O que é o Caminho, se temos a Fé?
O que são as dores, se temos a perseverança?
O que são os desencontros, se temos a Natureza?
O Caminho da Fé
(Paulo R. Boblitz - ago/2010)
O chamado: 28 de janeiro de 2010, às 10 da noite, aparecia em minha bandeja o convite do amigo Omar; recebera um convite do Paulo Ribeiro, de Recife, e agora me chamava para percorrermos o Caminho da Fé, saindo de Cravinhos ou São Carlos, em São Paulo, pedalando por cima da serra da Mantiqueira, em Minas Gerais, findando na Basílica de Nossa Senhora Aparecida, novamente em São Paulo.
Deixei para examinar no dia seguinte, pois já estava envolvido em carregar minhas fotos no orkut, tarefa simples e complicada ao mesmo tempo, pois ficamos sempre a depender das simpatias do sistema.
De manhã, enquanto tomava meu banho que sempre leva para o ralo os meus problemas do dia anterior, já ia pensando no assunto, lembrando do Caminho de Santiago de Compostela que também um dia havia começado assim, por um convite...
Lembrava mais do Caminho de Santiago, para mim, 800 km a pé, do que pensava nesse da Fé, talvez uns 120, visualizando um mapa em minha mente, onde São Paulo e Minas se misturavam.
Ligando o computador, fui pesquisar aquela rota e fiquei contente, a coceira adormecida voltava novamente a coçar, montanhas eu teria que atravessar, cerca de 500 km a percorrer, numa paisagem tão bela quanto a européia...
Olhei para a esposa que tirava todas as minhas camisas amarrotadas dos cabides, já guardadas no guarda-roupa, por mim lavadas, no tempo em que ela ficou fora visitando a mãe doente, e relutei se contava ali naquela hora ou deixava para contar num gostoso jantar. Resolvi contar num jantar só nosso, e a convidei...
- Mas a caminhonete está cheia de ferros..! - lembrou-me ela.
Concordei lembrando também, e até avisei que ainda ficaria mais cheia, pois faltavam os arames e o cimento... Resolvemos deixar para uma outra noite mais amena; ainda faltavam muitos meses; havia tempo... Dei-lhe um beijo e fui embora...
No trabalho, liguei para o Omar, para o João de Deus e para o Fernando; deixei-os todos com minha certeza; podiam contar comigo... Gilton apareceria mais tarde, de última hora, ocupando a vaga do Fernando, que não pôde ir.
O porquê: pessoalmente não sei responder, e acho que os outros três também não. Não se trata de Fé, posso afirmar, mas tão somente pelo prazer de sentir a terra nos pés, o vento a passar, os pássaros cantando, a vista a perder de vista, coisas que mais reforçam nossa Fé, isso posso garantir...
A viagem: tomamos o avião de madrugada, vôo direto até Guarulhos em São Paulo, onde tomamos a Van do Nailton que nos transportou até Tambaú, onde chegamos por volta das 11 e meia. Fomos direto para a bicicletaria do Edu, onde montamos nossas bicicletas e trocamos nossas roupas. Nailton levou nossos mala-bikes com ele, pois somente necessitaríamos deles, quando terminássemos nossa aventura lá em Aparecida. Precisávamos pedalar até Casa Branca, dali cerca de 31km, e estávamos acesos desde 1 da madrugada.
O Caminho: iniciamos nosso Caminho por volta das três da tarde, e já pelo meio, encontrei pegadas que só significavam uma coisa: Peregrino adiante...
Mais à frente o descobrimos, sentado à sombra, olhar de Peregrino, que vê sempre ao longe, no horizonte, o que falta e o que foi feito, ar cansado, ar animado principalmente pelas belezas conquistadas pelas próprias pegadas, visíveis apenas aos que observam os redores.
Nos despedimos e seguimos, mais tarde chegando em Casa Branca onde nos alojamos no Hotel Alfonsos, pois haveria uma quermesse na igreja Nossa Sra. do Desterro, bastante barulho para quem estava há muito tempo sem dormir. Sem chuvas, o caminho havia sido de muito pó, argila em forma de talco, a cada veículo que passava...
