para Lagoa Dourada, em torno de 6 km dali, apenas para descobrir meu tonto engano. Já estava corrigindo o erro, uma longa subida para quem já havia subido bastante naquela manhã, quando o Gilton me ligou perguntando onde eu estava. Eles também tinham ido parar em Lagoa Dourada e estavam acabando de almoçar. Nos encontramos, almocei e novamente partimos, mas entendi que seguiríamos direto para Prados, pelo asfalto mesmo. Como sempre sou o mais lento, segui na frente para mais adiante ser alcançado, enfrentando uma ladeira longa e alta, deixando de dobrar onde eles dobrariam para retomar Bandeirinha.
Nesse dia, o grupo ficou dividido em três partes: eu sozinho pela rodovia, Fernando e Omar por um caminho de terra, Gilton, João e Suzana por um outro caminho de terra. Todos chegamos em Prados...
O ouro estava a nos turvar as mentes, aliado com as agruras do caminho, que é duro, exigente e muito lindo.
Foi mais um dia de lição para mim, mas esse é o gostoso da vida que nos ensina sem forçar, deixando que descubramos os nossos equívocos, nossas crenças erradas, nossas certezas arrogantes...
No Caminho da Fé eu já havia descoberto que cicloturismo não combina com pedais e sapatilhas clipadas. Agora eu descobria que não devemos brigar com o tempo, aquele do relógio, nem brigar com a bicicleta, uma boa amiga, e sempre que você estiver cansado ou fustigado pelo outro tempo, aquele que a tudo rege, então é hora de descer da bicicleta, levantar o pó com os pés, estabelecer contato com o chão da Natureza, diminuir o ritmo da alma e do coração, ser embalado pelos pássaros, pelo vento suave que começará a lhe compreender, ser afagado nas sombras que transformam a argila vermelha em outras cores.
Foi mais um dia de ouro que acabei perdendo...
* * *
Prados - Tiradentes
Ficamos hospedados na Pousada Vivenda Letícia, que me havia informado ficar ao lado de um restaurante. De fato, o restaurante existe, mas fechado. Foi preciso tomarmos um Táxi para o centro de Prados, e mais outro para a volta, ou seja, sempre que nos afastávamos do Guia da Estrada Real, estávamos a nos dar mal.
A única vantagem dessa pousada é que ela fica cerca de 500 metros do Portal da Estrada Parque - Passos dos Fundadores, a que tomaríamos margeando a imponente Serra de São José.
Ainda noite, Seu Pedro nos informou que o fogo havia queimado tudo no dia anterior. Era o bicho homem, mais fera do que os ditos sem razão...
Bem cedo encontrei Suzana recolhendo a própria roupa do varal. Aproveitei e também peguei a minha, lavada num tanquinho elétrico na tarde anterior, de onde a água, junto com a perfumada espuma, saía na cor do barro. A encontrei novamente já tomando café. Gentil, preparou um ovo mal passado, que lambuzei no pão, para mim, o recheio mais gostoso.
O dia prometia ser nublado, com o Sol fazendo força para se impor. O Caminho avisava ser dos mais belos até ali, afinal bastava olharmos a serra com seu grande paredão. Pedalaríamos sob túneis de grandes árvores, mil pássaros, cada um na própria língua, cantando seus versos e louvores. Iniciei sozinho e bem devagar, atento às tantas belezas e contrastes da argila vermelha com o verde forte da vida que abrigava mais vidas ainda, História de tantos bravos que um dia por ali andaram...
Arrumei dois pequenos amigos, que me seguiam e paravam, conforme eu também seguia e também parava, porque todos os dias, as oportunidades se renovam, assim como o Sol, que não cansa de recomeçar.
As folhas secas abriam caminho para que eu passasse, os roxos Ipês teimosos, já fora de época, lá me brindavam a audácia, que em silêncio observava os primeiros sinais das cinzas consumadas, sentindo-lhes o cheiro e o calor atravessando a manhã fria. O desconhecido me chamava, me convidava a descobrir-lhe as entranhas a cada curva ou subida realizadas.
Essa é a beleza do Cicloturismo, a sutileza ímpar que lhe permite adentrar pela Natureza, passear por suas vísceras sem nenhum dano, conduzir-se pelas artérias, devagar com sabedoria, desfrutando e participando, como se você fosse aquele mais um, que também ali participa de toda a festa.
Não queira ganhar tempo, nem se preocupe em perdê-lo, porque o tempo, você o estará usando - essa é a filosofia da coisa: primeiro um pé empurra; depois é a vez do outro...
Fazendo assim, a vista agradece, a alma se torna maior e nos rejuvenesce, o coração deixa a paixão aflorar e o amor se faz presente, e deixamos de ser mortais por instantes...
Pegue sua bicicleta e pratique a paciência... Se não conseguir, você não é um cicloturista; é apenas mais um turista que em primeiro lugar pensa nas compras e despesas que pode fazer. Se não conseguir, largue a bicicleta e tome um avião, mas se mesmo assim você ainda ama as duas rodas, uma motocicleta é mais adequada.
Olho o paredão rochoso formidável à minha direita... Mesmo ele com toda a força que detém, foi moldado pelo tempo, é puro e simples por mais aprender os conselhos dos ventos e das chuvas que em carícias, desenham-lhe o caráter e a vida.
Tiradentes enfim aparece; dorme tranqüila no grande vale, ali onde o homem com as pedras, plantaram raízes e feitos, domaram o rude transformando-o em belo, que singelo ainda hoje reluz...
Procuramos a pousada do Bebeto, que nos acolheu de braços abertos, um grande varal, um tanque com sabão, mordomia rara para quem vive sujo... Você pode procurá-la sem medo, até porque é bem central. Defronte, uma loja bem simpática com frutas cristalizadas, doces da terra, compotas de dar água na boca, doces e bombons de leite e chocolate, e uma parede inteira de cachaças. Pergunto se tem a cachaça Havana. Tem só duas garrafas; cada uma custa R$ 698,00.
De Prados para Tiradentes não se tem o que errar. Pedalamos pouco nesse dia, de propósito, porque Tiradentes com seu Largo das Forras, porque era onde os escravos recebiam suas cartas de alforria, é muito linda e aconchegante. Tudo lá é muito antigo. Lá eu pratico pequeno delito: fotografo o belíssimo altar da Matriz de Santo Antonio, segundo o Guia do Olinto e Rafaela, a segunda igreja mais rica do Brasil, com aproximadamente 480 kg em ouro, claro, não sem antes comprar um CD que me promete muitas imagens...
O charme da noite ficou por conta de um grande vaso cheio de carvão, formato pentagonal, por fora de metal, por dentro forrado por refratário. Aceso, nos distribuiu calor carinhoso por entre as mesas, nos dificultando a vontade de ir embora.
Nessa noite, eu, Gilton e Fernando, jantamos pão francês com queijo e mortadela, acompanhados de um bom café forte, numa gostosa padaria, onde fomos à procura de pão de queijo, não mais o encontrando. O dia estava terminado; restava a cama a nos restabelecer as energias.
* * *
Tiradentes - São João del Rei
Saindo de Tiradentes |
Acordei cedo, tomei o café e parti. Esse também seria um dia curto, porque a cidade também é muito histórica e bonita. Estava ansioso para a ver a cachoeira aos 3,6 quilômetros, mas o que vi foram pedras secas. Ainda bem, porque naquele frio, não seguiria o conselho do Olinto e Rafaela para um banho. Também não existe chance de se errar.
Quando já chegava em São João del Rei, comecei a ouvir os sinais da Maria Fumaça, que me transportaram ao tempo das ferrovias do início do século 20. Dei sorte e consegui fotografá-la em plena manobra, a Baldwin Locomotive Works 68, lançando suas baforadas como uma dragão-fêmea, poderosa o suficiente para nos ouriçar o coração, disparando-lhe a pulsação. Fiquei ali na plataforma, vendo-a afastar-se de mim com elegância, seu fogo intenso a brilhar por sobre os trilhos, e tive orgulho. Feliz do povo que conserva a sua História, essa mesma que tantos teimam em jogar fora...
Se você puder, ajuste a sua passagem por São João del Rei para coincidir numa sexta-feira, sábado ou domingo, dias em que você poderá fazer um magnífico passeio até Tiradentes e voltar, revivendo os dias de glória da EFOM (Estrada de Ferro Oeste de Minas). Quando a 68 ficou pequenina, deixando apenas o rastro de sua fumaça, fui visitar o museu que nos traz muita cultura. Não é permitida a entrada de bicicletas, mas o Encarregado me arrumou uma sala especial onde a pudesse guardar com segurança. Viajei no tempo e pude ver o esmero com que faziam as coisas antigamente, duráveis e bonitas.
Dali até a igreja de São Francisco, foi um pulo. A Pousada Beco do Bispo me aguardava, bem ao fim da estreita rua que descia ao lado da bela igreja.
Querem saber de uma coisa? A Pousada Beco do Bispo valeria um capítulo dessa crônica. Ela é simplesmente linda e charmosa como a dona que nos recebe com simpatia, a Nitza, filha do idealizador e criador da Estrada Real, o Áttila Godoy. Para vocês terem uma idéia, o banheiro de meu apartamento era maior do que os quartos que estivera pernoitando até ali. Fino acabamento para onde você olhar, decoração perfeita do puro e sério bom gosto tradicional, ambiente cheiroso e iluminado.
A cama nos convida o tempo inteiro, onde afundamos com prazer. A televisão é tela plana, o abajur é bem discreto, o sofá chega a nos envolver, e na bancada cabe tudo. Comprei um vinho e festejei, afinal eu merecia.
Fui conhecer a cidade e desta vez, todos os templos estavam lindos e receptivos - fotos à vontade, pareciam dizer...
Almoçamos e dividimos, eu e Suzana, uma pequena garrafa de vinho seco chileno. Em cicloturismo, depois de uma boa pedalada, tudo se transforma em bons sabores, porque o corpo, enquanto no regime das exigências, se comporta com disciplina, mas em descanso, fica livre e solto...
Porém o cicloturismo tem uma coisa chata: nos deixa sempre sonolentos e preguiçosos quando não estamos pedalando. O ideal seria que pudéssemos passar sempre um dia inteiro onde chegássemos, mas isso duraria muito tempo. Fizemos isso em Tiradentes, estávamos fazendo em São João del Rei, e faríamos em Caxambu.
Na verdade, nos tornamos inquietos, a musculatura enrijecida nos reclama: por onde andam os pedais!?
Não queremos chegar, mas queremos continuar a pedalar. Cãibras? Isso é para atletas. Em cicloturismo, essa palavra pouco existe...
Voltei para a pousada, pois havia marcado encontro com os dois amigos lá de Belo Horizonte. Mais um pouco eles chegavam, Wagner com a esposa Gladis, e o Márcio, desta vez com um rocambole que foi devidamente devorado por todos na hora do jantar e dia seguinte no café.
