Trilha Poço Redondo - Grota do Angico

Injustiças, caso de vingança,

teriam levado Virgulino ao cangaço...

Não importa se verdadeiro ou falso,

a razão e a própria vingança, extrapolaram...

Se antes houve motivo, depois tornou-se vulgar,

pelo sabor do poder provado, da maldade aflorada,

da arrogância de todo e qualquer ditador...



Trilha Poço Redondo - Grota do Angico
(Paulo R. Boblitz - mai/2010)


Pei!, Bang!, Ra-ta-ta-ta-ta..!, as balas começaram seu triste trajeto...

Pou! Tuííiing..!, resvalou uma na pedra, levantando faísca...

Era a Volante de Macacos, como eram chamados por Lampião, recém chegada pelo velho Chico, numa madrugada fria com nevoeiro, a dar tiros impiedosos na maior gangue de cangaceiros de todos os tempos. Lampião e seu bando, finalmente seriam derrotados e dizimados, já enfraquecidos pela grande sova e vexame sofridos em Mossoró, quando foram recebidos à bala e na coragem. Mossoró foi a única cidade que lhes disse "Não"; saíram dali corridos e bastante desfalcados, enfim espantados com tamanha reação de outros homens, pacatos, muito valentes.

Esse tiroteio aconteceu em 28 de julho de 1938, e de lá para cá, quase 72 anos depois, todas as histórias são controversas; prefiro estar entre os que o julgam um malfeitor sanguinário, a lhe dar asas de mito heróico. Para mim, foi um fanfarrão que fugiu à verdadeira luta, quando Padre Cícero lhe forneceu armas, munição e a patente de Capitão, para combater a Coluna Prestes. Gostava mesmo era de infundir terror junto aos menos numerosos..., aos desarmados..., gente simplória que já enfrentava as agruras do sertão (http://pt.wikipedia.org/wiki/Virgulino_Ferreira_da_Silva).

Três horas da manhã, debaixo de outro tiroteio, acordo com as balas que me chegam do despertador; era preciso estar no ponto de encontro às 4 da manhã, pois o início da trilha distava 180 km de onde partiríamos. Estávamos ainda arrumando as bicicletas, quando a chuva atrapalhou, interrompendo o serviço.

Por volta das 5 e quinze, o Sol já dourando onde nascia, partíamos sonolentos num dia que muito prometia, a julgar pelos nevoeiros que avistávamos ao longe, nuvens baixas e carregadas acariciando as partes altas das montanhas. Pelo meio da viagem, paramos para esticar as pernas, desestimar as bexigas, comermos algo a nos propiciar energia para mais um pouco à frente...

Pouco antes de Poço Redondo, o maior município sergipano, onde nasce o rio Sergipe, Caldas lançava âncoras para que desembarcássemos nossas bicicletas. Tudo garantido, equipamentos ajustados, água gelada armazenada, Oração a garantir a proteção divina, saíamos pedalando às 9 horas de uma manhã nebulosa.

Atravessaríamos uma grande região hoje distribuída em lotes, para centenas de famílias sem terra, como se o local sempre fora de polêmicas..., ali, saindo do asfalto, numa subida íngreme por terreno bruto com afloramentos rochosos, onde a realidade é sempre dura, não importa se chovendo ou fazendo sol, pois que caatinga, só com gibão-de-couro...

Mandacarus de um lado, macambiras de outro, vegetação arbustiva rala entremeada de vários tipos de cáctus, fomos seguindo sob um perfume suave de flores brancas visitadas por beija-flores, simples como a paisagem, que nos devolvia o verde, porém nenhuma produção - é a chamada seca verde.

Cruzamos por lotes irrigados, quiabos enormes sendo produzidos numa terra forte, argilosa ocra, que não produz porque não tem água. Assim, fica fácil entendermos pessoas às janelas dos sertões, vendo a vida passando, pois não há trabalho sem água, que assim como fixa a planta profunda, também enraíza o homem...

Chegamos ao riacho Jacaré, com pedras e fundo para o atravessarmos pedalando. Preferimos contorná-lo pisando em algumas pedras salientes, bicicletas às costas, mas pelo menos um dos pés tivemos que mergulhar na água, o que nos produz desconforto...

Seguimos adiante e alcançamos a Fazenda Logradouro, atravessamos a porteira e continuamos pelo agora caminho oficial até a Grota do Angico, lá onde Lampião e Maria Bonita tornariam famoso, um buraco cavado pelas águas a caminho do São Francisco, cheio de pedras, paus tortos, espinhos, e com certeza muitas cobras e aranhas, a jusante da grande represa da Hidrelétrica de Xingó, a dividir Canindé do São Francisco em Sergipe, e Piranhas em Alagoas, região de cânions, selvagem como um dia foi a vida dos cangaceiros.

Aportamos com nossas naus a pedais, em pleno Memorial dedicado àquele dia, onde está a se construir um museu. Largamos as bicicletas à sombra e abrigadas da leve chuva que já caía fazia algum tempo, enveredando pela senda cheia de pedras soltas, cansanções, macambiras, cáctus diversos, mutucas, cipós, galhadas, numa tortuosa maneira de contornar obstáculos, que ainda hoje, depois de tantas idas e vindas, continua agressiva e muito quente.