Saímos para jantar, Pizzaria Mamma Mia, que nos serviu um espaguete maravilhoso sob a simpatia do Seu Geraldo, quase 82 anos a brincar com meus cabelos brancos. Ali sofri a primeira e única cãibra do Caminho, uma contração infernal na musculatura traseira da coxa esquerda, que me fez assustar os clientes à volta quando bruscamente arrastei a cadeira para trás, para combatê-la.
Dia seguinte, nossa meta era alcançar Poços de Caldas, que não está na rota do Caminho da Fé, mas muito próxima para ser desprezada. A puxada seria dura, muito dura para o nosso segundo dia. Paramos na Pousada de Dona Cidinha, próxima 15 km de São Roque da Fartura, onde pegaríamos nosso desvio para Poços de Caldas. Já eram 2 da tarde e a recepção carinhosa nos arrefeceu as coragens. Ali almoçamos por volta das 3 e resolvemos pernoitar, debaixo de um frio danado, que no dia seguinte descobrimos ter geado. Ali também extasiei com o pôr do Sol, também cansado por alumiar o dia, a deitar-se esplêndido por trás das montanhas de Deus, esfumaçadas embaçadas pela transpiração da terra, que se unindo à treva, orvalha em prantos sobre tudo.
Mais tarde chegavam o Paulo Ribeiro (aquele que nos fizera o convite) e o Eduardo, ambos de Recife; já quase noite, chegaram o Glauco e o Cézar, de Valinhos, São Paulo.
Acordamos na manhã gelada, nos arrumamos e tomamos nossa primeira refeição do dia, numa gostosa cozinha aquecida pelo fogão de lenha. Partimos e descobrimos que nossos Anjos da Guarda foram hábeis nos fazendo permanecer, pois as ladeiras que enfrentamos, dificilmente conseguiríamos enfrentar no dia anterior; estavam ardidas, de tão apimentadas... Por volta do meio dia, encontramos o Wanderley almoçando em São Roque da Fartura, na pousada em que paramos para carimbar nossas credenciais. Ali também nos separamos de todos, pois derivaríamos do Caminho para poder chegar em Poços de Caldas, uma interminável subida que desembocou numa formidável e alucinante descida, onde um caminhão me acompanhou até embaixo; alcancei 72,9 km por hora e quando lá embaixo freei, ele parou ao meu lado, pedalou com os braços e buzinou: "pam-pará-rá-pampam..!", sorriu e foi embora, deixando-me sorridente também - Poços de Caldas estava à minha esquerda...
Almoçamos num restaurante caro e acabamos não conhecendo a cidade; uma grande bobagem que fizemos...
Acordamos e partimos para nosso quarto dia de Caminho, Poços de Caldas - Andradas, uma grande ladeira asfaltada para baixo, onde alcancei meus 73 km por hora. Poderia ter alcançado mais, mas a prudência se faz necessária nos locais onde não conhecemos, principalmente quando disputamos espaço com veículos sempre apressados em chegar. Chegamos rápidos em Águas da Prata e enfrentamos dureza compensadora até chegarmos em Andradas, subidas e mais subidas até dar agonia...
Lá de cima, Andradas encravada num vale, ilhada por montanhas por todos os lados... Foi uma descida radical e perigosa em meio às tantas pedras soltas, algumas grandes, que nos tiravam os equilíbrios e os tinos. Meus freios chiaram, rangeram, reclamaram, e todas as vezes em que necessitei parar, gastei um bom trecho de chão; descer também cansa...
Eu estava radiante, pois havia sido mais um dia de vitória; ouvira macacos berrando no interior da mata, produzindo ecos nas tantas rochas expostas. Os pássaros também são uma fortuna para quem quer escutá-los, variados nas linguagens, nos encantam com suas músicas naturais, sempre escondidos, quem sabe nos alimentando no esforço..?