Passamos a tarde quase toda conversando e rindo, até que eles foram embora, mas quem vai pedalar uma vez em Minas, continua arrumando razões e trilhas para ir de novo. Acho que são os ares das montanhas e com certeza, nos veremos outras vezes.
A noite já dava seus ares, a quietude se fazia bocejar e fui tomar meu vinho sossegado, arrumando adiantando meus alforjes, recarregando todas as baterias, da máquina fotográfica ao GPS. Abaixei as luzes e tomei a última taça. O sono pedia licença em cumplicidade com a bela cama, com as cobertas alvas, os travesseiros cheirosos e volumosos.
Naquela noite eu era um rei...
* * *
São João del Rei - Capela do Saco
Durante o planejamento, o trajeto que mais me preocupou foi esse. Capela do Saco fica apena a 500 metros de Caquende, mas do outro lado da represa, que só atravessamos por uma balsa onde acoplaram um velho trator, que gira suas rodas em pás, como se fosse uma daquelas velhas embarcações do Velho Chico, uma solução para lá de engenhosa.
O problema é que a última balsa saía até os 15 minutos antes das seis da tarde, ordens da Capitania. Se perdêssemos a balsa, não haveria lugar para se dormir em Caquende, porque lá não existe pousada. De São João del Rei até Caquende, só uma pousada no meio do caminho, em São Sebastião da Vitória.
Era preciso vencer quase 60 quilômetros, subindo acumulados 1.158 metros, uma boa puxada.
Saí cedo como sempre e meu caminho foi batendo certinho com o Guia do Olinto, até a tal erosão do lado esquerdo da rodovia, após a calcinação. A tal erosão estava lá, enooorme, mas o hodômetro não batia - faltava ainda cerca de 1 quilômetro...
Olhei em volta e a única erosão era aquela. Para complicar, duas estradas de chão partiam quase paralelas. Nada fazia sentido e tudo fazia sentido ao mesmo tempo, porque os pés param de pedalar e a cabeça começa a funcionar. Pensei: uma das duas é nova e não existia no tempo do Olinto.
E a diferença no hodômetro? Podia ser uma porção de coisas... Um pneu mais cheio roda menos; um pneu mais vazio, roda mais. Olinto poderia ter zerado um pouco antes; eu poderia ter zerado um pouco depois...
Olhei a hora, olhei para a erosão, olhei para as duas estradas e escolhi a mais graciosa, aquela mais sinuosa... Confesso que desci com o coração apertado, sozinho a descer uma grande ladeira, que bem poderia ter que subir novamente, mas meu Anjo da Guarda estava de prontidão, e ele não costuma falhar.
Desci aquilo tudo e subi mais um pouco, e fui parar num beco sem saída... Os cães quando me viram, sinalizaram um bom desgosto e de longe já me mostravam os dentes. Desci da bicicleta e com muita calma gritei aquele "Ô de casa..!", logo aparecendo um senhor e uma senhora, que logo trataram de apaziguar os cães. Conversamos e eles me disseram que eu havia tomado a entrada errada.
Enquanto me via subindo aquilo tudo de novo, já bronqueando com meu Anjo da Guarda, que devia ter também tomado do meu vinho lá na Beco do Bispo, a barriga deu sinal, ou seja, nada está tão ruim, que não possa piorar. O senhor, um tipo calmo e bonachão, debaixo de um grande chapéu e alguns mugidos de suas vacas, sorridente me ensinou que se eu voltasse e pegasse um pouco acima para a esquerda, sairia no mesmo lugar. Eu não era o primeiro...
Agradeci e fui embora, agora mais leve, porém ainda pesado, pois agora a barriga reclamava com mais vigor. Lá bem longe, depois de um mata-burro, enfim a moita apareceu. Peguei meu pacotinho de guardanapos, 50 ao todo (dá para muitas moitas), encostei minha amiga com cuidado, e enquanto ia caminhando, ia também abrindo o pacote para inaugurá-lo. O resto da história cada um bem sabe...
Aliviado e mais confiante, retomei o caminho e na primeira encruzilhada, seguindo à esquerda como ensinado, passei a ver dois rastros. Mais um pouco via uma pequena casa e ali parei. O dono, que pintava uma porteira, informou que haviam passado por ali no dia anterior. Perguntei se São Sebastião da Vitória estava longe e ele me apontou uma vereda lá no alto entre eucaliptos. Dali bastaria atravessar a rodovia e eu já estaria perto.
Com alegria voltei ao roteiro, estabeleci as diferenças do hodômetro e segui adiante. Quando chegava nos eucaliptos, um gavião me chamou:
- Sabe aquele pedaço que você errou?
Respondi que sim e ele continuou:
- Havia uma pepita que eu larguei...
Busquei minha água, ofereci-lhe um brinde e ele voou, farfalhando suas asas com vigor. Lá do alto, uma coruja que a tudo observava, informou:
- Não se importe; era ouro de tolos...
Lancei-lhe um sorriso, pisquei-lhe um olho e fui embora. Pareceu-me que ela também sorria...
Cheguei em São Sebastião e encontrei a todos numa lanchonete. Era a minha vez de comer e pedi um pão de queijo com recheio de frango e requeijão catupiry. Pedi outro e o prazer era muito bom. Disse à moça que me atendia que ela era muito linda, e de fato era, mas o que fazer quando estamos empolgados e no caminho certo? Ela sorriu contente e agradeceu, afinal, quem é que não gosta de gentilezas e bom tratamento?
Tomei um café forte e amargo, agradeci e fui embora. Caquende me aguardava.
Dali até Caquende era moleza, quase que descendo. Sabem aquele gavião? Agora o encontrava a enrolar um pobre garrote. Lancei-lhe um cotoco e continuei pedalando...
A represa de Camargos é bem grande, encravada entre montanhas, serpenteando-as em ziguezagues. Quando fui chegando em Caquende, dois garotos me viram, pegaram suas bicicletas e me acompanharam, cada um cheio de perguntas. Novamente encontrei a todos aguardando a balsa. Começava a soprar um vento frio acariciando as águas, que arrepiadas produziam marolas.
Notei ao longe um pescador calado. Olhei melhor e vi que há muito tempo ele não conversava com ninguém, nem tampouco pegava peixe algum, mas quem se preocupava com isso? Passasse por ali quem passasse, ele não estava nem aí...
A balsa apontou e de repente começou a espirrar água; em pouco tempo, aquela geringonça aportava em nosso lado: três carros desceram, três carros embarcaram, e junto com eles, nós seis para o outro lado.
Enfim agora era só procurar a pousada, apear e descansar, mas o que eu não sabia é que planejavam seguir até Carrancas. Determinado, bati na pousada e deitei meus trapos. Fossem até para a Lua, dali eu não arredaria. Mais alguns minutos o bom senso prevaleceu, e vi todos entrando na pousada.
O dia seguinte provaria que a minha decisão estava certa...
Tomamos um banho e descemos até a beira do lago, onde tomei uma cerveja e fui embora. Na casa ao lado tocava Pink Floyd e outras músicas bonitas, mas eu precisava de sossego. Subi até um outro bar, desta vez o da Dona Fátima, comi uma torta de frango, uma porção de fritas, bebi uma cerveja e conversei bastante com ela, com o Azulão e um amigo dele. O Azulão havia trazido uma sacola de aipins (macaxeiras), e conversamos sobre Roças. Acabei prometendo a ele umas manivas (nós do caule, donde saem as mudas) de Mandioca, mas avisando que só serviam para fazer farinha, pois a mandioca é muito rica em cianeto, um veneno poderoso.
Ele chegou a escrever o endereço dele, me entregando, mas Dona Fátima o demoveu da idéia e ele me pediu de volta. O sono se acercava e eu precisava ir embora.
Pousada Reis é a única pousada de Capela do Saco, e se alguém quer um bom conselho, não se aventure, nem se arrisque a pedalar à noite onde existam os mata-burros, pior ainda quando eles são mata-bikers. A noite foi feita para ser dormida, nunca para ser percorrida em cicloturismo.
* * *
Capela do Saco - Carrancas
O caminho até Carrancas é muito contrastante, porque atravessamos primeiro a argila, e depois subimos a Serra de Carrancas, toda em arenito bem branquinho. É uma serra bem empinada...
O Sol naquele dia não daria as caras, o que para mim era muito bom. Terreno amplo e limpo, o vento nos brindou quase o tempo todo.
Aos poucos a represa foi se tornando menor, até que finalmente desapareceu quando iniciamos a descida pelo outro lado da serra, já chegando em Carrancas. Toda a paisagem estava seca ao sabor dos ventos que a tudo acariciavam, salvo pequenas ilhas de verdes, mata nativa ou de eucaliptos. O vento deita o capim e mistura as poeiras, remexendo as galhadas e as folhas.
Se o Sol estivesse vivo, teria sido um dia bastante penoso.
A pressa nos afasta todas as belezas do caminho, e qualquer caminho tem seus próprios encantos. A pressa só nos permite ver o chegar, e chegar, em cicloturismo, não tem graça. Chegar é apenas um pequeno evento, informando que tudo naquele momento acabou, diferente do começar, que nos abre amplas expectativas de tudo o que poderemos encontrar, e encontramos muitas coisas, porque quem procura, acha.
Aquele seria um trecho sem possibilidades de ouro, aquele metal, mas outros ouros poderiam ser apreciados, como o da determinação e perseverança, o continuar de pé quando tudo à volta foi sucumbido... O local parecia difícil, com um paredão que um dia se ergueu majestoso em busca dos céus.
Ao pé da serra, numa plácida sombra, enxuguei o suor com minha toalhinha de fralda, bebi um longo gole d'água e percebi um bom amigo a me observar. Lancei-lhe um sorriso e um brinde e ele ergueu a longa face em agradecimento, desejando-me uma boa subida. Eram 10 e meia da manhã e ele descansava sobre um bom pasto, enquanto do outro lado, tudo eram cinzas.
Mais à frente uma encruzilhada, um caminho a se dividir em dois, como o sim e o não, como o queimado e o vivo, onde a escolha é sempre você quem faz. Minha encruzilhada era bastante fácil, bastava seguir à esquerda, mas quantos não têm essa opção? Quantos ainda estão por descobrir qual o caminho a ser seguido?
Fiz uma pequena Oração agradecendo tudo até aquele ponto, e até chamei meu Anjo da Guarda de um cara legal. Tomei mais um gole da minha água mineral com gás, que todos condenam por fazer mal, e fui embora, não sem pensar nas coisas que fazem ou não fazem mal.
Coca-cola tem gás e não faz mal; cerveja tem gás e não faz mal; gueitorêides, carbápes, medicamentos que têm drogas, não fazem mal; lideranças equivocadas não fazem mal. Faz mal apenas a minha água, que tem gás... A subida começa e me desvia a atenção para a areia frouxa que começa a me fazer dançar. Pedalo enquanto posso, mas logo apeio de minha amiga; será mais fácil ambos com os pés no chão, e começo a empurrá-la ladeira acima, admirando a alvura daquela pequena estrada. Um barulho de água a correr à minha direita, suaviza a inclinação, porque não há nada igual ao barulho da água jorrando em seu destino. Mais acima descobrirei as belezas que ela encerra.