Em fila indiana fomos seguindo, alguns comentando sagas de Lampião e seu bando, outros narrando detalhes da emboscada, a maioria apenas ouvindo... Nossa caminhada, cerca de 1 km, terminou ao meio dia, abruptamente como todas as coisas acabam, quando nos deparamos com um grupo de turistas que haviam alcançado a Grota vindo a partir do rio, assim como fez naquele dia a Volante alagoana. Um jovem Guia palestrava relatando os acontecimentos, e nos juntamos ao grupo, silenciosos e atentos, pois aquilo era aula de História.

Ao final, a senhora já idosa, emocionada, virou-se para nós e disse ter 8 anos quando tudo aquilo aconteceu, terminando cantando uma pequena trova da época, misto de evocação ao mito, misto de temor da época, quando menina ouvia, dos mais velhos que do rio dependiam... Fomos embora em direções opostas, para eles uma breve descida até a escuna que os aguardava, para nós, uma difícil subida com o Sol a lume.

De volta às nossas bicicletas, alguém deu a idéia e resolvemos descer até o rio, onde um banho gostoso na água anil necessário se fazia, mas antes, sabores especiais... A matar a sede, isotônicas efervescentes bem geladas, sabor malte e lúpulo, carregando consigo goela adentro, nacos de peixe Piau frito na hora, a dedos nus, tamanha a gastura de nossas barrigas, há tanto tempo sem comida...

Mais um pouco chegou o Raimundo com uma jarra de farofa, arrumou mais uma mesa e logo nela instalou outro panelão cheio de Limpa-Pedras, peixe parecido com o Náutilus, aquele submarino de Julio Verne. Não bastasse, mais um panelão com galinha caipira cozida, suculenta com muito molho, do jeito que o diabo gosta - cheia de gordura...

Fomos ao banho..., o rio majestoso e calmo, domado pela represa mais acima, que roubou suas águas, abaixou seu volume, mostrou suas entranhas antes submersas, agora como se ilhas vulcânicas, nascidas das ígneas profundezas, arrebatando belezas em contraste.

Os Zuandeiros fora d'água, dentro d'água, como se peixes pedalando...

Não tínhamos tempo e logo nos arrumamos, afinal aquela ribanceira que havíamos descido, agora necessitava ser galgada, e partimos... O céu escurecia com nuvens cinzentas...

Vovô Djalma, agora bonitão com óculos escuros, comentou comigo que aquilo não se fazia nem com inimigo. Olhei para ele e concordei, olhando para cima, verificando que não tínhamos chegado nem na metade... Para piorar, aquela chuva prometida enfim caiu, por um bom longo tempo, a pingos generosos e afoitos. Até o carro de apoio, ligada a tração nas 4 rodas, deslizava para subir naquela argila cheia de graxa, preguenta e lisa...

Em pouco tempo nos chovia de ambos os lados, de baixo levantando a lama, de cima a nos tentar lavar a lama; só nos restava pedalar, enquanto aquelas duas águas não se entendiam...

A hora já estava avançada e uma nova abordagem foi adotada; abreviou-se a trilha e fomos em busca do Caldas numa outra direção, num assentamento onde hoje se tenta implantar desde 2004, denominado Jacaré-Curituba, irrigação com as águas de Xingó. Um a um fomos chegando até onde estava o ônibus do Caldas, distante apenas 800 metros da rodovia, trecho em que ele conseguia trafegar.

Enquanto a vida passa sem muitas novidades, de repente, do meio de uma tarde chuvosa e de muita lama, o pequeno povoado viu surgirem ciclistas lá de baixo, subindo, deslizando, arfando mas pedalando, a se juntarem ao redor de um reboque não menos estranho. A trilha terminara; agora começava outra trilha, a de entrarmos no ônibus do Caldas, completamente limpos e asseados...

Nessas horas descobrimos que solidariedade não tem status - ela sempre depende do amor, do querer o bem, do ajudar alguém...

Num instante, já estávamos todos gastando a pouca água que chegava à torneira da casa ali em frente, que fez questão de nos ceder os aposentos para que trocássemos nossas roupas molhadas, por outras secas. Num instante, a pequena casa humilde se viu cheia de rastros de lama, do nosso ir e vir. A hospitalidade do Nordestino não tem tamanho, nem tampouco preço, mas mesmo assim, juntamos pequena coleta, cuidando para não os ofendermos, pois recebemos tudo aquilo de coração.

Nos despedimos e às quase 6 horas da tarde, almoçávamos em Monte Alegre de Sergipe, onde saboreamos um rodízio fora de hora, regado ao tom de bem geladas isotônicas dadivosas vitaminadas e douradas, e de bombas gaseificadas coca-cola, aciduladas de efeito retardado, onde travamos algumas batalhas, sem tiros, para tentar comprar Cocada de forno, pois não havia suficiente para quem quisesse.

A chuva voltou a apertar na hora de irmos embora, ali pelas 7 da noite. Embarcamos na aeronave do Caldas, que nos conduziu cuidadoso pelo meio da noite, sem sobressaltos, sem buracos, sem muitos freios, num verdadeiro Céu de Almirante. Acordamos em Itabaiana, numa escala técnica para desobstrução das vias urinárias, um cafezinho quentinho, um esticar de pernas, um prosear sonolento...

Às 9 e meia da noite, estávamos todos em porto seguro, mais uma missão cumprida, mais um esforço compensado, suores de uma semana trabalhada, trabalho de uma trilha bem suada. Ao todo foram 12 pneus furados, quase metade do contingente...

Cada um recolheu o próprio equipamento de guerra, a ser limpo, reparado, azeitado; cada um começará a juntar munição, para na próxima missão, outra trilha pelo sertão, lançarmos tudo em saraivada, como Volante da Paz...

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