No hotel verifico que estou muito queimado, lábios rachados, pontas dos dedos doloridas, alforjes imundos...; descubro também que estou farto de roncos, lideranças, falta de privacidade - vim fazer o meu Caminho, e não uma trilha... - tomo minha decisão...
No meu quinto dia, de Andradas a Ouro Fino, troco minhas sapatilhas pelos tênis - deixo de ser ciclista para ser Peregrino de bicicleta; sinto saudades da esposa, dos filhos, do meu lar - passo a andar mais feliz, num dia que a cada dia fica mais difícil...
Dali em diante não seguiria mais nenhum roteiro, nenhuma meta... Sentei à sombra e comecei a escrever, apenas minha bicicleta de lado, silenciosa aguardando a hora de eu montá-la novamente; dali em diante eu pararia onde me desse na telha, pernoitaria onde eu resolvesse, não importa se o Gilton ficasse me aguardando preocupado numa sombra qualquer.
Andei muito pelo Caminho da Fé; pedalei muito também. Andar faz parte, e toda vez que andava, lembrava do Caminho de Santiago...
Quando voltei de Santiago de Compostela, prestei atenção naqueles trabalhadores que passam o dia inteiro empurrando um carrinho com uma carga qualquer; descobri que meus 800 km não eram nada, diante das caminhadas diárias que eles se obrigam a fazer para ganhar a vida, que é difícil de ser ganhada.
Hoje trilhando pelo Caminho da Fé, muito mais difícil que o Caminho de Santiago, me dou conta que estive pensando errado esse tempo todo, pois saímos detrás de uma mesa e nos empenhamos numa única determinação, vencendo dores, tensões, cãibras, sede, queimaduras, assaduras, insatisfações e tantas coisas mais. Saímos do nosso conforto para enfrentar a poeira, o frio, a chuva, o sol, os albergues... É certo que a Natureza em volta, essa que nos cobra tanto, também nos proporciona momentos ímpares, dos quais guardamos na memória por muito tempo.
Empurrar uma bicicleta ladeira acima é mais desgastante do que carregar uma mochila às costas; homem e bici brigam pela harmonia, resultando num andar torto, numa postura que certamente cobrará lesões mais tarde.
Fizemos o Caminho, eu e mais três amigos, mas já no terceiro dia, descobri que precisava fazer alguma coisa - fazer o meu Caminho, e não o Caminho deles.
Qualquer atividade envolve lideranças, adrenalinas, praticidades, interesses, prioridades, calmas, pressas e tantas outras coisas...
Enquanto vou escrevendo, noto um passarinho nervoso na galhada sobre mim; ele pula de um galho para outro, talvez pensando que eu queira o ninho dele. Me apresso e vou embora, deixá-lo tranqüilo...
Não importa o nome do Caminho, mas sim a viagem que cada um se empenha, Natureza a cantar, a vibrar, vento a cortar e sussurrar, chão duro a percorrer, nessa Terra tão grande e pequenina...
O simples parar nos apresenta muitos sons; escutamos ao longe e muito perto, a folha seca a cair, a vespa a nos incomodar atrás de sal, o som da caneta a arranhar o papel, nosso coração a pulsar menor, o vento a nos apresentar os vários cheiros da mata, a abelha a nos verificar a cor...
Paro de escrever para atender ao Seu Francisco, que vem a mando do Gilton para ver se estou bem. Confirmo que sim e conversamos um pouco, afinal ele traz alforjes também; mais na frente, descubro o Gilton à sombra, parado há mais de uma hora me aguardando - conversamos e dali em diante ele não me aguardará mais.
No caminho, deparo com uma vaca prenha que havia ficado atolada; lembrei de Pombinho, meu cavalo com quem tentamos a mesma fórmula mas não conseguimos; no jirau, ela já dava sinais de reação, queria andar, se mexer, continuar a vida. Gratifiquei os 3 Colonos com otimismo, dei-lhes a certeza de que ela viveria e fui embora. Eles me lançaram agradecimentos e sorrisos, desejando-me um bom Caminho e que Deus me conduzisse...