Vez ou outra vou olhando para trás, e a represa ainda me toma conta. Quanto mais alto vou ficando, mais majestosa ela se apresenta, agora inteira quando antes só víamos pequenas partes. De onde estou reparo num caminho à minha direita, contudo sem enxergar a ligação com o que estou, quando o desânimo bate à porta, porque ele é bastante empinado...
Seja como for, ele será vencido, responde o otimismo, e a fibra corrobora e a perna dá o primeiro passo, ultrapassando o primeiro dos tantos perigos...
Ao pedalarmos sobre extensos campos, vemos caminhos e caminhos, porque o homem, antes de tudo, foi um andarilho, portanto, construtor de caminhos, e caminho é a própria vida que construímos. Assim, por não enxergarmos suas ligações, conjecturamos com nossos botões, qual deles seguiremos, como naquela história das encruzilhadas...
Seguimos em frente e vamos descobrindo, como qualquer descoberta é sempre boa, quando boa é a intenção.
Sempre que posso, monto novamente e pedalo, para que minha amiga não fique mal acostumada. Chego finalmente onde parece ser o topo. Não é, mas já dá para continuar pedalando e descubro com prazer que meu caminho é novamente pela esquerda. Agora o vento se faz presente, como a me saudar o feito. O corpo relaxa porque sabe que agora vem a descida. É hora de novamente parar, enxugar suores e beber mais água, com gás.
Reparo o roteiro; Carrancas não está longe. Inspiro forte e arranco, e logo Carrancas me aparece, uma doce ilha no meio do vale, oásis assegurando mais um dia conquistado.
Ficamos alojados na Pousada Roda Viva, uma ótima pousada com comida boa, e café da manhã primoroso. Não deixe de visitar a Associação dos Artesãos de Carrancas, vizinha ao Banco do Brasil.
* * *
Carrancas - Cruzília
Foi um dia muito difícil... O Sol deu as caras querendo cobrar o tempo perdido em que esteve escondido pelas nuvens cinzentas que não pedalavam... Ao todo, seriam 64,3 km, com um total de 1.506 metros acumulados em subidas.
Por melhor que seja o café da manhã, pedalar com a barriga cheia não é uma coisa boa, pelo contrário, só nos causa desconfortos. Já vi colegas que vomitaram, quando o ritmo foi pesado.
Fiquei impressionado com o tempo que parece parar em certos locais. Não sei qual foi o ano exato em que Antonio Olinto e Rafaela Asprino escreveram o Guia de Cicloturismo ESTRADA REAL - Caminho Velho, mas guardo na cabeça algo como 10 anos atrás. O porquê desse número, eu não sei explicar, porém a cabeça da gente é algo maravilhoso que guarda as informações sem que saibamos. Assim, 10 anos atrás, 5 anos atrás, não importa...
Na marca do roteiro, à página 85, constava: km 0,33 - Na praça com uma só árvore, virar à esquerda na rua 8 de Dezembro.
E a única árvore estava lá...
Parei por instantes, sorri e me vi de repente, num túnel do tempo. Está certo que os monumentos, os prédios e fazendas antigas pouco mudem, mas uma praça ao sabor dos prefeitos que vivem a mudar o que não precisa ser mudado, ainda estar como o casal Olinto viu, foi uma grande surpresa para mim. Não lembrei de fotografar, talvez porque a árvore fosse pequena e raquítica.
Não muito longe, começava a estrada de terra e Carrancas foi ficando para trás. Logo próximo de Carrancas, visitamos a Cachoeira da Fumaça, que com o nível atual das águas, não produzia nem arco-íris, quanto mais fumaça. Mais à frente estava o trevo para a Cachoeira Esmeralda, mas preferimos seguir adiante, em vista do que vimos na cachoeira anterior.
O Sol estava rabugento, praguejando jogando raios em tudo, fazendo a poeira levantar ao sabor do vento que também era morno. Precisava poupar água, que aliás já estava morna, uma sensação esquisita a passar pela garganta que já está seca, sem contudo matar a sede...
Para piorar, a fome começava a apertar, na verdade um mimo do organismo que não quer ceder suas reservas. Que se danasse, porque eu seguiria em frente. Na noite anterior, passando a vista no roteiro que estaria seguindo, notei que atravessaríamos uma velha estação e uma fazenda histórica, e confesso que não dei o valor suficiente ao item comida.
Não sei cantar, mas sei fazer o hum-hum-hum das músicas, e comecei a hum-hum-zar Beethoven, depois os canhões de Tchaikowsky, em Ouverture Solene 1812, e quando vi, estava já em Vista Alegre, por volta do km 24, quase metade do caminho. As tripas já davam nó, a água já não mais bebia, e vi um senhor de cócoras nalgum portal. Parei e perguntei se ali havia algum lugar onde se pudesse comer. Muito calmo ele estendeu o braço direito para cima e perguntou:
- Está vendo aquela casa?
Respondi que sim e ele continuou:
- Vire á esquerda, atravesse o trilho e ande mais um pouquinho.
Agradeci e segui adiante. Tratava-se de um bar onde alguns moradores já bebericavam num bom início de tarde de um domingo, quando todos começam a descansar e comemorar. Eu não tinha nada para comemorar e nem havia chegado na metade do caminho, mas aquelas recém chegadas sobrecoxas de frango à milanesa me pareceram deliciosas. Pedi duas, pedi dois ovos fritos ao ponto, uma lata de cerveja, água mineral com gás e fiz a festa. O pessoal me olhou com interesse meio desconfiado, virei para eles e disse que a fome estava grande, muito grande; a sede também. Aí eles sorriram e levantaram um brinde, no que brindei também, o copo na mão direita, o osso da galinha na mão esquerda, que os dois Pastores Alemães na porta, não deixaram de notar. Perguntei:
- Que sol é esse?
Um mineiro, como bom mineiro que era, respondeu tranqüilo:
- Sol brabo...
Sorrimos todos e continuamos a conversa, com perguntas e respostas, eu mais respondendo e comendo, do que eles ouvindo. O homem do campo é prático, acostumado com as agruras do tempo e da terra, e no fundo acho que eles não entenderam o que é pedalar todos os dias, dia após dia, apenas porque gostamos de pedalar, contudo, demonstraram respeito pela façanha, porque doido ou não, até ali eu já havia pedalado mais de 300 quilômetros, coisa que, doido ou não, pouca gente faz.
Descobri que os dois cães eram mãe e filha, mas a mãe era a mais sabida; comeu todos os meus ossos...
Com a barriga contente, apertei a mão de cada um e parti. Cruzília me aguardava...
Mais adiante parei para admirar a linha férrea, que fazia um "esse" no calor do meio dia.
Faltava pouco para vencer a primeira das duas subidas principais, a primeira de cerca de 170 metros, e a segunda com cerca de 130 metros. Subi mais um pouco e comecei a descer, até chegar na Fazenda Traituba, cerca de 1.000 metros de altitude, onde Olinto nos conta uma História triste, até a envolver Dom Pedro I. Senti vontade de conhecer Dona Alice, mas olhei a hora e achei melhor seguir adiante, porque dali em frente só haveria uma casa e uma fazenda, e os mata-bikers nos aguardando com suas garras afiadas...
A beleza do cicloturismo é que temos um mundo inteiro a perder de vista, só para nós, mas devemos estar preparados para as adversidades, e eu estava sozinho, por último... Isso significa que você está por sua conta e risco. Isso significa que você tem consciência do que está fazendo. Significa que você saberá lidar com o que der e vier. Significa que você não tem o apoio de ninguém. Significa que você é independente e não depende de quem quer que seja. Isso significa, principalmente, que você sozinho, é capaz de conquistar qualquer mundo, mas se você só sabe andar se for encangalhado com alguém, cresça e vire gente grande, não importa a idade que você tenha...
Cheguei no Hotel Central, quase defronte da igreja Matriz de Cruzília, em frente à praça Capitão Maciel. Dona Maria, não se importando se perderia o freguês, informou que meus amigos haviam passado por ali e estavam alojados num hotel mais abaixo. Lancei-lhe um sorriso e lhe disse que havia gostado da simpatia dela; eu ficaria ali. Perguntei se a cama era boa, se o travesseiro era cheiroso, se havia um lugar onde pudesse lavar a bicicleta, se havia como lavarmos a roupa suja.
Solícita, deu sim a todas as questões. Despreguei meus alforjes da garupa e ela me levou até meu quarto, gostoso, quieto e limpo. Despojei-me de tudo o que era sujo, reservando apenas a cueca, pois essa eu lavaria. Lavei a bicicleta, subi e tomei um banho. Comi alguma coisa, comprei uma garrafa de vinho, pães de queijo e já estava pronto para o dia seguinte.
Dona Maria, esposo e filha, me atenderam como se fosse da família. Se você gosta do calor humano, procure o Hotel Central, mas se você gosta das coisa bonitinhas, vá para a rua de baixo.
A propósito: o café da manhã foi muito gostoso.
* * *
Cruzília - Caxambu
O dia seria de sol, com certeza, mas pelo menos em descidas, pois que Caxambu era uma das cidades que resolvemos parar para bem conhecê-la, face sua grande fama no mundo das águas, todas minerais, gaseificadas naturalmente. Isso me lembrava do tempo em que eu estudava no Colégio Cearense, lá em Fortaleza, montado sobre uma fonte de água mineral, gaseificada pela Natureza, a sair pelos bebedouros, sempre que apertávamos.
Apenas 29 km, um tapinha, naquelas alturas em que já tínhamos enfrentado distâncias e elevações maiores. Até ali eu vinha brigando com meu câmbio, que pegava e soltava nas marchas mais necessárias, aquelas mais leves que mesmo assim ainda são pesadas para as grandes subidas, mas brigar é necessário quando a intolerância aos argumentos falhos, chega no limite do compreensível.
Por falar em brigar, as aleias me reservavam naquele dia, um bom dia de sombras, todas pacatas e prestimosas em fazer o bem de quem as utilizasse com prazer, de preferência a ouvir os pássaros que não cansam de cantar, principalmente para desviar as atenções dos próprios ninhos, uma autodefesa inteligente em prol da prole, que nos enche de alegrias, pois o cantar, seja lá de qualquer ânimo, seja lá de qualquer ser vivente, é a língua universal de Deus.
Você fariseu, que reza para os outros verem, deveria cantar, mesmo que fosse pauleira, ou moda sanfoneira, porque a canção carrega notas, e todas as notas, em número de 7, um número mágico, produzem quando há inteligência, emoções reais.
Desde Cruzília que a viagem vinha monótona, até quando parei sobre aquela ponte e observei as águas. Estava na marca 7,90 km. Vocês já ouviram a água? O leito mesmo sendo o mesmo, ela não cansa de se modificar, produzindo sons diferentes à medida em que corre, pois que o vento também conversa com todas elas, parentes próximos...