E segui pensando em Deus, que Dá e que Tira, ou simplesmente Deixa acontecer, para que cresçamos... Lá em cima deparei com uma vista maravilhosa e parei...
Os desafios se apresentam e se renovam a cada crista de montanha, onde você vê o vale tranqüilo lá embaixo, e a nova crista mais adiante, a ser vencida...
Por instantes pareço gigante a andar em passadas sobre os picos, longe das outras formigas que não param de correr no ir e vir de todos os dias. Deus é grande e me quer no lugar onde estou, afinal, quem não gosta que de sua Obra falem bem? Aponto o dedo e digo: é para lá que eu vou... Monto e pedalo com mais vigor, afinal, qual alma livre não pesa menos?
Cheguei em Tocos do Mogi (pronuncia-se Tócos com a tônica aberta), acho que próximo das 6 da tarde, perto do anoitecer, e me hospedei na Pousada do Peregrino; descobri depois que os três amigos ficaram na Pousada São Geraldo, algo em torno de 200 metros de distância. Dona Terezinha, sorridente, deu-me as boas-vindas avisando que a pousada era toda minha; eu era o único hóspede daquela noite, e fiquei de posse da chave que a tudo abria. Gentilmente me mostrou o melhor quarto, forneceu-me água fresca e me desejou uma boa-noite, pois que idosa, dormia cedo.
Estava já bem frio quando terminei meu banho; olhei no espelho e meus lábios estavam mais rachados ainda, limpei o nariz e sangue saiu, como há dias vinha saindo por conta do clima seco. A ponta do nariz estava ferida, a barba por fazer me dava o ar do descuido, mas quem se importava?, afinal a idade da beleza há muito passou; agora, a beleza que busco é a de dentro, que nenhum espelho devolve...
Lavei minha roupa e saí, descobrindo a Pastelaria do Zé Bastião, que faz pastéis com farinha de milho e polvilho azedo - comi 8, de queijo.
Havia esquecido de colocar o GPS para carregar, por isso o dia de hoje, dia 6, passou em branco; serei obrigado a traçar a minha rota no Google Earth, calculando distância e altimetria. Tomei um conhaque e fui dormir, pois dia seguinte as subidas prometiam mais que as de hoje...
Acordo renovado e descubro a voz do Wanderley tentando carimbar o passaporte dele. Saio a tempo de começar o dia andando com ele, Tenente do Exército brasileiro; tomamos café numa padaria e seguimos - na primeira ladeira ele me supera, pois a bicicleta atrapalha. Depois o alcanço e vou embora - só nos encontraríamos novamente em Campos do Jordão, onde perdemos um dia completo para descanso e conhecer a cidade.
Enquanto sigo meu Caminho, deparo com uma imagem singular: "Tortuosas", como chamo o momento de encanto, como a própria vida é. A velhice limita mas não incapacita; depende do querer, a primeira coisa a se fazer, e o resto se arranja...
Não estou no topo do mundo, mas ele deve se parecer bastante com todos esse topos que passei; quanto mais pedalo, mais montanhas aparecem para que eu ande, encoste os pés no chão e me lembre do quanto pequeninos somos...
Estou perto agora de Consolação, acho que a uns 5 km, quando paro para conversar com 2 Colonos que consertam uma porteira; um deles me pergunta se estou cansado e eu respondo que sim, afinal as ladeiras foram muitas...
- Para subir, Deus ajuda...; para descer, Deus nos acuda! - gargalhando respondeu ele na sabedoria peculiar do Campo.
E ele estava certo, pois nas primeiras horas a caminho de Paraisópolis, começaram a fisgar, virilha direita e joelho esquerdo. Pensei nos meus amores e logo delas duas esqueci, mas segui pelo caminho errado, dando no asfalto a 7 km de Paraisópolis. Não vendo as setas, parei e perguntei...
- Todos os caminhos, quando queremos, nos levam ao destino certo... Pode ir em frente, sem cuidado... - respondeu-me o bom homem.
Depois que parti de Paraisópolis, com o sol bem quente, me senti meio tonto e necessitado para ir ao banheiro; antes que me sentasse à beira do Caminho, uma placa acolhedora me mostrou a apenas 500 metros, a Pousada Casa da Fazenda, um casarão que me recebeu de braços abertos, onde fiquei a conversar por mais de meia hora com o Edison Ferreira, proprietário, que ainda me forneceu água boa, pois a minha havia acabado.
Partindo, encontrei três moças e um rapaz descansando todos à sombra. Parei e descobri que estavam em reconhecimento do terreno para uma prova chamada "Desafio"; desejei-lhes boa sorte e continuei, pois prova maior não é vencer, mas sim chegar ao fim...
Chegar ao fim..., aconteceu quando eu chegava em Luminosa, parado a bater uma fotografia da cidade lá embaixo, quando escutei uma bicicleta frear perto de mim. Heder, um tanto desconcertado por me ver de alforjes, perguntava para que lado ficava São Bento. Olhei para ele e vi um olhar vago, confuso, muito sal cristalizado na fronte, nenhuma bagagem, nenhum bagageiro.
Perguntei-lhe se fazia o Caminho da Fé e diante de sua negativa, disse-lhe que ele estava perdido. Ele olhou para mim como se não acreditando, olhou minha bagagem e pensou em voz alta:
- Não estou perdido...; estou muito perdido..! - enquanto sacava um mapa do rali, que nada tinha a ver com o local onde estávamos.
Aconselhei-o a descer até Luminosa, pois da região como eram, poderiam orientá-lo melhor. Como a encorajá-lo, parti na frente numa descida rápida e gostosa onde alcancei os 57 km em meio aos buracos e pedras soltas. Devagar fui encostando para deixá-lo passar, pois quem tinha pressa era ele, e naquele ritmo, eu perderia muitas fotos. Mais adiante, próximo da cidade, encontrei algumas meninas, todas de Aguaí, peregrinando alegres, e aproveitamos para bater algumas fotos.
Na Pousada Nossa Sra. das Candeias, encontrei o Heder tomando 1 litro de coca-cola, já bem informado do rumo que teria que tomar para seguir a própria prova; aceitei 1 copo e brindamos a sorte.
Resolvi ficar por ali mesmo, aos cuidados de Dona Ditinha, Benedita de nascimento, nome igual ao do pai que no dia seguinte eu encontraria montado num burro a descer a serra, acompanhado pelo bom amigo pastor alemão preto, de pouca conversa...
Novamente fiquei com a pousada só para mim, pois todos haviam subido 4 km acima, para ganhar tempo, ganhar terreno, onde tempo não se ganha e nem se perde - apenas é utilizado...
Jantei na cozinha da Dona Ditinha, acompanhado pela Sandra, uma das peregrinas que havia encontrado antes, por não ter visto condições adequadas na pousada de cima, onde todos ficaram apinhados em condições por ela relatadas, pouco satisfatórias. A pousada que antes era só para mim, bem..., fiquei com um andar só para mim, e o outro só para ela.
Dona Ditinha até começou a citar as 5 razões para se fazer o Caminho da Fé, mas algo a impediu de citar os outros, parando no segundo item. Em Campos do Jordão, encontrando o Paulo Ribeiro e o Eduardo, ambos de Recife, este último confessou que chegou a pensar na desistência e, não fosse Dona Ditinha, ele teria concretizado o pensamento. Contou-me que havia chorado, emocionado diante das palavras de incentivo da sábia Senhora, que enumerando os 5 propósitos, junto com outras palavras de coragem, o fizeram desistir da desistência.
Sorridente, em meio de uns goles de Baden-Baden, uma cerveja local e muito saborosa, escreveu os 5 sentidos de Dona Ditinha, que é magistral também na comida, mantendo sempre uma humildade gentil e simpática que nos faz refletir - pessoas com que Deus pontilha Sua Criação...