Uma folha seca que caía, em folha seca ia descendo, o pior e mortal estol de uma aeronave, onde ela parece planar e voar, mas na realidade desce como tijolo, espatifando-se no solo. Quem já viu uma folha seca a cair, não imagina o terror a se passar dentro de uma carlinga, onde existem pouquíssimas chances de recuperação, a não ser se, a depender do tempo que você tem, portanto da altitude em que você está, puder deslocar o centro de gravidade para uma das extremidades, proa ou cauda...
Mas a folha seca também lembra o fim do ciclo daquilo que já foi viçoso. Como folha seca nos avisa que já está partindo. Como folha seca nos informa que estará participando, a decompor-se mais adiante para que os viços continuem - é a Natureza se recompondo...
Ela cai antes da ponte, sem estardalhaços, e a vou encontrar navegando já do outro lado, onde mais um pouco seguirá pela curva que o pequeno rio forma, como as curvas que eu adoro espreitar e especular, a esconderem o meu futuro e horizonte.
Por instantes a minha amiga, encostada à amurada, se vê obrigada a me esperar acompanhando a pequena folha que agora segue um novo destino, assim como um dia também seguiremos, depois de tantos viços, tantas realizações, tantos ouros conquistados, tantas soberbas amesquinhadas...
Se você apenas pedala, pare um pouco para pensar, para observar à sua volta, porque você não tem horário a ser cumprido, não tem ninguém a lhe cobrar...
A folha seca some e volto à realidade. Bebo água e monto novamente, cabeça forte, pernas ainda mais fortes e resistentes.
O dia ainda reservaria um pedaço que eu praticamente desceria a pé, tamanha beleza selvagem da vida que se agarrava à vida, para continuar existindo. Era a tal cava funda que o Olinto escrevera, e que eu não entendera até penetrá-la, porque os regionalismos num Brasil tão grande, existem, e devem ser levados em consideração.
Foi, talvez, o trecho mais lindo da viagem, num dia bonito que eu prometera erguer um brinde ao aniversário da amiga Sofia, 19 de setembro, mas antes eu necessitava terminar o trajeto, comprar uma garrafa de vinho, encher uma taça, fechar os olhos e cheirar o néctar, encher a boca e passear com a língua, por fim sorvê-lo absorvendo todos os deuses da garrafa. Não só levantei o brinde, como também desejei felicidades e muita saúde...
Meu hodômetro marcava 11,78 km, quando me deparei com aquele V apertado. Eu sabia que aos 11,75, deveria seguir pela direita, mas aquilo mais parecia uma entrada de propriedade, do que uma estrada propriamente dita. Necessariamente não batemos nosso hodômetro com as marcas do Guia do Olinto e Rafaela, pois que podem existir as diferenças de pressão nos pneus, bem como também existem os ziguezagues que vamos fazendo ao longo do caminho. O bom senso e a atenção nos dizem sempre o que fazer, até porque enxergamos os cruzamentos, as pontes, os marcos, a uma certa distância, e só podem ser aqueles ao que o Guia se refere, mas aquele V estava muito estranho.
Parei, enxuguei o suor, bebi um pouco d'água, e isso é muito salutar quando você estiver com alguma dúvida, pois prepara o espírito para o raciocínio. Debrucei-me então sobre o Guia e lá estava um ATENÇÃO bem grande, antes de me mandar pelo caminho menor à direita (cava funda).
Não, eu não perderia o ouro dessa vez... Não fosse aquela a tal cava funda, eu daria meia volta, afinal, quantas meias voltas na vida eu já tinha feito?
Montei, apertei a montaria com os calcanhares e ela começou a andar, lenta e cuidadosa. Gertrudes, não a antiga mas essa nova, já me conhecia o ritmo. A princípio era mais uma pequena ladeira apertada, que foi se fechando escurecendo, e logo apareceu mais outro V, esse mais apertado ainda, mas o Olinto havia avisado que não era para sair da cava.
Desmontei, saquei da máquina e o canhão se fez presente. Sobre a cabeça algo zumbia assustador. Olhei para cima e não vi coisa alguma. Se me atacassem em mergulhos, meu canhão não daria conta, porque os caças costumam ser velozes e muito ágeis, cada um com seu ferrão certeiro.
Bati de leve no selim, e a bicicleta começou também a andar, e fomos lentamente deixando aquele barulho para trás. A primeira árvore quis saltar e lhe apontei o canhão, lançando-lhe um clique. Ela estacou, pendurada pelas raízes que a seguravam desgrudadas do barranco. A descida se acentuava e eu segurava Gertrudes com uma das mãos, enquanto a outra apontava o canhão de cliques. Os pés levantavam o pó talco vermelho, o que ia denunciando a nossa presença, e todas as árvores iam se virando ameaçadoras, prestes a um ataque maciço de troncos e galhos.
Atravessei Gertrudes naquela estrada estreita, amparando-a com a coxa, enquanto mirava o canhão para cada uma delas, refreando todas as vontades, e vi, a coisa mais linda a querer brilhar para mim...
Encostei Gertrudes ao paredão oposto, mistura de rochas com argila, e lentamente, com muito cuidado comecei a escalar o paredão onde aquela pedra maravilhosa estava. A grande árvore estalou, jogou terra sobre mim, mas não tive medo. A cada centímetro eu mais avançava, torrões esfarelando-se entre os dedos querendo me derrubar, até que agarrei numa das raízes, puxei o punho direito para fora e dei o soco mais violento que poderia dar.
Por instantes o barro parou de se quebrar, e as folhas começaram a me cair em volta. Eu havia vencido...
Estiquei-me um pouco e já podia tocar naquele tesouro, mas percebi dois olhos me fitando. Olhei para cima e vi aquela coruja me olhando. Dessa vez eu tinha certeza que ela me sorria. Todas as folhas haviam parado de cair. Até o vento havia parado e as sombras estavam fixas.
Sorri para a coruja, dei um tapinha na árvore como a me desculpar, estendi o braço e peguei aquela pedra maravilhosa, a Esmeralda mais verde que já havia visto.
Dei um salto e de novo estava sobre a estrada. Com as luvas fui limpando os grãos de argila das reentrâncias da grande gema. A grande árvore sobre mim mexeu a copa e o Sol veio beliscar a grande jóia, lançando-me um reflexo em flashe bem potente. Por instantes fiquei cego, mas logo recuperei a visão. Desta vez a coruja já não mais me sorria, mas fitava-me meio entristecida, sem nada falar. Olhei para ela, olhei para a pedra que parecia vibrar em minha mão, olhei para as árvores, por fim olhei para minha bateia lá nos alforjes, e o amassado aparecia lembrando-me de tantas promessas que um dia não pude cumprir.
Olhei para todos e a tristeza parecia implorar. Chegou-me um nó intenso na garganta, ajoelhei e pedi perdão, enquanto cada gota de lágrima levantava a própria poeira, juntando sais.
Levantei com calma e fui pegar Gertrudes. Até ela parecia triste, descemos mudos e o silêncio nos rondou. Nada mais se mexia e nuvens cobriram o Sol...
Foram 2,7 km de cava funda e eu não mais lhe via as belezas. Guardei a Esmeralda, maior que um ovo, em meio às minhas camisas, bem no centro do meu alforje direito, o lado preferido...
Quando eu terminava de fechar o alforje, os outros chegaram, empolgados com tanta beleza. Estávamos nas barbas de Baependi, e dali seguiríamos juntos até Caxambu, já próximo com suas fontes.
Atravessamos a velha ponte de ferro e mais um pouco zerávamos nossos hodômetros. Uma pequena estrada cheia de cacos de restos de pedras serradas, nos afligiu até chegarmos bem perto de Caxambu. Marcamos bem o cruzamento por onde sairíamos no dia seguinte e seguimos em frente. Caxambu foi a única cidade de nossa Estrada Real que entramos e depois tivemos que voltar tudo de novo. As outras, entrávamos por um lado, e saíamos pelo outro, na seqüência lógica do encaminhamento.
Nos alojamos na Pousada Águas de Caxambu, uma gostosa pousada moderna e confortável, atendimento atencioso e simpático, com café da manhã sortido e saboroso. Lá nos ensinaram ali bem próximo, uma bicicletaria onde deixamos todas as nossas bicicletas para serem lavadas, reguladas e lubrificadas. Gertrudes saiu de lá cheirosa e engatando todas as marchas com precisão.
Almoçamos e contratamos duas charretes para um passeio pela cidade. Na verdade não vimos muita coisa, porque os condutores nos levam onde ganham comissão. Passeei pelo Parque das Águas, onde existem diversas fontes minerais com suas diversas propriedades medicinais, busquei minha bicicleta, comprei algumas frutas e testei Gertrudes pela cidade, aprovando o serviço que fora feito.
A noite chegou, e com ela o cansaço se fez anunciar. Brindei à amiga e fui dormir, uma boa noite de sono num bom colchão, num bom travesseiro, sob cobertas bem cheirosas, porque vez ou outra vinha experimentando as próprias ripas do estrado, quando o colchão, conforme ia sendo prensado, nos brindava. O segredo então era ir um pouco para frente ou para trás, para que ficássemos equilibrados em cima da ripa, e não entre elas, e aí dormirmos paradinhos sem nos mexermos - é a vida nos ensinando...
* * *
Caxambu - Itanhandu
Saí cedo da pousada e junto comigo saíram três pernambucanos. Um deles, o Paulo Ribeiro, eu já conhecia do Caminho da Fé, quando ele pedalou com o amigo Eduardo, o Duda. Agora ele pedalava com o Zeca e o Macelo. Haviam chegado na pousada na noite anterior e tinham pressa, pois estavam fazendo a Estrada Real em apenas 10 dias. Estávamos chegando naquele cruzamento onde deveríamos pegar à direita, mas 100 metros antes eles me abandonaram, dizendo ser por ali o caminho. Fiz que não e continuei, sem insistir, porque é sempre bom quando a gente descobre e volta atrás nos próprios erros que comete.
Iniciei então uma bela subida e pouco antes de sua metade, praguejei, descendo da bicicleta, empurrando-a ladeira acima. Que fosse matar a mãe, mas não a mim.
Com prazer descobri o caminho de terra na marca certa e continuei subindo, agora já pedalando, até encontrar o desvio à esquerda que nos desceria até o Bar do Sanfoneiro. Meu pneu dianteiro secou de repente e parei. Quando já estava retirando a câmara de ar, os três pernambucanos chegaram e me ajudaram até quando o restante do meu grupo também chegou. Mostrei-lhes o caminho descendo à esquerda e todos se adiantaram, permanecendo comigo apenas o Gilton e o João.
Terminamos e seguimos em frente, apenas para eu descobrir que haviam tomado o caminho errado. Olinto era sucinto; estava lá: 2,13 km - Trevo, seguir para a direita.
Eles passaram reto...
Andei um pouco mais para a direita, descobrindo uma casa. Gritei: Ô de casa! Logo me apareceram duas senhoras e conversamos. Descobri que o caminho que eles haviam tomado, sairia também no caminho que o Olinto nos indicava, mas dali em diante eu sabia que nada no hodômetro bateria.
Abandonei meu caminho e seguimos no erro, esperando consertá-lo mais na frente, mas nesse dia uma outra lição estava destinada. Chegamos no ponto onde os dois caminhos se encontravam, mas todos à frente estavam disparados. Minha esperança era encontrá-los na Cachoeira do Pacote, onde eu estabeleceria a diferença entre o hodômetro e o Guia, recuperando o caminho certo, mas eles não nos esperaram. Ainda parei na marca km 15,46 (do Guia). Nenhum pneu havia dobrado ali e João já estava em plena subida...
Seja o que Deus quiser, pensei, e segui atrás do João, uma ladeira bastante grande, para cima e para a frente...
Parei várias vezes para enxugar o suor que o Sol raivoso me infligia. Pouso Alto ainda estava bastante longe e era preciso poupar água.
De repente vi todos descendo; haviam descoberto que estavam errados... Mais acima desciam Suzana, Gilton e Fernando. Esperei por eles. Disseram-me a mesma coisa.
Olhei para baixo, para o tanto de ladeira que havia subido, exatamente do tamanho do erro estúpido, pela pressa, pela falta de atenção, pelas tantas coisas ruins que se passaram em minha mente.
Quem erra na decisão do caminho a ser tomado, bem pode errar na reparação. Eu confiava em caminhos que se encontram, como se encontraram logo cedo, após a decisão errada no Bar do Sanfoneiro.
Virei para os três e fui bem claro:
- Vou continuar subindo - e iniciei o meu caminho.
Os três ficaram me olhando, até que resolveram me acompanhar. Descia uma pequena caminhonete e lhe fiz sinal para que parasse. O Condutor, um senhor com muita segurança, assegurou-me que por ali eu não teria como chegar em Pouso Alto, e os olhos dele falavam a verdade. Agradeci, fiz sinal para os três pararem de subir e me juntei a eles:
- Vamos descer pessoal; estamos no caminho errado.
Ao tomarmos o caminho certo, brinquei com Suzana, que tem medo de cachorros, que o Olinto nos alertava para tomarmos cuidado com algum cachorro ali bem próximo. Ao iniciarmos a subida certa, por sinal bem empinada, Suzana deu sinal de que algo não estava bem e parou. Eu e Fernando ficamos ali dando-lhe apoio. Estávamos em pleno meio dia e meia, debaixo de um sol infernal, bastante quente. Suzana sentou-se à sombra que um arbusto produzia e tentou melhorar. Há dias, Suzana vinha em ritmo desnecessário, e aquele dia foi o pingo d'água.
Nos enganou quando disse que havia melhorado e novamente paramos debaixo de um bambuzal. Estávamos próximos de um povoado onde paramos num bar, onde arrumamos um carro que a transportasse até Itanhandu. Aproveitaríamos o carro e ela nos transportaria os alforjes, pois a hora já ia avançada.
Comi pão com queijo e mortadela, acompanhado com uma boa cerveja, comprei água e perguntei a Suzana se estava liberado, porque minha cabeça estava fervendo. Ela fez que sim e parti, seguindo pelo roteiro, um caminho lindo que ela perdeu, serpenteando e costeando a montanha, onde conversei com muitas belas vacas, desviando sempre que podia, dos tantos "bolos" de bosta pelo chão. Abri muitas porteiras e vi muitos campos, a paz de um fim de tarde que havia sido quente, muito quente...
Cheguei sozinho em Pouso Alto e descobri os três pernambucanos enganchados. O Paulo Ribeiro havia quebrado o passador. Eu já estava com muitos problemas para tentar ajudá-los, e segui em frente. Precisava chegar em Itanhandu.
Já bem próximo, cruzei com o Cal, que treinava em sua MTB. Marcamos um encontro à noite, mas não nos encontramos, afinal, nossos horários não são confiáveis, pois que só chegamos quando chegamos.
Com Itanhandu aproximando-se, arrumei uma amiga e fomos conversando, eu falando de sua beleza e ela escutando, porque escutar também é conversar. Acho que me acompanhou por uns trezentos metros, até quando montei de novo e pedalei. Era uma pequena cadela branca, máscara preta no rosto, bola preta nas costelas. Não perguntei seu nome...
Se você acha que liderar é sair correndo na frente, reveja o seu conceito. O líder nunca põe ninguém em apuros, nem deixa ninguém para trás...
Nos alojamos no Hotel Casarão, uma boa pousada com um bom café da manhã. De noite dei uma saída e comi um espagueti aos quatro queijos, acompanhado de um saboroso vinho seco chileno.
Suzana estava bem e descansada, porque o susto não passara de uma distensão no hemitorax esquerdo. A dor que ela sentira no peito, felizmente não era a dor que temíamos, mas continuaria a doer, pois que tenha lá o nome que tiver, músculo é músculo, seja da perna, do peito ou do pescoço, e sempre que solicitado, dói.
* * *
Itanhandu - Cachoeira Paulista
De Itanhandu até Passa Quatro é muito gostoso e calmo, quase um plano, onde somente duas vezes experimentaremos elevações de 20 e de 40 metros. Passa Quatro, Passa Vinte (rio), Passa Trinta (rio), têm a ver com os antigos Bandeirantes que subiam a Mantiqueira através também de um único Passo, a Garganta do Embaú. Passa Quatro era, portanto, o lugar seguro que o desbravador, proveniente da Garganta do Embaú, chegava após passar quatro vezes o rio que serpenteava pelo vale.
Minas Gerais é especial até nos nomes que um dia adotou com suas cidades. Um deles, que passamos apenas pela bifurcação, a caminho de Tiradentes, é Bichinho, que na verdade se chama Vitoriano Veloso e pertence à cidade de Prados. O porquê de Bichinho, não consegui descobrir, mas Minas é assim mesmo...
Ao longo do caminho, vamos margeando os trilhos das antigas Marias Fumaças que transportavam as riquezas pela região. Aos domingos ainda existe um passeio com uma das Marias Fumaças que foram preservadas, até a Estação do Túnel, palco de muitas batalhas na Revolução de 32.
O céu estava claro, mas não muito quente. A rodovia com seus veículos ligeiros, rugia à nossa esquerda, lá em cima cheia de pressa. Entre nós e ela, o suave rio cheio de pedras distribuindo bondades entre as propriedades. A brisa também se fazia notar, sempre que ela se lembrava de nós...
Não demorou muito e chegávamos em Passa Quatro, onde visitamos a velha estação. Dali seguiríamos até a Garganta do Embaú, quase 200 metros para vencermos. Zeramos nossos hodômetros e seguimos pelo roteiro, para 1,5 km adiante, zerá-lo novamente.
Zerar o hodômetro é começar novamente, é ter a certeza de que tudo está novamente começando bem. Zerar o hodômetro é pôr os pés no chão, dar um tempo à reflexão, um tempo ao gole d'água, um tempo à troca de sorrisos, um tempo para se perguntar se tudo vai bem.
Zeramos o hodômetro no ponto correto, ganhando confiança e certeza de se estar no rumo certo. Não só no caminho quando o roteiro mandar, mas também quando você estiver ligeiro demais pela vida, atropelando alguém, pare e zere o hodômetro, e recomece outra vez.
Suzana estava escaldada com os tantos erros que só a prejudicaram. Fazia algum tempo que eu me guiava por ela, transformando-a em Doutora nos roteiros. Assim, era ela a ler as placas com os nomes das ruas, a perguntar às pessoas que rua era aquela, a decidir o rumo diante das tantas encruzilhadas. Eu apenas acompanhava, e ela estava indo muito bem...
Na saída de Passa Quatro, zerando o hodômetro na Av. Capitão Nicolau Mota, não vendo placa nenhuma, quis ter a certeza de que aquela avenida era a própria. Perguntou então num Posto de Gasolina, e mais uma vez reparei no carinho com que as pessoas se dirigem a nós, no cuidado que elas têm conosco.
- Cês tão indo pra onde?
E informávamos nosso destino.
- Ah..! Mas por aí é mais complicado, sô! Faz assim: vai reto por aqui, na primeira pega pra direita, anda 2 quarteirão e pega pra esquerda, anda mais um cadinho e vai sair na pista...
E precisávamos explicar que estávamos seguindo pela Estrada Real, que tínhamos um Guia como modelo, que gostávamos da terra, da poeira...
- Ah... Intão tá bão..! Vão com Deus...
E seguíamos com Deus, que já Andava conosco fazia tempo. Na hora de contornarmos o campo de futebol, foi divertido vê-la tomar a decisão, e segui atrás, explicando que a figura geométrica era a mesma. Entramos na estrada de terra, largando os paralelepípedos que misturam até os nossos pensamentos, naquela britadeira que chacoalhava tudo.
Na marca do km 4,44, ela informou:
- Virar bruscamente para a esquerda e atravessar o trilho, a ponte e subir reto para a rodovia...
Lembrei a ela que se não quisesse, poderíamos continuar ali por baixo, e chegaríamos ao mesmo lugar do km 6,98.
- Não, não! Agora não saio do roteiro pra coisa alguma!
E subimos a pequena ladeira até alcançarmos a rodovia, que estava com o tráfego paralisado, porque máquinas trabalhavam na pista. Bebemos água e quando já estávamos partindo, o Encarregado nos chamou e pediu que também esperássemos junto com os outros, porque as máquinas eram grandes e poderiam não nos ver ao darem ré. Ponderei que pior seria quando ele liberasse o tráfego, e que eu só passaria pela máquina se tivesse a certeza de que o Operador nos estivesse vendo.
Ele concordou e nos liberou, e a cada máquina pesada que íamos encontrando, trocávamos sinais esclarecedores sobre a nossa visão, no que os Operadores iam dando sinal de positivo para que passássemos. Pedalamos pouco mais da metade do que teríamos que pedalar, com a rodovia só para nós, recebendo os cumprimentos de quem parado estava no sentido contrário, também aguardando liberação, e logo chegamos no ponto onde abandonaríamos a rodovia e desceríamos para os trilhos novamente. Agora só faltava contornar o Bairro Registro, subir para a rodovia e admirarmos o Cruzeiro, local também palco de sangrentas batalhas fratricidas na Revolução de 1932.
Lá era o ponto exato da divisa entre Minas Gerais e São Paulo. Um mundo inteiro de São Paulo, parecia se descortinar em tantas montanhas e vales lá embaixo. Agora seria só descida, 665 metros ladeira abaixo, grande parte dificílima pelo tipo de terreno.
Na marca do km 0,48, seguimos o conselho do Olinto e fomos conhecer o velho Túnel, abandonando o roteiro, para voltar a ele lá mais embaixo. O Túnel não é mais utilizado e a vegetação tomou conta da estrada férrea. Dali seguiríamos por uma trilha dos animais, que foi se apertando com a galhada nos beliscando. Os dormentes pareciam querer nos dar mordidas, as pedras salientes, a nos quererem arrancar os pés. Muito cuidado era necessário. Então gritei:
- Suzana! Mantenha os pedais na horizontal!