22 de agosto, acordo bem cedo para minha penúltima etapa, Luminosa - Campos do Jordão, mas Dona Ditinha ainda está dormindo. Não faz mal, vou até o varal e pego todas as minhas roupas, geladas pela noite fria. Começo a arrumar meus alforjes, tomo um banho e já estou pronto. Dona Ditinha ainda está dormindo, pois a cozinha está deserta. Enveredo por um corredor e a começo a chamar; a voz do marido me anuncia que ela chegará logo, e mais um pouco, um saboroso café da manhã se faz para dentro sem a menor cerimônia.
Pago a conta, me despeço de todos e vou embora, pois Luminosa é um verdadeiro suplício para sairmos dela. A serra é empinada e comprida; por duas vezes fiquei alegre pensando que havia chegado ao topo...
Lá em cima, cruzo com as alegres peregrinas, que animadamente cantam um hino qualquer. Muito barulho para mim que as acompanho de perto, mas felizmente resolvem sentar para um lanche; aproveito e sigo, pois a subida ainda está longe de terminar.
Vencida a serra, inicio a descida pedregosa, deparando-me com cerca de 10 ou 15 garrotes estúpidos, plantados escondidos após a curva, bem no meio da estrada.
Fui para a lateral sem muita escolha, mãos em agonia apertando os freios, até que uma areia solta me prendeu e me estacou. Foi uma queda boba, quase parado, de lado rolando pelo dorso esquerdo, cabeça erguida. Não me machuquei, a não ser o próprio orgulho, mas isso também faz parte...
Levantei sacudindo a terra enquanto xingava os pobres bezerros, que debandaram mais assustados do que eu. Levantei a bici e a encostei num canto bom, à sombra, aproveitando também, já que havia parado, para escrever um pouco; vez ou outra lanço um olhar para ela e mais me inspiro...
Finalmente alcanço o topo e começo a descer, deparando com o asfalto que novamente subia, mas tudo afinal tem um limite, e minha tão aguardada descida finalmente começou, até que vi uma pousada e ali resolvi carimbar meu passaporte. Pensei: esse carimbo eles não terão, mas qual não foi a minha surpresa em encontrá-los já almoçando? Estavam há algumas horas à minha frente. Enquanto eu terminava de almoçar, eles seguiram novamente. Terminei e descansei um pouco, descobrindo que uma das peregrinas é poetisa, ganhando uma fita verde do Caminho e anotando seu endereço.
Logo eu partia ladeira abaixo, um conjunto de curvas fechadas onde numa delas meu Anjo me aprumou, quando passei deslizando freado reto para a contramão, aproximando-me perigosamente do precipício - um carro acabara de passar...
Dali em diante segui com mais cautela, chegando em Campista, pegando o barro novamente. Como havia descido, agora era necessário subir novamente, quando encontrei um grupo animado que descia, todos em suas montarias, retornando de uma cavalgada em homenagem à Nossa Sra. da Saúde - o grupo se intitulava "SARDADE", que depois fiquei imaginando que em mineirês, poderia significar "saudade", como também "solidariedade". Seja como for, a alegria me contagiou e segui em frente. Havia muito chão ainda até Campos do Jordão, e subindo...
Acompanhei as setas com cuidado e cheguei finalmente ao meu destino; Clara, uma Pastor Alemão totalmente branca, me deu as boas-vindas. Agora era só descanso. Lá, encontrei os três amigos já alojados. Saímos mais tarde para jantar, um fondue de queijo, carnes e de chocolate, onde queimei o lábio superior com o espeto pingando óleo fervente - acho que isso também faz parte...
Dia seguinte acordamos sem nenhum compromisso, partindo cheios de planos para conhecer Campos do Jordão, mas planos são planos e acabamos nos reencontrando com a dupla de Recife, Paulo e Eduardo, também de folga pela cidade; eles haviam concluído o Caminho no dia anterior. Tomamos muitos chopes da famosa Baden-Baden, e de lá resolvemos seguir para um restaurante alemão, tão encravado na Natureza, que os pássaros se chegam sem medo; lá comemos muitas lingüiças, porco e chucrute, tudo regado com boa cerveja e uma pinga mineira de vez em quando. Fartos, demos por encerrada nossa temporada turística, retornando ao albergue.
Acordamos para o nosso último dia e despencamos pela serra abaixo numa bela descida pelo asfalto. Foram 24 km sem pedalar, apenas sentindo o vento frio nos agulhando. Lá embaixo, quando resolvi pedalar, descobri que estava com dois nós na corrente. Novamente meu Anjo da Guarda me conduziu, evitando que eu levasse uma queda espetacular aos 50 km por hora, caso o sistema travasse e me catapultasse num tremendo Cavalo de Pau.
Chegamos à magnífica Basílica de Nossa Senhora Aparecida, uma construção grandiosa para abrigar milhares de romeiros que acorrem diariamente em busca de graças; passava algo das 12 horas... Demos entrada em nossos passaportes e mais um pouco recebíamos os parabéns e os nossos atestados de término do nosso Caminho, um papel encorpado que nos emociona, nos aperta a garganta e impede que nada desça ou suba por ela.
Mais uma vez a pressa me tolheu e não pude enfim rezar por quem queria, afinal, compromissos, metas, grupo... Nunca mais farei nada igual, acompanhado...
As estatísticas desse Caminho, são mais umas dentre tantas outras conhecidas. Pedalei e andei por cerca de 475 km em 10 dias. Subi 11.958 metros no acumulado, uma belíssima montanha se existisse; não sei o que esse esforço representaria no plano. Os trajetos, para quem busca informações detalhadas, estão relacionados em vários sítios e depoimentos. O que vale é o que você pretende sentir, se fazer um Caminho ou apenas uma trilha. Para quem quiser sentir todas as emoções, basta seguir, com muita calma, todas as setas amarelas; elas reproduzem toda a magia dos sentimentos, estes que regem nossas emoções, nossos compartilhamentos com os próximos, com os seres que vamos encontrando pelo cada dia do Caminho.
Passar pelo comércio de São Paulo para comprar bugigangas eletrônicas, não deve reger o tempo do Caminho, que o liga à Terra, a Deus, aos próximos, à Natureza, tornando-o mais humano e gentil. Não faça do seu Caminho, mais um compromisso, ou fato trivial a constar de mais um passeio turístico, dos tantos que você possa ter realizado.
O Caminho é único, assim como você também representa uma unicidade. Assim, não se deixe distrair pela conversa do grupo, que sempre será mediana ou até menor, com barulhos desnecessários, conversas de pouca valia; desse jeito, mais vale fazê-lo de automóvel, de preferência no ar-condicionado, melhor ainda com vidros revestidos com películas que obscurecem o Sol...
O Caminho é e sempre será uma viagem para dentro de si próprio; quem não sabe o significado disso, melhor seria uma viagem à Disneylândia... Nele não existem competições, nem horários, nem compromissos, nem metas, nem planos... O que nele existe é o deixar-se levar, principalmente pelo destino, pelo novo a cada curva que possa afetá-lo, ou transformá-lo, ou apenas maravilhá-lo das belezas que você, muito rápido não consegue ver, que você, embrenhado no trabalho, acaba agindo como os bovinos que apenas pastam, não levantando as cabeças para a vida que passa o tempo inteiro sobre todos.
Se você vai fazer o Caminho de bicicleta, melhor seria fazê-lo a pé, pois nele não existem os campeões, os mais fortes, os heróis, os líderes; nele existirá apenas você consigo mesmo. De bicicleta, passa rápido demais...
A propósito: não olhe para trás, a não ser que queira ver o passado.
Mas de vez em quando é bom dar uma espiada, verificar o que deixamos, ou o que plantamos, até mesmo se o que acreditamos ainda é verdade...
Bom é olharmos para o futuro, nele enxergarmos o que esperamos, nosso passado projetado, aquilo que um dia foi sonhado...