E foi uma dessas pedras que surgiu depois de uma pequena moita, quando meu pneu dianteiro a pegou de cheio e estacou, fazendo com que o guidão girasse bruscamente para a esquerda, imprensando minha coxa esquerda contra o quadro, travando-a ali. De imediato fui ao chão, sentindo as galhadas me recebendo, a outra perna por cima da roda dianteira, como se imobilizado por um golpe de Judô.
Tentei voltar mas uma perna pesava sobre a outra, desfazendo qualquer força, apertando ainda mais o alicate que o guidão fazia. Sobre estalos e garranchos retorcidos, fiquei de bruços e fui conseguindo levantar. Olhei para Suzana e ela com os olhos arregalados me olhava.
- Está tudo bem? - perguntou.
Flexionei a perna que havia sido imprensada, passei as mãos pelos cotovelos, arranquei uns carrapichos, bati gravetos que se prenderam e com um sorriso fiz que sim. Estava pronto para outra...
Continuamos nossa descida, agora mais cautelosos, até que chegamos em verdadeiros degraus. Para mim era o suficiente. Desci da bicicleta e Suzana me imitou, e fomos descendo calmamente, quando então achei uma ferradura. Guardei-a no outro alforje, longe da Esmeralda que havia encontrado. Ler o Guia, nem pensar, até porque estávamos fora de rota, mas sabíamos que o retomaríamos mais abaixo. Passamos por pequenas tábuas e troncos, pontes improvisadas sobre córregos alvissareiros, cavalos que nos observavam com interesse, pois não devia ser todo dia que gente como a gente, passasse por ali.
Enfim chegamos onde o Guia nos era novamente familiar. Já dava para montar e apertamos, nós ginetes. A rodovia já se fazia ouvir mais lá em cima à nossa direita. Logo a tomaríamos e nela continuaríamos. Paramos num restaurante aconchegante, paredes cor de rosa, onde a simpática dona nos fritou três ovos mal passados, dois para mim, um para Suzana, que misturamos às nossas saladas e arroz, devorando e limpando os pratos, tamanhas as fomes.
Eu estava decidido a seguir até Lorena, mas Suzana me pediu que reconsiderasse. Lembrei da dor que ela deveria estar sentindo e assenti. Iríamos para Cachoeira Paulista, uma cidade de romeiros.
Montamos novamente e partimos. Agora o asfalto nos embalava com sua maciez, até que chegamos novamente no caminho de terra, esse sim, cheio de conversas, muitas prosas mentirosas quando as pedrinhas começam a saltar, espremidas pelos pneus. Faltava coisa de 2 km para a ponte caída, onde encontramos 2 troncos compridos e finos, desiguais, que ao meio começavam a balançar.
Cocei a têmpora, porque a cabeça não dava; estava coberta com o capacete. Suzana logo tirou os sapatos, pegou os alforjes pondo-os sobre os ombros e iniciou a travessia, como perfeita equilibrista sobre a corda bamba. Enquanto ela passava, desatrelei os meus alforjes e soltei o mala-bike do bagageiro. Fiz-lhe sinal para que me deixasse atravessar as bicicletas, sopesando-as encontrando seus centros de gravidade.
Já do outro lado, atrelamos tudo e partimos. Faltava pouco para chegarmos no Bairro do Embaú, onde paramos para comprar água, retomando logo em seguida em direção ao trevo que, à direita segue para Piquete, e reto nos leva até Cachoeira Paulista. Agora faltava coisa de 8 km e às 4 da tarde em ponto, chegávamos em frente à porta do Lido Hotel, uma pousada que não recomendo para ninguém, mas que engana a quem chega cansado e só depois vai descobrindo as mazelas do lugar. É suja e tem um café da manhã que parece piada. O pessoal também nos recebe cansado, parecendo que está a nos fazer favor.
Se você é do tipo que gosta de verificar até onde vai o próprio limite, esta será uma boa pousada. Boa sorte.
Visitamos a Canção Nova, um teatro bem grande com muitas, mas muitas cadeiras, onde o público se senta diante do grande palco. Vizinhos, intramuros, shopping e praça de alimentação com bilheteria a la estádio de futebol.
Do lado de fora, do outro lado da rua, um prédio de seus três ou quatro andares, comprido, creio que o Centro Financeiro e Administrativo de tudo aquilo.
Encontrei um restaurante chamado Café Cultura e pedi um Pene aos 4 queijos, junto com um poderoso filé de peito de frango, e uma garrafa de vinho seco, chileno.
A diversão seria por conta de ver as expressões, no dia seguinte, de quem ia chegando para tomar o café da manhã.
* * *
Cachoeira Paulista - Guaratinguetá
Saímos cedo em busca de Lorena, mas quando íamos dobrar à esquerda na pequena estrada ladeada por eucaliptos, aquela mesma que cruza a rodovia SP-058 e segue reto, moradores nos avisaram que por ali ninguém passava, porque todo um bambuzal havia queimado e tombado sobre a estrada. Para piorar, nos avisaram que haviam fios da rede elétrica pelo meio.
Fomos obrigados a dar uma grande volta, seguindo até o trevo de quem vem do Bairro do Embaú e segue à direita para Lorena.
Foi bem uma subida merecida para quem não tinha comido nada no café da manhã, apenas algumas torradas e café preto. Dobramos à direita na pequena estrada de chão e Suzana foi seguindo pelo roteiro, não sem antes zerarmos nossos hodômetros.
A estrada estava úmida e logo começamos a fritar peixe com nossos pneus, que em contato com aquelas pedrinhas, faziam o mesmo barulho estalado do óleo quente. Seria um bom dia, descendo, com algumas pequenas subidas ao final.
Até quase aos 5 km, cruzamos com muitos caminhões caçambas, carregados de alguma jazida ali próximo, que diminuíam a velocidade poupando-nos da poeira, às vezes até nos cumprimentando. No cruzamento da grande árvore, uma escola e uma igreja, enfim seguimos por um tráfego quase zero, ladeados vez ou outra, do gado que pastava.
Passamos ao lado da bonita EEL-USP (Escola de Engenharia de Lorena), e logo em seguida por baixo do pontilhão da BR-459. Quando chegamos na ponte do ribeirão dos Macacos, ela estava caída e jogada bem longe pelas fúrias hidráulicas da água. Atravessamos uma estreita passarela de madeira e seguimos em frente. Estávamos quase chegando no cruzamento que nos levaria até Lorena, onde zeraríamos nossos hodômetros novamente.
Paramos nos bares, mas todos estavam acabando de abrir, sem nada bom para comermos. A fome que esperasse... Faltavam ainda cerca de 18 km até Guaratinguetá, e os percorremos sem dificuldades. O caminho lembrava-me bastante quando, no Caminho da Fé, me aproximava de Pindamonhangaba, também prestes a encerrar um outro sonho, em Aparecida.
A fome aperta até quando a desprezamos, não mais nos incomodando dali em diante. Foi ali, subindo uma ladeira meio picante, que vi lá no alto o que achei que fosse uma lanchonete. Fiquei alegre e apertei os pedais, apenas para descobrir que era uma espécie de Portaria da fábrica de explosivos ORICA. Voltei na mesma pedalada e encontrei Suzana terminando de subir, contando-lhe o que havia pensado. Ela soltou uma risada e dali em diante, embalados pela descida, pelo vento gostoso que sempre sopra, a fome foi embora. Passava coisa pouca das 9 e meia. Guaratinguetá não estava longe.
Chegamos na esquina do Posto Médico da Colônia Piaguí e dobramos à direita. Guaratinguetá já se mostrava ao longe, e em pouco tempo alcançávamos a Gruta de Nossa Senhora de Lourdes, fundada em 1921, há 90 anos atrás. Fotografávamos a gruta, a igreja, quando a Irmã Salesiana se aproximou e nos recebeu com muito gosto e carinho, explicando-nos de como tudo aquilo começou com o Monsenhor João Filippo. Hoje é um semi-internato para crianças carentes.
Enquanto a Irmã nos falava, eu a fitava com o pensamento muito longe, além mar em Portugal. Ela pareceu notar, produzindo pequeníssima pausa. Desculpei-me por interromper, mas estava olhando para a minha irmã Teresa. Impressionante a semelhança. Ela sorriu e continuou com as explicações. Depois batemos uma foto.
Estávamos já em Guaratinguetá. Faltava apenas atravessarmos a ponte sobre o rio Paraíba e chegarmos na Catedral de Santo Antonio, donde procuraríamos algum lugar para o pernoite.
Ficamos hospedados no Hotel Royal, muito bom e moderno, café da manhã farto e saboroso. Quase em frente fica a Churrascaria Minuano, com um balcão repleto de opções em saladas, carnes, molhos e temperos, batatas e todo o trivial de qualquer almoço, onde você come bem e paga barato.
Dali seguimos até Aparecida, apenas cerca de 6 km de distância. Se você optar por um táxi, pagará de R$ 25,00 a R$ 30,00, mas se tomar um ônibus, gastará perto dos R$ 3,00.
Aproveitei e coloquei minha ficha em dia, bem como fiz alguns pedidos, acabando por me perder dos outros. Suzana montou num cavalo de madeira, tamanho natural, mas não podia se mexer lá em cima, porque o cavalo tinha rodízios. Mostrou-me depois a foto, muito interessante e engraçada, mas o que ela mais gostou, foi do velhinho que precisava ser auxiliado na hora do manuseio com a impressora.
Jantei na Churrascaria Minuano e fui dormir. Cunha seria uma boa puxada, para cima, sempre para cima...
Antes de apagar as luzes, lancei um olhar àquela bola de pano sobre a cama, minha camisa que envolvia a bela esmeralda. Desde aquele dia que ainda não a tinha desembrulhado, porque todos os dias eu podia ver um gavião, e ele sempre me fitava de frente...
* * *
Guaratinguetá - Cunha
O Caminho é árduo, desde logo do primeiro dia, mas estes dois últimos, nos reservavam duas boas grandes subidas, sendo a de Paraty a pior. Percorreríamos 47,3 km, subindo quase 500 metros até chegarmos em Cunha.
Nossa intenção era sair cedo, enquanto o Sol não fustiga muito, esse astro sempre mal humorado, que a tudo quer queimar. Ela já estava com os alforjes atrelados e eu iria atrelar os meus, quando cruzamos pelo corredor. Notei que estava aflita e perguntei:
- O que houve?
- Pneu furado... - ela subia para pedir ajuda.
Montei meus alforjes, instalei minha bolsa de guidão, amarrei o mala-bike, posicionei as águas e fui lá desmontar o pneu traseiro dela, mas antes era necessário desatrelar a tudo. Quando ela chegou de volta, eu já estava com a câmara de ar do lado de fora, e logo ela me deu a câmara reserva. Segurei num lado, ela no outro, e os dois se ensinaram como se troca um pneu. Ela estava feliz com o aprendizado, e juro, pela expressão que eu via, parecia que agora ela iria adorar quando um pneu furasse...