Minha montanha nunca foi tão alta; meu buraco nunca foi tão fundo..., nem minha fé moveu grandes coisas...
Acreditei, como ainda acredito, que fazer é construir, é legar, é tornar-se eterno pelas lembranças, que um dia recordarão, quem um dia olhar para trás e ali me reconhecer...
Vou fazer, e refazer, e um dia, quem sabe poder sorrir..., por entender que mesmo a verdade não era por inteiro, plena como percebia...
Fazemos a nossa parte, pois que a nós é confiado um legado..., pois que um dia fizeram por nós...
A todos vocês, um bom Caminho; as asas são suas...
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Mais algumas fotos:dia 1 - 14/ago: Tambaú - Casa Branca
Dia 2 - 15/ago: Casa Branca - Pousada de Dona Cidinha
Dia 3 - 16/ago: Pousada de Dona Cidinha - Poços de Caldas
Dia 4 - 17/ago: Poços de Caldas - Andradas
Dia 5 - 18/ago: Andradas - Ouro Fino
Dia 6 - 19/ago: Ouro Fino - Tocos do Mogi (com GPS descarregado, tracei depois a rota no Google Earth e retirei os dados de distância e altimetria)
Dia 7 - 20/ago: Tocos do Mogi - Consolação
Dia 8 - 21/ago: Consolação - Luminosa
Dia 9 - 22/ago: Luminosa - Campos do Jordão
Dia 10 - 24/ago: Campos do Jordão - Aparecida
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Observações:
- Todas as fotos foram batidas pelo Autor, com uma Canon Power Shot SX200 IS, e podem ser encontradas no Orkut (http://www.orkut.com.br/Main#Profile?rl=ls&uid=1027002752297245515) e Facebook (http://www.facebook.com/reqs.php?fcode=4ae2c7411&f=100000558354577#!/profile.php?id=1328110035) - minha filha me ensinou como fornecer os 2 endereços.
- Na tabela que construí com os dados colhidos do GPS, uma prova que o corpo se supera quando solicitado, desde que esteja bem e saudável. Estive praticamente parado no mês que antecedeu o Caminho. Notem os batimentos cardíacos, melhorados dia a dia, embora os dias tenham ficado piores a cada etapa - subir a serra de Luminosa quase me mata... Houve momentos em que empurrava a bicicleta para cima, e ela teimava em descer novamente.
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Minhas recomendações:
- meus alforjes, bolsa de guidão e mala-bike, foram da ARARA UNA:
http://www.ararauna.esp.br/
(16) 3133 1229
(11) 8242 3092
vendas com Fábio Fes
- meu equipamento GPS, foi Garmin Edge 705 Bundle:
http://www.sportsonline.com.br/
(41) 3336-9462
(11) 4063-6472
- meu Guia do Caminho foi escrito pelo ANTONIO OLINTO:
http://www.olinto.com.br/
- o sítio para informações sobre o CAMINHO DA FÉ:
http://www.caminhodafe.com.br/
- nosso competente e gentil transporte entre Guarulhos/Tambaú, Aparecida/São Paulo, e São Paulo/Guarulhos (recomendado pelo Sampa Bikers):
Nailton Ernesto
(11) 8496-4642
(11) 7739-1554
Parabéns pelo poético relato, Boblitz, realmente você entendeu plenamente o Caminho. Infelizmente, pelos nossos habituais compromissos temos sempre prazos a cumprir, e concordo que o ideal é não ter prazo para percorrer o Caminho, felizardo que o puder assim fazê-lo. Por várias vezes, me encontrei pedalando sozinho, puxando o ritmo do Eduardo, mas no final também me dava satisfação em aguardar o Eduardo, e até descer um pouco do morro para puxar a sua bike e dar um pouco de tempo a ele para recuperar o folêgo. Enfim, o importante no final, é estar lá, a forma como fazê-lo se adequará as possibilidades de cada um. Um forte abraço e parabéns mais uma vez pelo belo relato.
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