Foi preciso a pia da área de serviço do hotel, para descobrirmos o furo debaixo d'água, de tão pequeno que era. Tudo reparado, tudo montado, partimos...
Passamos num posto e entupimos os pneus com quase a pressão máxima, pois hoje seria dia de somente asfalto. No início não foi difícil, mas doeu vencer, ainda frios, a ladeira que nos conduziria até a Matriz de Guaratinguetá, para zerarmos nossos hodômetros.
Rumamos em direção da SP-171, a rodovia Paulo Virginio, herói e mártir, filho de Cunha, fuzilado pela ditadura, na Revolução de 1932, por não entregar a posição das tropas de São Paulo. Passamos por baixo da Dutra e seguimos avante, terreno em aclive suave até os 12,7 km, quando a coisa ficou séria e começamos a bufar. Achei engraçado quando Suzana informou que só conversaríamos novamente lá em cima, mas ela estava com a razão, porque se subir mudo já estava difícil, conversando ninguém conseguiria.
Foi uma bela e rara subida para mim, que só coloquei os pés no chão quando parava para limpar o suor dos olhos e beber água, claro também, pondo a respiração em dia. Impressionante como cinco minutos de uma parada, restabelecem qualquer ânimo e físico, dando-nos pernas novas. Agora diante do computador, verifico que nesse dia minha pulsação máxima atingiu apenas 150 bpm, ficando a média em 123 bpm, quando no primeiro dia, a máxima ultrapassou os 170. Assim, não importa o quanto você já pedalou e o quanto você está cansado. Importa que o condicionamento melhora a cada dia, nessa nossa máquina perfeita e divina, que interage de mil maneiras com o que está à volta, claro, comandado pela energia que a alma impõe ao físico e às químicas que se desenrolam.
Quase 10 horas de uma manhã bem ensolarada, enfim chegávamos no topo da serra. Faltavam cerca de 26 km ainda até chegarmos a Cunha, mas antes, aproveitaríamos a ladeira, numa rodovia que se transformou do vinho para a água, porque perdeu o acostamento e nos apresentou muitos buracos a serem desviados.
Havíamos vencido a Serra do Quebra Cangalha, mas a real quebradeira estava reservada para o dia seguinte.
Aos 22 km, paramos no Santuário de Santo Expedito, onde aproveitei e agradeci ter chegado até ali com muita saúde. Fiz um pedido também, porque Santo Expedito é o Santo das causas difíceis.
Paramos ainda na marca dos 25 km, para vermos uma cachoeira bem raquítica e simplória. Fazia tempo que não chovia. Tínhamos ainda mais 100 metros de aclive, quando Fernando nos encontrou. Paramos os três num bar, nos abastecemos de água e fomos embora. Cunha estava mais próxima...
Aos 45 km, passávamos sob o portal da cidade, entrando na alameda Francisco da C. Menezes, subindo.
Era quase meio dia e vinte, quando entramos na pousada que considerei, depois da Beco do Bispo em São João del Rei, como a segunda melhor pousada em que passamos. Tratava-se da Pousada e Restaurante Clima da Serra, onde cada um ficou em um chalézinho, com varandinha na frente para se armar uma rede, e pequena lareira no interior. O atendimento também foi primoroso, o almoço divino, com truta e salmão, acompanhados de belas e saborosas saladas.
Suzana queria bater pernas pela cidade e resolvi acompanhá-la, afinal havíamos ficado antes do centro da cidade, onde ficava a Igreja da Imaculada Conceição, a Matriz de Cunha, de onde sairíamos no dia seguinte logo cedo. E ela ficava lá em cima, 60 metros mais especificamente.
Quando lá chegamos depois que andamos quase 1,5 km, meu salmão já não mais existia. Não fazia mal; compraria pão de queijo. Identificamos a rua e calçadão Comendador João Vaz, e verifiquei as montanhas mais adiante. Iniciaríamos logo pela pauleira...
Num Mirante próximo da igreja, num tabuado que se prolongava, descobrimos uma Cunha que subia e descia com vontade. Entramos num Café charmoso e pedimos um expresso cada um. De lá descemos por uma calçada, que tinha GUARDA-CORPO. Eu nunca havia visto nada igual, e me lembrei das plataformas por onde andei, quando o mar ficava lá embaixo a 70 metros, lisinho parecendo lagoa.
Compramos pão de queijo e fomos embora, descendo por outras ladeiras não menos iguais.
De noite pedi uma bela truta com salada e fritas, ajudada por um bom vinho, claro que seco, chileno.
Fui dormir, pois quem dorme cedo, também madruga. Minha esmeralda continuava enrolada na camisa, e naquele dia o gavião não apareceu. Fui fechar a porta e pareceu-me ver dois grandes olhos. Pensei na coruja mas estava tudo escuro... Apaguei as luzes e dormi.
* * *
Cunha - Paraty
Acordei mais cedo que de costume, porque alguém batera em minha janela. Abri a porta que dava para a varanda e não vi ninguém. O Sol já anunciava que logo nasceria, por trás das montanhas alaranjado, quebrando o lusco-fusco das manhãs. Já estava me virando para novamente entrar, quando vi aquele vulto a passar voando. Fui para a calçada e vi um par de asas que em parafuso se elevava em potência desenfreada, até tornar-se num ponto disforme muito longe.
Abaixei a cabeça e entrei soturno. Fechei a porta atrás de mim e sentei na cama. Na outra cama, aquela camisa empoeirada parecia me chamar.
Desde que recolhera a gema, que nela não mexia. Com os solavancos da estrada, todos os grãos de argila haviam se desprendido para o tecido branco, tornando tudo avermelhado.
Era estranho! Eu estava rico, mas não feliz... Levantei e me encaminhei até a pedra. Lentamente comecei a desembrulhá-la, pois não queria sujar a cama com a poeira, e foi essa calma que me salvou, pois havia o ferrão agressivo e traiçoeiro do escorpião a me aguardar.
Se eu estivesse com um pouco mais de pressa, meu dedo teria sido espetado. Recolhi a mão e dei um passo atrás. Era um espécime bonito, digno de nota, marrom-dourado, pinças voltadas para a frente, cauda pronta para um novo ataque. Peguei a toalha de banho e a lancei, a luz do quarto piscou, mas dali ele não poderia sair. Dei-lhe então uma chinelada e ele aquietou-se, voltando a luz ao normal. O ferrão dele estava atravessado no grosso tecido felpudo.
Com os dedos em pinça, agarrei o ferrão por trás. Não havia mais nada que ele pudesse fazer. Vi a taça de vinho quase cheia, sobra da noite anterior, e o enfiei dentro dela, até que seus movimentos cessassem. Larguei-o no chão e o esmaguei com o duro tênis, e fiquei pensativo de como ele teria ido parar ali, pois não haviam entradas em que cada camada do tecido não tamponasse. Com cuidado verifiquei cada item de minha bagagem, não encontrando nada.
Tomei meu banho e me arrumei, atei os alforjes na bicicleta, ajustei a bolsa do guidão e saí, porque o café da manhã era lá em cima no restaurante, e de lá eu já cairia na estrada. Verifiquei se não havia esquecido nada no quarto e saí trancando a porta. Quando ia pegar a bicicleta, notei a coruja no cimo de uma grande estaca. A encarei com disposição por alguns minutos e ela então foi embora, voando lenta e muito calma.
Tomei meu café e já estava pronto. Saímos em direção à Matriz e minha bicicleta parecia mais pesada que de costume. A primeira ladeira se apresentou e tentei subi-la, apeando antes de sua metade, empurrando até onde achei que já dava para pedalar novamente. Montei e lentamente alcancei Suzana, que já chegava na porta principal da Matriz. Zeramos os hodômetros e partimos numa descida bem suave, ela apontando as marcas onde pegarmos, até que começamos a novamente subir forte. Desta vez descemos eu e ela e empurramos, até chegarmos no trevo em que pegaríamos à esquerda na rodovia SP-171. Uma leve garoa ameaçava se transformar em chuva, pois o céu estava carregado. Guardei meu canhão de cliques na bolsa do guidão, enxuguei o suor que se juntava ao doce da pouca água que caía.
A pequena chuva deu uma trégua, mas tivemos que novamente apear, pois a subida estava íngreme demais. Quando voltamos a pedalar, novamente a chuva começou, a princípio fraca e depois foi engrossando. Eu precisava colocar a capa da bolsa do guidão, então parei e pedi que Suzana segurasse minha bicicleta. Achei a capa e a instalei, e novamente partimos, iniciando uma breve descida que passava ao largo da Igreja de São José da Boa Vista, quando voltamos a subir e em seguida descer praticamente tudo o que havíamos vencido.
Agora a chuva apertava, e eu, sem agasalho, começava a sentir frio, mas sabia que logo tornaria a subir, esquentando e suando outra vez. Ela nos acompanhou por um bom tempo, mas deu trégua, parando de molhar. Antes do Monumento ao Paulo Virginio, o agricultor que fora obrigado a cavar a própria sepultura, e fuzilado por não mostrar a posição das tropas paulistas, Fernando nos alcançou e pedalamos juntos por um bom tempo. Paramos no Monumento e o joelho do Fernando sangrava, pois ele havia escorregado logo na primeira subida lá em Cunha, não tendo tempo de desclipar.
Era o último dia, mas eu estava alegre, pois a subida estava indo bem. Nesse dia teríamos que subir até o topo, lá onde era a divisa de São Paulo com o Rio de Janeiro, quase que apenas numa subida só, 650 metros a praticar muita paciência, onde um pé empurrava um pedal e logo em seguida, o outro fazia o mesmo, num revezamento das pernas, meio a meio, enquanto a corrente ia gemendo, estalando e reclamando, mesmo tendo elos demais como amigos, porque não importa quantos amigos você tenha, no final apenas prevalece a força de vontade, aliada à verdade e ao garbo.
Só uma coisa entristecia: sonhávamos com o paraíso Paraty, mas aquele tempo chuvoso e friorento nos informava o contrário. Seja como for, estávamos pedalando pelos céus, onde as nuvens vinham nos abraçar, em novelos suaves que turbilhonavam devagar, escondendo fosse qual fosse o horizonte.
Na marca dos 20,3 km, Olinto novamente deveria estar brincando com aquela história de que a cachoeira valia um banho, que com o frio que fazia, nem com todas as pingas das Minas Gerais...
Faltavam menos de 3 km para abandonarmos São Paulo, e mesmo assim a subida não amainava. Quando cheguei, encontrei Fernando, Gilton e Suzana, que festejaram minha chegada. Era beber água e novamente partir, porque agora despencaríamos 1.516 metros, na descida mais emocionante da minha vida de bicicleta, o que vocês puderem imaginar de obstáculos a nos quererem morder, agarrar, derrubar, arrebentar, deslizar, até desmontar a bicicleta com os tantos baques que nos trepidaram, onde quase caí uma vez, e tive medo em outras duas.
Ainda muito alto, uma pancada forte me fez parar para verificar os alforjes. Algo me fez buscar a gema e em pouco tempo, a trazia em minha mão. Estava numa espécie de janela, onde a mata de vez em quando se abria em falha, para nos dar uma visão, mas não enxergávamos nada, a não ser as nuvens que queriam nos envolver. De repente notei que estava à beira de um precipício e não vi que o Fernando se aproximava, também a tentar ver alguma coisa. Festejando, deu-me um tapinha nas costas em parabéns, porque enfim havíamos chegado, depois de tanta luta.
Foi o suficiente para que me assustasse largando a grande gema, que rolou em lentidão bem diante de meus olhos, bateu em cima do meu pé e saiu rolando para o abismo, lançando-me seus últimos sorrisos que piscavam ligeiro.
Desolado ali me encontrava, enquanto podia ouvir o barulho das folhas e galhos amortecendo a queda de tamanha jóia, até que o silêncio se fez ouvir.
Minha conhecida coruja pousou num galho ao meu lado e falou:
- Foi melhor assim, pois dessa vida não se leva nada...
Lançou-me um último sorriso e voou mergulhando no precipício. De onde estava a via fuçando algo na encosta, até que pareceu encontrar o que buscava. Alçou vôo novamente e subiu bem alto, mergulhando em seguida tirando uma rasante sobre mim, batendo as asas em despedida. Em sua garra estava o verde mais puro e brilhante de toda a Terra.
De repente fiquei mais leve, pulmões mais cheios, e acordei com Suzana e Fernando me chamando:
- Boblitz, vamos!? Ainda falta muita descida pela frente...
Suzana já tremia com o frio... Fernando me olhava sem bem entender o que havia acontecido. Lancei-lhes um sorriso e fomos os três sacolejando por entre as pedras e buracos do caminho, ultrapassando todos os carros que nos haviam ultrapassado na subida. O último deles era um jipão amarelo que puxava um pequeno reboque com três motos amarradas, quando lhes gritei solicitando que nos deixassem passar. Cinqüenta metros adiante começava o asfalto, e dessa vez eram eles gritando conosco para que os deixássemos passar. Lá embaixo os encontramos parados, e festejaram a nossa passagem.
Cruzamos o bairro do Pantanal, atravessamos a rodovia BR-101, e aos 44,6 km, deixávamos para trás, o último marco da Estrada Real. Suzana soltou um Hurra, comemorando, e mais apertou nos ciclos. Em pouco tempo, chegávamos às correntes de Paraty.
Terminava para nós, a magia da Estrada Real, porém o brilho, este durará para sempre. Não é de ouro, nem é de prata, mas sim de garra e ousadia, a superar as adversidades que foram muitas pelo caminho, quase que diárias, suplantadas pelo destemor e pela inteligência.
Vi o que parecia um gavião e lembrei da minha linda pedra verde, e meditei: na vida as coisas boas, num repente se acabam. Aquilo importante se extingue e vai embora, como a vida que num suspiro, um dia se despede...
Sobrou-nos apenas uma pepita rara, Suzana, que manteve o grupo unido, graças à sua liderança e valentia.
* * *
Paraty
Paraty estava de mau humor naquele final de semana, cinzenta e friorenta. Chegamos no sábado na hora do almoço, passamos o domingo escondidos sob os telhados, porque muitos dos passeios programados, simplesmente não teriam graça, como visitar cachoeiras ou algum mirante, pois que tudo era cinza, encoberto, molhado e frio. Restava andar pela cidade, conhecer suas travessas com seus telhados com beiras, acabamento fino às biqueiras que emprestavam nobreza às casas ricas.
As pedras irregulares nos lembravam os obstáculos do Caminho, tirando nossa concentração da linda paisagem. Deve-se ter cuidado ao andar pelas vielas de Paraty, porque você pode tropeçar, escorregar ou torcer o tornozelo.
Em Paraty tudo é caro, mas mais caro, na parte histórica, e mais caro ainda quando você fica bem defronte ao mar, proporcional à sofisticação. Minha máquina, uma Canon SX200 is, a quem chamo de canhão de cliques, é uma boa máquina, principalmente porque é compacta, servindo magnificamente ao que me interessa, cabendo formidável em meu bolso traseiro, sempre pronta a ser sacada para gastarmos munição, mas aquelas que eu via nas mãos de tanta gente a zanzar sem rumo, mais pareciam com as baterias do Couraçado Bismarck. Até tripés eu vi, e de repente me imaginei pedalando com tanta tralha na garupa.
Seria como nos casamentos desfeitos por incompatibilizações, porque eu teria que das duas, uma escolher: ou fotografar, ou pedalar.
Se você pedala e gosta de fotografias, leve sua arma sempre consigo, como no velho oeste, sempre pronta a ser sacada. Isso de levar na bolsa de guidão, dá preguiça de usar, porque você precisa puxar um zíper, e a demora às vezes faz perder a oportunidade. Na hora de guardar também é outra chateação, porque coisas lá dentro da bolsa, precisam ser afastadas. Na hora do gatilho, sempre sou um pistoleiro ágil. Depois também existe a literatura, pois enquadrar é levar em consideração o horizonte, a posição do objetivo, até alguma distração que você quer na foto. Assim, de nada vale um bom canhão, se você não souber atirar.
Na segunda-feira o Sol amanheceu sem nenhuma ressaca, bondoso a brilhar, a secar todas as umidades que, naquelas alturas já chegavam aos nossos ossos. Passamos a manhã inteira embalando as bicicletas nos mala-bikes, secando pneus, retirando o ar das suspensões, retirando rodas, protegendo catracas, câmbio, passadores, coroas, envolvendo a tudo com jornais e muita fita adesiva. Embaladas ficaram recostadas na parede do corredor, aguardando apenas a hora de serem transportadas a tiracolo.
Você chegando em Paraty, procure a Pousada Solar do Algarve, onde fomos bem recepcionados e tratados por Dona Lu. O café da manhã também é muito bom, farto com frios e frutas, além daquele café forte e amargo. A limpeza é primada e os travesseiros são cheirosos.
Sempre costumo referir-me aos travesseiros, porque são os itens primordiais de uma boa noite de sono. Não adianta você colocar uma toalha ou roupa qualquer sobre eles, porque se forem antigos e sem higiene, guardarão aquele mau cheiro de tantos cangotes suados de gente que não costuma tomar banho. Quando fui percorrer a pé, o Caminho de Santiago, mandei fazer uma pequena fronha com três botões na extremidade. A fronha tem a metade do tamanho de qualquer fronha convencional, e os botões, um no centro e dois para fora, não deixam que a minha roupa escapula do interior. Uma fronha é apenas um pouco de pano a formar um saco, e dentro dela vou socando tudo o que posso, como bermudas, camisas e meias, e meu travesseiro já está pronto, claro, com tudo lavado.
Na hora de guardar no alforje, é só enfiar do jeito que está e estamos resolvidos. Agora você só cheira cangote alheio fedorento, se quiser.
Dona Lu providenciou nossas passagens, minha e do Gilton, na escuna Banzay, que sempre sai do cais às 11 horas. O passeio é muito bonito e até histórico, nas suaves águas da baía, quando vamos visitando algumas ilhas, onde você pode chegar a nado, ou no bote da própria escuna. Fazem sempre 4 paradas e o passeio costuma demorar umas 5 horas. Você gastará a depender do que você coma e beba. Gastei cerca de R$ 70,00 ao todo, sendo R$ 30,00 para a escuna, R$ 5,00 como cachê da moça que tocava e cantava, bem como prestava as informações históricas do lugar onde estávamos, e o restante no almoço e algumas latinhas de cerveja.
As escunas são enormes, com dois andares, e todos os coletes salva-vidas ficam à mostra. Vale muito à pena, tal passeio, porque o mar é lindo, esverdeado ou azul anil, e as ilhas, todas particulares, também não ficam para trás.
Faltava agora tomarmos um banho e arrumarmos nossa tralha nos alforjes, porque mais um pouco o atencioso Rudai passaria para nos transportar até o aeroporto do Galeão. São 4 horas de viagem de Paraty até o Rio de Janeiro. Assim, é bom levar em conta todos os tempos, para que você não perca nenhum horário de nenhum transporte.
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Alguns comentários
Se você é cicloturista e se preocupa com o peso da bicicleta, com o peso da bagagem, está na hora de arrumar outra coisa para fazer. Perdi exatos 3 quilos dos meus 101, a carregar pelo menos uns 135 quilos (eu, os alforjes, a bolsa de guidão, a água, a bicicleta e mais algumas coisas). Nesse contexto, o que valem 5 quilos a mais ou a menos? Não dá para pedalar? Ok, desça e empurre, porque isso também faz parte.
Em cicloturismo não participamos de competições, de comprovações, nem de constatações - simplesmente aproveitamos da melhor maneira possível, assim como fazemos com tudo aquilo que a gente gosta. A diferença é como mastigar ou engolir, onde a comida desce dos dois modos, mas só mastigando é que sentimos os sabores, as ervas e os molhos...
Mais uma vez os alforjes, a bolsa de guidão, e o mala-bike da Arara Una, foram de um comportamento exemplar, não me deixando na mão em nenhuma ocasião, porque são fortes e resistentes, e bonitos também. Na hora de instalá-los ou retirá-los, tudo é prático e funcional, onde nada sobra e nada fica faltando.
Pedalar pela Natureza é uma coisa espetacular e não tem idade, porque quem faz a idade é você. É você quem estabelece as limitações, muitas vezes superestimadas. Pedalar é montar num selim e sair empurrando um pé e depois o outro em cada pedal. Assim, procure sempre um bom equipamento, não necessariamente aquele mais leve, porque você não estará participando de nenhuma competição. Escolha um bom roteiro adequado às suas condições físicas, porque às condições financeiras, todos os passeios de cicloturismo são adequados, a não ser aqueles em que você contrata para poder pedalar, e saia desfrutando daquilo que você nem imagina que pode fazer.
Existe um ouro sim, e cabe a você descobri-lo em cada página do Guia de Cicloturismo da Estrada Real - Caminho Velho, do Antonio Olinto e Rafaela Asprino, que um dia garimparam todas as informações que você Cicloturista precisa. Os marcos da Estrada Real estão por lá, e às vezes coincidem com o Guia, que foi traçado por Cicloturistas, que raciocinam como Cicloturistas, dedicado aos Cicloturistas. Os marcos, muitas vezes são políticos, e bicicleta não combina com a política.
O ouro existe, e chama-se Olinto e Rafaela. Seguindo-os, todos vocês tornar-se-ão muito ricos.
A propósito: não tenham medo da coruja e nem do gavião; hoje, eles são meus amigos...
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Paulo, espetacular a SUA Estrada Real. Seus sentimentos e emoções fizeram-me viajar por ela também, eu, que lá estive e não consegui retratá-la desta maneira poética. Parabéns e que a gente possa seguir pedalando pelas estradas da vida, sempre.
ResponderExcluirCom carinho...
Marlene